- conceito do
Direito
O espírito do jurista há de estar receptivo à lei, mas
ao mesmo tempo sensível à teleologia do Direito, e o fim deste é sempre o
bem-estar dos homens em sociedade ou a organização do Estado.
A formulação de um conceito do jus exige a participação da experiência pelo fornecimento de
elementos e os contributos da razão, pois esta generaliza e elabora sínteses.
Entre as múltiplas correntes filosóficas do Direito,
verificamos duas tendências fundamentais, uma índole espiritualista, que situa
o valor da justiça como elemento essencial e preeminente, além de proclamar a
existência do chamado Direito Natural; outra é de natureza positivista, que
valoriza apenas os dados fornecidos pela experiência, identificando o fenômeno
jurídico com a norma ou com o fato e admitindo por Direito apenas o
institucionalizado pelo Estado. A par de tais divergências, que são de ordem
estrutural, é possível, todavia, se encontrar um denominador comum entre as
diversas correntes filosóficas do Direito. Ao se afirmar que o Direito tem algo
a ver com a norma, com o fato e também com o valor, não se poderão apresentar
objeções sérias; igualmente quando se diz que o Direito é um processo de
adaptação social, possui caráter evolutivo e, além de um conteúdo nacional,
possui elementos universais.
O Direito Positivo se apresenta na sociedade como a
fórmula da segurança e da justiça. Como todo processo de adaptação, o Direito é
elaborado em função de uma necessidade. Não fora a carência social de
disciplina e distribuição de justiça, razão não existiria para se cogitar sobre
o Direito. Este se justifica na medida em que logra efetiva adaptação, que não
se obtém por qualquer conteúdo normativo. Para que o Direito seja efetivo
processo de adaptação é indispensável que preencha vários requisitos. Em
primeiro lugar, é necessário que esteja devidamente ajustado ao momento
histórico, em consonância com os fatos da época. As normas jurídicas devem não
apenas ordenar as relações sociais como também sagrar fórmulas que expressem o
querer coletivo. Se as leis não refletem a natureza das coisas, não há como se
falar em adaptação social. Quando se diz que o legislador deve respeitar a
vontade social, não se quer declarar que o povo detenha fórmulas jurídicas mais
convenientes e sim que, ao preparar um texto legislativo, devem-se eleger valores
e buscar soluções compatíveis com as pretensões dominantes.
Para que o Direito guarde correspondência de modo
permanente com os fatos sociais, é imperioso que o legislador se mantenha
vigilante quanto à evolução histórica, acompanhe a jurisprudência e introduza,
com oportunidade, alterações no ordenamento jurídico. O Direito deve ser
contemplado, hodiernamente, não apenas como órgão dissipador de conflitos. A
sua missão atual deve ser também a de promover o homem, dando-lhe condições
para desenvolver seu potencial de vida e cultura.
Ao elaborar uma lei o legislador há de prepara-la de
tal modo que possa ser um efetivo processo de adaptação social. Para se aferir
essa qualidade é indispensável que se examinem os efeitos sociais provocados
pela lei durante a sua vigência. Se não logrou efetividade ou não proporcionou
bem-estar à sociedade não como considerá-la processo de adaptação social.
Conceber o fenômeno jurídico como processo de adaptação
social equivale a identifica-lo como objeto cultural, algo elaborado pelo homem
para suprir as suas carências. No quadro da ontologia regional situamos o
Direito no mundo da cultura, que reúne objetos materiais e espirituais, aqueles
com suporte corpóreo e estes não; todos, porém, compreendendo a realização de
valores.
Ao introduzir a conduta o Direito Positivo realiza
valor e o valor que tenta realizar é o da justiça. Enquanto realiza sempre
valor, expressa apenas uma tentativa de consagração do justo. Isto porque a
justiça não é mera convenção da lei, mas medida que objetiva o equilíbrio, a
adequação entre o que se dá e o que se apresenta e o que se recebe, fórmula nem
sempre atingida pelo legislador.
Embora o papel do legislador seja precipuamente o de
captar o pensamento jurídico nas correntes sociais, as tarefas que executa são
relevantes e complexas, notadamente as que envolvem matéria técnica como a das
leis e códigos de processo. O legislador há de ser também um crítico, pois se
de um lado deve zelar para que o ordenamento expresse o sentimento coletivo,
deve ter sua atenção despertada para os valores do justo. Compreender o Direito
como objeto cultura ou processo de adaptação social não significa adesão à
cultura positivista. Entende-se que o Direito Positivo deva fundar-se no querer
social e ainda na ordem natural das coisas. A tendência é que o querer social
se revele em plena sintonia com aquela ordem, pois apenas por uma forte
perturbação na sociedade pode chegar-se ao divórcio entre ambos, oportunidade
em que o legislador deverá induzir a adaptação dos fatos sociais ao Direito
Natural.
O Direito não é um fenômeno transitório, pois
corresponde a necessidades sociais permanentes. Transitória e cambiável pode
ser a forma que se apresenta o seu campo normativo, que deve acompanhar a
evolução dos fatos sociais. O Direito Positivo conserva, contudo, um
coeficiente de universalidade e permanência, justamente na parte que consagra
princípios do Direito Natural, como o da preservação da vida e da liberdade
humana. A ordem jurídica deve expressar, a um só tempo, a realidade e os
postulados do Direito Natural. Entendido não este como normas que definem a
conduta, mas como princípios norteadores que orientam o legislador e sua tarefa
de elaborar as leis, não constitui obstáculo ao processo de adaptação.
Universal, eterno e imutável é a sua principiologia, que deve ser assimilada
pelo legislador, que dispõe de flexibilidade e alternativa na sua manipulação.
Não há qualquer obstáculo para se chegar, na prática,
ao Direito como processo de adaptação social, partindo-se do entendimento de
que o jus positum é o objeto cultural
e deve fundar-se em princípios do Direito Natural.
Em sua dimensão positiva, o Direito é o conjunto de
normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para a
realização da segurança, segundo os princípios de justiça. Assim definido, o
Direito reúne três elementos primordiais: fato, valor e norma. Como processo de
adaptação social o Direito nasce dos fatos e se destina a disciplinar fatos.
Direta ou indiretamente, toda norma jurídica dirige o comportamento social. Ao
indicar a conduta exigida, o Direito revela juízo de valor. As normas
jurídicas, de um modo ou de outro, compelem o homem à ação justa. Para que os
fatos consagrem os valores do justo e com isto a sociedade alcance equilíbrio e
harmonia, há de haver normas práticas e objetivas que indiquem modelos de
conduta ou estabeleçam os limites da licitude. A norma é o instrumento prático
do Direito, pois regula o fato em função de determinado valor que se pretende
adotar socialmente. Tais elementos configuram, no seu conjunto, a chamada
Teoria Tridimensional do Direito, desenvolvida por Miguel Reale.
Como o objeto cultural, o fenômeno jurídico implica em
criação humana. Esta se faz diretamente pela sociedade, com o chamado Direito
consuetudinário, ou por órgãos do Estado. Ordinariamente é o Poder Legislativo
quem elabora o jus scriptum, embora
não deva amesquinhar a contribuição do Judiciário no aperfeiçoamento da ordem
jurídica. Sem chegar a constituir-se em órgão-fonte, pois não possui liberdade
para revogar leis, o Poder Judiciário enriquece e beneficia o Direito Positivo,
pois de princípios gerais e dispersos no ordenamento induz regras de comando
jurídico, que se impõem socialmente pelo prestígio da jurisprudência.
Relativamente à coação, força a serviço do ordenamento jurídico, embora de
importância irrecusável, não chegar a integrar o ser do Direito, pois é fato
apenas contingente. A coercibilidade, força em potência, se nos afigura como um
dos traços distintivos do Direito.
Além de manifestar objetivamente como normas
disciplinadoras do convívio social, o Direito se revela também em dimensão
subjetiva: poder de agir e de exigir, que o jus
positum proporciona ao sujeito ativo de uma relação jurídica, o que se
denomina direito subjetivo. Este engloba duas esferas: a da licitude e a da pretensão.
A primeira se identifica com o campo da liberdade – agere licere - definido pelo Direito objetivo, enquanto a segunda
consiste no poder se exigir do sujeito passivo da relação jurídica o
cumprimento de seu dever. Consequentemente, pode-se definir o direito subjetivo
como a possibilidade de agir e exigir aquilo que as normas de Direito atribuem
a alguém.
Uma vez situado o Direito Positivo como processo de
adaptação social, como objeto cultural, implicitamente o situamos como
instrumento a serviço da causa humana: meio utilizado pela coletividade para
tornar possível a ampla interação social. Em última análise, o Direito existe
para garantir o funcionamento da sociedade e, ao mesmo tempo, preservar a
dignidade da pessoa humana.
Quem há de comandar a ordem jurídica positiva é o jus naturae, que abrange os interesses
fundamentais da pessoa humana. Estes introduzem e condicionam a criação do jus positum e também influenciam na
revelação do significado e extensão das normas jurídicas.
Uma ordem jurídica verdadeiramente acorde com a
instância superior do jus, em que os
direitos subjetivos se identificam com a Moral, é uma questão de aperfeiçoamento
do Direito Positivo. Esta deve ser uma meta permanente dos cultores a ciência.
- dimensão
axiológica do Direito
Como o Direito é processo elaborado, não produto
espontâneo da natureza, o valor é um de seus componentes básicos. É que o
engenho humano, como objeto cultural, realiza valor. Parte de um macroprojeto
de vida, o Direito é instrumento de aprovação do bem e de rejeição do mal, um
juízo de valor.
Tendo em vista que o quadro social é móvel e exige a
reformulação jurídica permanente, novas regras de conduta social são cogitadas.
O poder elaborador planeja esquemas normativos capazes de manter íntegro o
edifício social e, para tanto, mediante reflexão e juízos de valor, impregna a
nova realidade jurídica com o sentido do justo. Ainda quando falho o critério
da fonte, haverá normas consagrando valores, embora negativamente.
Tanto os valores jurídicos quanto os tutelados pelo
Direito possuem um núcleo imutável e uma parte suscetível de variação e que
evolui historicamente. Como o Direito é uma ordem racional que se refere ao ser
humano em sociedade e não possui conteúdo puramente convencional, já que
expressa fundamentalmente a natureza de seus destinatários, há de apresentar um
acervo de princípios, regras básicas e valores permanentes. Paralela e
secundariamente, esse substrato jurídico se desdobra em elementos mais
específicos, que vão reger diretamente a realidade social. As alterações que se
processam no meio social em decorrência dos avanços científicos e tecnológicos
impõem uma revisão nos valores sociais. A própria moral positiva não se acha
infensa a transformações.
Os valores jurídicos não guardam absoluta dependência
às normas, visto que se manifestam também em princípios consagrados ao longo
dos tempos. Com alguma frequência, os tribunais recorrem aos princípios gerais
de Direito na solução dos casos. Ainda que se identifique a natureza desses
princípios com o ordenamento jurídico, há de se admitir a hipótese de se
recorrer à heterointegração na busca dos princípios aplicáveis.
Conforme a doutrina de Rudolf Von Ihering, ao expor sua
teoria do fim, o Direito é
teleológico, pois é um mecanismo que se ordena para a realização de fins. Uma
vez eleito o valor fundamental, estrutural, que se erige em fim do Direito,
devem ser criadas as estruturas normativas que viabilizarão o desiderato.
Considerando que o objetivo imediato do Direito é o de
proporcionar à sociedade as condições de equilíbrio ao seu exercício, é de se
ver na segurança o valor jurídico de primeiro grau. A realização da justiça é
um anseio, um complemento da maior importância, que há de se perseguido
permanentemente e nunca se exaure. Como o quadro social se acha em constante
devenir e com ele o ordenamento jurídico, o aperfeiçoamento dos instrumentos do
justo é uma busca perene.
Dado que o habitat
é o meio social, ele aspira o estado de ordem e de justiça. Para obter a
concreção de tais valores, em um processo de adaptação extra-orgânica, o homem
elabora o Direito. Este é um ordenamento cujo escopo é o de impor a vivência
daqueles valores. Tanto os valores jurídicos quanto os da experiência em geral
são percebidos nitidamente pelo espírito humano, embora nem todos saibam
defini-los.
Para ser a expressão do bem e devido ao seu amplo
alcance, a justiça é o valor excelso que há de orientar a elaboração e
aplicação do Direito. A justiça substancial, aquela que efetivamente
proporciona o seu a cada um, é uma síntese de diversos valores jurídicos.
Atenta contra o valor da segurança jurídica o magistrado
que, no afã de dar a cada um o que é seu, dentro de uma relação
jurídico-processual concreta, abandona o critério legal e julga conforme a sua
consciência, ainda que por uma decisão substancialmente justa. Justiça é
segurança são valores jurídicos fundamentais que, uma vez consagrados no
ordenamento, dotam o Direito de um indispensável conteúdo ético.
- Direito e coação
Os sistemas jurídicos são dotados de coação, que é a
força a da ordem social. A sua importância é vital, pois o Direito é necessidade
imperiosa e não mera convivência, não devendo ficar ao alvedrio de seus
destinatários. A força se revela, assim, como instrumento valioso do Direito na
busca da estabilidade social. Todavia, não basta que o sistema jurídico possua
ampla previsão coativa, pois é indispensável que a força seja apenas o
complemento de uma sólida estrutura é tica, a fim de que o Direito Positivo se
imponha legitimamente nas relações sociais.
Sem o poder de acionar a força, o Judiciário seria
impotente para cumprir o dever de o Estado conceder a prestação jurisdicional.
A coação pode manifestar-se tanto na hipótese de violação da ordem jurídica
quanto nos casos de tentativa, e em tais ocorrências é legítimo o emprego da
força pelos agentes de segurança, que podem exercitar o constrangimento físico
sobre o responsável pela conduta.
O conceito de sanção não se confunde com o de
coercibilidade, que é a possibilidade de a força ser acionada no campo
jurídico. Enquanto a coação é a força em ato, a coercibilidade é em potência.
Tal distinção é básica, pois se a coação se manifesta apenas eventualmente, a
coercibilidade é um estado permanente da ordem jurídica.
Garantia jurídica é todo fato que contribui para dar ao
Direito o máximo de efetividade. No sentido atribuído à expressão, verifica-se
que abrange tanto a sanção-castigo quanto à chamada sanção-prêmio. Tal qual
ocorre com o vocábulo coação, a palavra sanção possui também duplo sentido na
terminologia jurídica: além de castigo ou penalidade, significa a concordância
do Chefe do Executivo com o projeto de lei aprovado pelo Legislativo.
Emmanuel Kant valoriza o elemento força na ideia do
Direito. Para Rudolf Von Ihering, o Direito reúne dois elementos: norma e
coação, sendo que “a norma jurídica sem cogência é uma contradição em si mesma;
um fogo que não queima, uma luz que não ilumina”. O fato de haver normas de
convivência observadas independentemente de coação, como as seitas religiosas,
não quer dizer que exerçam a função de comando jurídico, pensa Ihering. Para
ele, se isto fosse procedente, verdadeiro também seria dizer-se que as normas
de relacionamento de qualquer associação, ainda que de uma quadrilha, seriam
Direito.
Em suas reflexões sobre a vexata questio, Goffredo Teles Júnior, com clareza aponta um
equívoco fundamental nos autores que consideram a coação um elemento essencial
ao Direito, qual seja, o de confundir o contingente com o necessário. A coação
jurídica seria apenas contingente, pois a força nem sempre é acionada. A maior
parte dos destinatários das normas presta-lhes obediência com espontaneidade de
querer. O autor não nega importância à coação jurídica. Para ele, “precisamente
por ser uma força a serviço do Direito, a coação não constitui o próprio
Direito, e um elemento externo, que vem prestar socorro à norma violada”.
Sendo a coação a força física em ato, pode-se dizer que
as normas jurídicas, em sua generalidade, são cumpridas espontaneamente pela
sociedade, independentemente do exercício da coação. Isto se torna necessário
apenas quando os indivíduos se rebelam, e isto ocorre não como regra geral, mas
excepcionalmente. É inaceitável, portanto, que se tome a coação como elemento
essencial do Direito. Embora o Direito recorra à força física apenas
eventualmente, é fundamental à sua efetividade que ele possa acionar o aparato
coativo todas as vezes que se fizer necessário. O que se nos revela essencial
ao Direito é a coercibilidade, ou seja, a possibilidade de o Direito empregar a
força.
A coação estatal, inclusa nos sistemas jurídicos, é
fator valioso e muitas vezes preponderante para se alcançar a obediência à lei.
Pelo fato de sua aplicação não ser em caráter permanente, apenas eventual, não
faz parte da essência do Direito que, assim como os demais elementos de
controle social, seria apenas um convite para adoção de determinados modelos. A
coercibilidade, entendida como possibilidade de o Judiciário ou órgãos da
administração acionarem a força, revela-se fator essencial ao Direito.
- atributos de
validez do Direito
Partindo do conceito de que vigência significa “existência
específica de uma norma” e que esse atributo indica a ordem do dever ser e não do ser, Hans Kelsen destaca a necessidade de se distinguir vigência de
eficácia, entendida esta como “fato real de a norma ser efetivamente aplicada e
observada”. O autor condiciona a vigência da norma isto é, a sua validade, a um
mínimo de eficácia: “uma norma que nunca e em parte alguma não é eficaz em
certa medida não será considerada como norma válida (vigente). Um mínimo de
eficácia é a condição de sua vigência”.
Por eficácia devemos designar o resultado social
positivo alcançado pelas normas jurídicas. Lei eficaz é a que provoca as
consequências sociais almejadas por seu autor ao elaborá-la. Ao programar um
conjunto de normas, o órgão criador tem por mira atender à realidade social que
apresenta algum tipo de problema. O instrumento normativo é empregado como
recurso técnico capaz de resolver a questão. Como processo de adaptação social,
o Direito é estabelecido de acordo com a situação histórica, sob medida para os
fatos que desafiam o administrador. A lei deverá produzir os efeitos que dela
são esperados e obter, ulteriormente, eficácia.
Por efetividade nomeamos o fenômeno social de
obediência às normas jurídicas. Por serem passíveis de transgressão, as normas
nem sempre alcançam plena efetividade. O índice de adesão às regras depende de
vários fatores, sendo certo que a coercibilidade – força a serviço do Direito –
atua como um dos estímulos da efetividade.
A importância da efetividade é significativa, pois sem
ela o Direito não realizará os processos adaptativos necessários à condução dos
interesses sociais.
Deixar a critério do Judiciário, além do julgamento de
fato, o julgamento ético da lei, é atribuir àquele Poder uma competência
legiferante superior à do Legislativo. Um dos pilares da democracia reside no
pleno equilíbrio entre os Três Poderes, e toda vez que um deles açambarcar a
competência de outro já não se poderá falar em Estado Democrático.
A lei injusta, desde que extrinsecamente válida, deverá
ser aplicada aos casos concretos, pois a sua não adoção em nome da justiça
poderá criar problemas sociais mais graves, já que a segurança jurídica
perderia em termos de definição e certeza. Como limite estabelecido, a lei
injusta não seria aplicável na hipótese de violar os valores fundamentais da
pessoa humana, isto porque a obediência cega às leis poderia criar situações
gravíssimas.
- o jurista e a
cultura jurídica
À percepção geral dos juristas não podem faltar o senso
do justo, nem a sensibilidade para o sociológico do Direito. Além de espírito
lógico, a aptidão para conhecer o Direito requer uma formação cultural básica,
capacidade de abstração e sentimento ético, visão sociológica e domínio da
linguagem.
O saber do jurista não se limita no espaço, adstrito ao
ordenamento de um determinado Estado, visto que sua cultura se solidifica em
princípios universais, de onde promanam leis básicas de diferentes povos. A
atividade fecunda do jurista se desenvolve no plano de iure constituto, que é a do Direito vigente, e no iure constituendo, quando se cogita
sobre o Direito a ser criado aquele que se ajustará à constituição e se
amoldará aos novos princípios que a ciência jurídica revela, em harmonia com o
momento histórico.
Ao executar tão relevante tarefa, o jurista não se orienta
apenas pela análise pessoal das fontes, pois consulta a jurisprudência dos
tribunais, que é reveladora do Direito vigente e, sob certo aspecto, ao
sistematizar o Direito ele complementa o trabalho do legislador, pois elimina
excessos e dá acabamento ao seu produto.
A interpretação técnica é imprescindível à
sistematização, servindo-se de meio. O escopo do jurista pode estar
concentrado, todavia, na interpretação como tarefa fim, quando então desenvolve
metodologicamente a mens legis. A
atividade decodificadora requer a prévia sistematização.
A capacidade do jurista não se restringe ao
conhecimento dos princípios e normas jurídicas. Além de abordar fatos sociais a
partir da compreensão do Direito vigente, é capaz de apontar no ordenamento os
dispositivos legais aplicáveis a determinada quaestio facti. Com a desenvoltura com que analisa abstratamente o
alcance fático de uma lei, as diversas hipóteses de sua incidência, apresenta
as soluções jurídicas para os litígios concretos.
Podemos classificar a atividade dos juristas em três
níveis distintos. Um é de natureza prática, que se limita a sistematizar e a
interpretar o Direito. Outro é de ordem crítica, quando questiona as leis
vigentes, seja na avaliação de seu grau de ajustamento ao sistema, aos fatos
sociais ou aso valores determinantes da sociedade. A atividade de índole
criadora se patenteia quando sugere modelos originais de lei ao legislador,
quando concebe novos institutos e princípios jurídicos.
É o jurista quem dá sustentáculo ao poder legiferante
do Estado, pois é quem possui conhecimento específico e aptidão para o trabalho
de modelagem de leis ou decretos.
Como ideia-força, os princípios se conjugam para
promover o Direito como processo de adaptação social. Direta ou indiretamente,
os princípios se acham comprometidos com a realização do Direito como fenômeno
adaptativo e com os valores da segurança jurídica.
Os princípios são necessários à elaboração dos sistemas
e atuam ainda como elementos de integração do Direito. Nesta segunda função,
eles preenchem as lacunas da lei, oportunidade em que o aplicador do Direito
deverá identifica-los com os princípios do Direito Natural ou com os do
ordenamento jurídico, segundo sua concepção, salvo quando houver orientação
específica do sistema.
O jurista se revela tanto mais culto quanto mais
extenso é o seu campo de estudo e maior a capacidade de vibração de seu
espírito diante das múltiplas perspectivas de análise do fenômeno jurídico.
Culto é aquele que, além dos aspectos normativos da lei, busca a fundamentação
petica e sociológica da fonte formal, submetendo-a à análise crítica; culto é o
jurista que assimila as linhas diretoras do ordenamento jurídico, consciente,
todavia, das alternativas científicas previstas no âmbito doutrinário; culto,
ainda, é aquele que, embora se dedique apenas a uma das ciências jurídicas ou
até mesmo a um ramo da Dogmática, conhece as conexões que ligam as áreas do
território jurídico e se mostra capaz de articular o raciocínio na esfera das
demais ciências do Direito.
Fonte: Filosofia do Direito. Paulo Nader.