- atos ilícitos
Se o agente dos negócios e dos atos jurídicos, por ação ou
omissão, pratica ato contra o Direito, com ou sem intenção manifesta de
prejudicar, mas ocasiona prejuízo, dano a outrem, estamos no campo dos atos
ilícitos. O ato ilícito pode constituir-se de ato único, ou de série de atos,
ou de conduta ilícita.
A ação ou omissão ilícita pode acarretar dano indenizável. Essa
mesma conduta pode ser punível no campo penal.
No Direito Civil, importa saber quais os reflexos dessa conduta
ilícita. No crime de lesões corporais, a vítima pode ter sofrido prejuízos,
tais como despesas hospitalares, faltas ao trabalho e até prejuízos de ordem
moral, se foi submetido à chacota social, se estiver ficado com cicatriz que
prejudique seu trânsito social. No campo civil, só interessa o ato ilícito à
medida que exista dano a ser indenizado. Quando se fala da existência de ato
ilícito no campo do direito privado, o que se tem em vista é exclusivamente a
reparação do dano, a recomposição patrimonial. Não há, no campo civil, em
princípio, sentido de punir o culpado mas o de se indenizar a vítima.
Em matéria de responsabilidade civil, havia no artigo 159 do Código Civil
de 1916 fundamento para a indenização não derivada do contrato. O
atual código, no dispositivo equivalente, refere-se ao dano moral, presente
expressamente na Constituição de 1988: “aquele que, por ação ou omissão
voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem,
ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (artigo 186).
Desse dispositivo decorrem todas as conseqüências atinentes à responsabilidade
extracontratual entre nós. Na responsabilidade extracontratual, também
denominada aquiliana, em razão de sua origem romana, não preexiste contrato. É
o caso de alguém que ocasiona acidente de trânsito agindo com culpa e
provocando prejuízo indenizável.
O ato ilícito, portanto, tanto pode decorrer do contrato como
relação extracontratual. O atual Código utiliza o conceito de perdas e danos no
artigo 389: “não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos,
mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente
estabelecidos, e honorários de advogado”.
A ilicitude cominada no artigo 186 do Código Civil diz respeito à
infringência da norma legal, à violação de um dever de conduta, por dolo ou
culpa, que tenha resultado prejuízo de outrem.
A culpa, segundo o mesmo artigo 186, vem estatuída pela expressão
“negligência ou imprudência”. O Código Penal, no artigo 18, acrescenta a
imperícia. Na conduta culposa, há sempre ato voluntário determinante do
resultado involuntário. O agente não prevê o resultado, mas há previsibilidade
do evento, que é objetivamente visto, é previsível.
Quando se fala em culpa no campo civil, englobam-se ambas as
noções distinguidas no artigo 186, ou seja, a culpa civil abarca tanto o dolo
quanto a culpa estritamente falando. Ainda para fins de indenização, uma vez
fixada a existência de culpa do agente, no campo civil, pouco importa tenha
havido dolo ou culpa, pois a indenização poderá ser pedida em ambas as
situações. Também não há, em princípio, graduação na fixação da indenização,
tendo em vista o dolo, mais grave, ou a culpa, menos grave. No entanto, deve
ser lembrado o artigo 944, parágrafo único do Código Civil, o qual permite ao
Juiz reduzir equitativamente a indenização, se houver expressa desproporção
entre a gravidade da conduta e o dano.
O que importa na responsabilidade civil é a fixação do quantum para reequilibrar o patrimônio
atingido. Não se trata, portanto, de punição.
A responsabilidade civil emerge do simples fato do prejuízo, que igualmente
viola o equilíbrio social, mas cuja reparação ocorre em benefício da vítima.
Por conseguinte, as situações de responsabilidade civil são mais numerosas,
pois independem de definição típica de lei.
Para que surja o dever de indenizar, é necessário, primeiramente,
que exista ação ou omissão ao agente; que essa conduta seja ligada por relação
de causalidade com o prejuízo suportado pela vítima e, por fim, que o agente
tenha agido com culpa (assim entendida no sentido global). Faltando algum
desses elementos, desaparece o dever de indenizar.
A conduta ativa geralmente constitui-se em ato doloso ou
imprudente, enquanto a conduta passiva é estampada normalmente pela
negligência. A conduta omissiva só ocorre quando o agente tem o dever de agir
de determinada forma e deixa de fazê-lo.
A idéia original é de que a ação praticada pelo próprio agente o
incumbirá de indenizar. No entanto, na responsabilidade civil, tendo em vista o
maior equilíbrio das relações sociais, por vezes o autor do dano não será o
responsável ou ao menos responsável único pela indenização. Os empregados, por
exemplo, agindo com culpa, farão com que o dever de indenizar seja dos patrões,
assim como nas demais situações do artigo 932 do Código Civil. Trata-se de
responsabilidade por fato de outrem, que se distingue da responsabilidade
primária por fato próprio.
Para que surja o dever de indenizar, também deve existir a relação
de causalidade ou nexo causal.
Em terceiro lugar, para reclamar indenização, é necessário haver
dano. Com relação ao dano patrimonial, não há dúvida quanto à indenização, pois
é ele facilmente avaliável. O problema maior surge quando o dano é moral, no
entanto, não há mais dúvida que este é indenizável em qualquer hipótese.
Em quarto lugar, surge a culpa para fazer emergir a
responsabilidade civil. Culpa civil engloba, portanto, o dolo e a culpa
estritamente falando. A idéia de culpa implica a de imputabilidade. A moderna
doutrina, admite que a mormente por dano moral, não tem um sentido
exclusivamente de reparação do prejuízo, mas preenche também finalidade social
e punitiva, ao impor um pagamento ao ofensor. O grau de culpa passa a ter
influência na fixação da indenização. O Código Civil faz referência à
possibilidade de redução da indenização.
Outro critério na distinção da culpa é o da culpa in concreto e da culpa in abstrato. Pela culpa in concreto, examina-se a
conduta do agente no caso ocorrido. Pela culpa in abstrato, a responsabilidade
tem como padrão o homem médio da sociedade, o diligens
pater familias dos romanos;
trata-se de ficção. Entre nós, é adotado o critério da culpa in concreto.
Outras modalidades de culpa podem ser citadas. A culpa in eligendo é a decorrente da má escolha do
representante ou preposto: alguém entrega a direção do veículo a pessoa não habilitada,
por exemplo.
A culpa in
vigilando e a que decorre da
ausência de fiscalização sobre outrem, em que essa fiscalização é necessária ou
decorrente da lei; é a que ocorre no caso do patrão com relação aos empregados.
A culpa in
committendo acontece quando o
agente pratica ato positivo; a culpa in
omittendo, quando a atitude consiste em ato negativo.
A culpa in
custodiendo consiste na
ausência de devida cautela com relação a alguma pessoa, animal ou coisa,
Há tendência na jurisprudência que cada dia mais se avoluma: a de
se alargar o conceito de culpa para possibilitar maior âmbito na reparação dos
danos.
Criou-se a noção de culpa presumida, alegando-se que existe dever
genérico de não prejudicar. Sob esse fundamento, chegou-se noutro degrau, à
teoria da responsabilidade objetiva, que escapa à culpabilidade, o centro da
responsabilidade subjetiva. Passou-se a entender ser a idéia de culpa
insuficiente, por deixar muitas situações de dano sem reparação. Passa-se à
idéia de que são importantes a causalidade e a reparação do dano, sem se
cogitar da imputabilidade e da culpabilidade do causador do dano. O fundamento
dessa teoria atende melhor à justiça social, mas não pode ser aplicado
indiscriminadamente para que não se caia no outro extremo de injustiça. Contudo,
já são vários os caos de responsabilidade objetiva em nossa legislação. O
Código Civil inova arriscadamente nesse área.
De fato, o parágrafo único do artigo 927, que estabelece a
obrigação geral de reparar o dano por conduta decorrente de ato ilícito,
dispõe: “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos
casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. Abre-se,
portanto, válvula para que no caso concreto, o Juiz defina a responsabilidade
de acordo com o risco e suprima a discussão sobre a culpa.
A teoria do risco encontra respaldo legislativo, entre nós, por
exemplo, na legislação dos acidentes de trabalho.
No tocante à diminuição dos efeitos do ato ilícito, deve ser
mencionada a concorrência de culpas. Pode suceder que, não obstante o agente
tenha agido com culpa, da mesma forma que se tenha comportando a vítima. A
culpa da vítima faz compensar a culpa do agente. No campo civil, as culpas
compensam-se, o que não ocorre no campo penal. Essa tem sido a orientação
tradicional da jurisprudência. Nesse sentido, o Código Civil é expresso: “se a
vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização
será fixada, tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do
autor do dano” (artigo 945).
Quando ocorre a culpa exclusiva da vítima, não podemos falar em
indenização, pois o agente não contribuiu para o evento. Quando a culpa é concorrente
da vítima e do agente, isto é, a vítima também concorreu para o evento danoso,
com sua própria conduta, o julgador fixará a indenização
mitigadamente, em montante inferior ao prejuízo.
Se o evento foi ocasionado por caso fortuito ou força maior, deixa
de existir o elemento culpa, cessando a responsabilidade. No fenômeno do caso
fortuito e da força maior, existem dois elementos: um de ordem interna, que é a
inevitabilidade do dano, outro de ordem externa, que é a ausência de culpa do
indigitado agente.
O artigo 188 do Código Civil estatui os casos de exclusão de
ilicitude:
Art. 188. Não constituem atos ilícitos:
I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.
Entende-se por legítima defesa que, usando moderadamente dos meios
necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de
outrem (artigo 25 do CP).
Considera-se estado de necessidade quem pratica o fato para salvar
de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo
evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era
razoável exigir-se (artigo 24 do CP).
Diversamente da legítima defesa que exclui a responsabilidade, os
artigos 1519 e 1520 do Código Civil de 1916 determinavam que, se o dano da
coisa destruída ou deteriorada não for o culpado do perigo, o autor do dano
será responsável pela reparação, ficando, contudo, com ação regressiva contra
seu causador. No mesmo sentido são os artigos 929 e 930 do atua Código. Assim,
embora a lei declare que a ação sob estado de necessidade não tipifica um ao
ilícito, nem por isso deixa de sujeitar o autor do dano a sua reparação.
Nos termos do parágrafo único do artigo 930 do Código Civil, tanto
no caso de estado de necessidade como no de legítima defesa, quando o
prejudicado não é o ofensor, mas terceiro, o dever de indenizar mantém-se. Tal
direito só desaparece se o atingido é o próprio ofensor ou o aturo do estado de
perigo.
- abuso de direito
A compreensão inicial do abuso de direito não se situa, nem deve
situar-se, em textos positivos. A noção é supra legal. Decorre da própria
natureza das coisas e da condição humana. Extrapolar os limites de um direito
em prejuízo do próximo merece reprimenda, em virtude de consistir em violação
de princípios de finalidade da lei e da equidade. É inafastável por outro lado,
que a noção de abuso de direito se insira no conflito entre interesse
individual e o interesse coletivo.
O abuso de direito deve ser tratado como categoria jurídica
simplesmente porque traz efeitos jurídicos. Aquele que transborda os limites
aceitáveis de um direito, ocasionando prejuízo, deve indenizar.
No abuso de direito, sob a máscara de legítimo esconde-se uma
ilegalidade. Trata-se de ato jurídico aparentemente lícito, mas que, levado a
efeito sem a devida regularidade, ocasiona o resultado tido como ilícito.
O titular da prerrogativa jurídica, de direito subjetivo, que atua
de modo tal que sua conduta contraria a boa-fé, a moral, os bons costumes, os
fins econômicos e sociais da norma, incorre no ato abusivo. Nessa situação, o
ato é contrário ao direito e ocasiona responsabilidade do agente pelos danos
causados.
Existem disposições em nosso direito nas quais despontam a noção
de coibição de abuso de direito.
O artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: “na
aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às
exigências sociais do bem comum”. O critério finalístico do direito deve, pois,
sempre estar presente no julgamento.
O melhor critério para caracterização do abuso de direito é o
finalístico. O exercício abusivo de um direito não se restringe aos casos de
intenção de prejudicar. Será abusivo o exercício do direito fora dos limites da
satisfação do interesse lícito, fora dos fins sociais pretendidos pela lei,
fora, enfim, da normalidade.
O abuso de direito não se circunscreve às noções de dolo e culpa.
Se isso fosse de se admitir, a teoria nada mais seria do que um capítulo da
responsabilidade civil, ficando em âmbito mais restrito. Se, por outro lado,
fosse essa a intenção do legislador, o princípio genérico do artigo 186 do
Código Civil seria suficiente, não tendo por que a lei falar em “exercício
regular de um direito” no artigo seguinte. Portanto, se, de um lado, a culpa e
o dolo podem integrar a noção, tal não é essencial para a configuração do
abuso, uma vez que o proposto é o exame, em cada caso, do desvio finalístico do
exercício do direito. Daí sustentar-se que a transgressão de um dever legal
preexistente, no abuso de direito, é acidental e não essencial para
configurá-lo.
Se, por um lado, não se equipara o abuso de direito ao ato
ilícito, nem se coloca o instituto no campo da responsabilidade civil, como
conseqüência prática, por outro lado, a reparação do dano causado será sempre
feita como se se tratasse de um ato ilícito. Isso quando não houver forma
específica de reparação no ordenamento.
O vigente estatuto inclui texto sobre abuso de direito, na
categoria dos atos ilícitos, com a seguinte redação: “também comete ato ilícito
o titular de um direito que, no exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”
(artigo 187).
O atual Código, de forma elegante e concisa, prescinde da noção de
culpa no artigo 187 para adotar o critério objetivo-finalístico. É válida,
portanto, a afirmação de que o critério de culpa é acidental e não essencial
para a configuração do abuso. Adota ainda a novel lei, ao assim estabelecer, a
corrente majoritária em nosso meio.
Fonte: Direito Civil – Parte Geral. Sílvio de Salvo Venosa.