domingo, 20 de março de 2011

Ação Penal II

Ação Penal Privada
Enquanto, no que se refere à ação pública condicionada, o Estado permanece responsável pela persecução penal, dependendo unicamente da autorização da vítima, nas ações privativas do ofendido ele intervém apenas como custus legis, zelando pela correta aplicação da lei penal.
A regra é que a legitimação ativa para a ação privada seja atribuída ao ofendido, quando capaz, a quem caberá avaliar a conveniência e a oportunidade da instauração da ação penal.
Tratando-se de ofendido menor de 18 anos, a lei não reconhece a ele capacidade processual para estar em Juízo, atribuindo-a ao seu representante legal; na inexistência deste, cujo poder de representação decorra da lei, ou, se tiver, houver conflito de interesse entre ambos, o Juiz deverá, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, nomear curador especial para a defesa de seus interesses. Igual procedimento será adotado quando se tratar de pessoa incapaz, mentalmente enferma ou retardada mental.
Nos termos do artigo 34 do Código de Processo Penal, se o ofendido for maior de 18 anos e menor de 21 anos, a ação penal poderia ser instaurada tanto por ele quanto por seu representante legal, prevendo a lei verdadeira hipótese de legitimação concorrente, nada impedindo, também, a formação de litisconsórcio entre ambos.
A nova legislação civil alterou significativamente a questão relativa à menoridade para a prática de atos de natureza civil. Atenta a reflexos dessa modificação no âmbito de outros ramos do Direito, o Código Civil fez constar expressamente em seu artigo 2.043: “até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constantes de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este Código”.
Com o artigo 10 da Lei n.º 10.792/2003 revoga expressamente o contido no artigo 194 do Código de Processo Penal (“se o acusado for menor, proceder-se-á ao interrogatório na presença do curador”), parece irrecusável a conclusão no sentido de que o legislador processual penal acolheu definitivamente a redução da incapacidade civil feita pelo Código Civil.
O artigo 2.043 do Código Civil não é suficiente para afastar a legitimação exclusiva do ofendido maior de 18 anos, tanto para o exercício da renúncia e do perdão. Semelhante entendimento melhor se consolida com as novas disposições da Lei n.º 10.792/2003, no ponto em que se revogou a exigência da nomeação de curador ao réu menor de 21 anos para fins de interrogatório.
No caso de morte ou ausência da vítima, declarada esta judicialmente, a lei prevê especial hipótese de legitimação anômala, admitindo a sucessão do ofendido pelo seu cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, devendo ser obedecida a ordem de preferência. Entretanto, qualquer uma delas poderá prosseguir na ação já instaurada, caso o querelante (isto é, cônjuge, ascendente, descendente ou irmão) desista ou abandone instância.
A existência de um poder discricionário do ofendido, ou dos demais legitimados, únicos árbitros da conveniência, e oportunidade de se instaurar a ação penal nos crimes cuja persecução seja de iniciativa privada. Ao contrário, pois, da ação penal pública (incondicionada ou condicionada), a ação privada encontra-se na esfera de disponibilidade de seu titular ou a tanto legitimado.
Por renúncia há de se entender a abdicação ou recusa do direito à propositura da ação penal, por meio da manifestação da vontade o não-exercício dela no prazo previsto em lei. A renúncia, portanto, é modalidade de extinção da punibilidade (artigo 107, inciso V do CP) antes da instauração da ação penal. A lei prevê que a renúncia pode ser manifestada tanto de maneira expressa quanto tacitamente.
Por renúncia tácita deve-se entender a prática de ato incompatível com a vontade de exercer o direito à ação penal, admitindo-se quaisquer meios de prova para a sua demonstração. Nos termos do artigo 104 do Código Penal, não implica renúncia o fato de o ofendido receber a indenização do dano causado pelo crime.
Tratando-se de ofendido menor de 18 anos, diante de sua incapacidade processual (de estar em Juízo), o direito de queixa (e, assim, o de renúncia a este direito) é atribuído exclusivamente ao seu representante legal.
Se o ofendido é menor de 18 anos, não tendo ele capacidade de estar em Juízo, somente o seu representante legal poderá ingressar com a ação privada; do mesmo modo, somente o representante legal poderá renunciar e conceder perdão (artigos 33, 50 e 33 do CPP).
Quando o ofendido menor completar a idade de 18 anos, ele poderá ingressar com a queixa (artigo 50, parágrafo único do CPP), se e desde que ainda não tenha se operado a decadência em relação ao seu então representante legal. É dizer: como o prazo decadencial para o ingresso em Juízo nas ações privadas, em regra, é de seis meses, contados a partir do conhecimento da autoria do fato, uma vez superado esse prazo antes de o ofendido completar 18 anos, o caso é de não-aplicação do parágrafo único do artigo 50 do Código de Processo Penal, por já se encontrar extinta a punibilidade.
Todavia, se quando o ofendido completar 18 anos ainda estiver em curso o prazo decadencial para o exercício da queixa, poderá ele, e agora, somente ele, ingressar em Juízo, no prazo ainda restante, tendo em vista a superveniente perda do poder de representação por parte do representante legal.
Isso não será possível, porém, se já tiver havido a renúncia por parte do representante legal, antes de o ofendido completar 18 anos, quando se fará presente causa extintiva de punibilidade.
Feita a renúncia antes de o ofendido completar 18 anos, extingue-se a punibilidade, salvo a hipótese do artigo 33 do Código de Processo Penal, relativa à eventual nulidade da renúncia, por vício na representação dos interesses do menor. Completados 18 anos, somente o ofendido poderá renunciar ao direito de queixa, se ainda existente, não mais vigorando, pois, a legitimação concorrente do representante legal, porque inexistente tal figura.
A perempção é a perda do direito de prosseguir na ação penal já instaurada, cujo efeito é a extinção de punibilidade, consoante o disposto no artigo 107, inciso IV do Código Penal.
Considera-se perempta a ação penal quando, iniciada, o querelante deixar de promover o andamento do processo durante 30 dias seguidos (artigo 60, inciso I do CPP). Obviamente, como a razão da lei é a celeridade e a exigência de demonstração, pelo ofendido, da efetiva lesão causada pelo fato, somente se reconhecerá a perempção em tal hipótese desde que seja regularmente intimado o querelante (ele e seu procurador) para a adoção de providências necessárias ao impulso do processo.
Configura também causa de perempção o fato de deixar o autor (querelante) de comparecer, sem motivo justificado, a qualquer ato do processo a que deva estar presente, ou, ainda, deixar de formular pedido de condenação nas alegações finais (artigo 60, inciso III do CPP).
É importante registrar a presença do querelante aos atos do processo somente pode ser exigida em relação aos atos de natureza instrutória, ou seja, naquele em que a sua participação é relevante para a apuração dos fatos.
É causa de perempção, ainda, a morte do querelante sem sucessores, ou quando, havendo sucessores, estes não se habilitarem a prosseguir na ação no prazo de 60 dias, ou quando, tratando-se de pessoa jurídica, esta se extinguir sem deixar sucessor (artigo 60, incisos II e IV do CPP).
O perdão é ato bilateral, cuja eficácia depende assim, da aceitação do querelado ou de quem tenha poderes para representá-lo na hipótese de sua incapacidade (artigo 55 do CPP).
O perdão pode ser expresso ou tácito, dentro ou fora do Juízo, devendo o querelado ser intimado, quando declarado nos autos, para, no prazo de 3 dias manifestar sobre ele, constando da intimação, necessariamente, que o seu silêncio, no referido prazo, implicará a aceitação (artigo 58 do CPP).
Como legitimação ativa para a referida ação pertence agora exclusivamente ao maior de 18 anos, também, a ele, unicamente, caberá ao direito de perdoar o querelado, não havendo quem possa se opor a esse perdão, diante do desaparecimento (ainda que não na lei processual penal, por força do artigo 2.043 do CC) do representante legal previsto no artigo 52 do Código de Processo Penal.
Quando se tratar de aceitação do perdão, portanto de ato do querelado, o Juiz não deve mais nomear a ele um curador. É que, se nem sequer é necessária a nomeação de um curador ao réu menor de 21 e maior de 18 anos para o interrogatório, ato tipicamente de defesa, não há razão alguma para fazê-lo por ocasião da aceitação do perdão.
Quando ambos, querelante e querelado, forem incapazes, tanto a concessão do perdão quanto sua aceitação caberão ao curador que o Juiz lhes nomear (artigos 33 e 53 do CPP).
A renúncia é manifestada antes da ação penal, enquanto o perdão é posterior ao oferecimento da queixa, podendo ser concedido até antes do trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 106, § 2º do CP).
Por indivisibilidade da ação penal deve-se entender a impossibilidade de se fracionar a persecução penal, isto é, de se escolher ou optar pela punição de apenas um ou alguns dos autores do fato, deixando-se os demais, por qualquer motivo, excluídos da imputação delituosa.
Encontra-se, frequentemente, nos manuais de processo penal, a afirmação de que, se o querelante deixa de incluir alguns dos autores do fato, a queixa deve ser rejeitada, aplicando-se a regra de extensão da renúncia – tácita, pela não-inclusão – aos querelados mencionados na peça inicial. Mirabete entende que o Ministério Público tem poderes para aditar a queixa, inclusive para nela incluir co-autor ou partícipe cuja autoria ou participação não tenha sido vislumbrada pelo querelante.
A não-ocorrência com o indiciamento açodado feito pela autoridade policial, ou o simples esquecimento, ou erro de digitação da queixa, não podem nunca justificar a rejeição dela e, muito menos, a extinção de punibilidade por uma renúncia que jamais ocorreu.
Tratando-se de ações reservadas à iniciativa do ofendido, a legislação processual penal cuidou de estabelecer prazos de características distintas daqueles previstos para o exercício da ação penal pública, em razão, sobretudo, da natureza privada da disputa judicial a ser travada a partir do comentimento da infração penal.
Assim, com os olhos voltados para rápida solução do conflito e pacificação dos espíritos, optou-se – o contrário do prazo prescricional, mais dilatado e tradicionalmente sujeito à interrupção e suspensão – pela estipulação de prazo decadencial, muito menos elástico e, por definição conceitual, avesso aos incidentes de paralisação na sua fluência temporal.
O Código de Processo Penal prevê, como regra comum à generalidade das ações privadas, o prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa, contados a partir da datam em que o legitimado venha a conhecer a autoria do fato (artigo 38 do CPP).
Concretamente, não se encontrará um representante legal do maior de 18 anos (menor de 21). Se a representação decorria da lei, parece irrecusável a conclusão no sentido de seu desaparecimento, no plano da realidade, quando não há mais legislação dispondo nesse sentido.
Perdeu aplicabilidade, portanto, o disposto no Enunciado n.º 594 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, que disponha acerca da existência de dois prazos decadenciais para o ajuizamento da ação penal privada: um para o ofendido, menor de 21 e maior de 18 anos, e outro para seu representante legal.
Para alguns crimes praticados por meio da imprensa, a Lei n.º 5.250/67 prevê o prazo de apenas três meses para o exercício do direito de queixa e de representação (artigo 41, § 1º), com a particularidade de queixa e de representação do prazo, conforme se observa do mesmo dispositivo (artigo 4, § 2º).
Nos crimes contra a propriedade imaterial, prevê o artigo 529 do Código de Processo Penal, que a queixa, quando fundada em apreensão e perícia, deve ser oferecida até 30 dias após a homologação do laudo pericial (artigo 527 do CPP), decadencial o prazo, portanto.
A razão pela qual o tratamento das ações privadas relativamente aos crimes contra os costumes merece ser destacado reside nas peculiaridades que cercam semelhantes modalidades de delitos, submetidos ora à persecução via ação pública, ora via ação pública condicionada à representação, ora, finalmente, e, como regra, à iniciativa privada.
O artigo 101 do Código Penal diz que “quando a lei considera como elemento ou circunstâncias do tipo penal fatos que, por si mesmos, constituem crimes, cabe ação pública em relação àquele, desde que, em relação a qualquer destes, se deva proceder por iniciativa do Ministério Público”.
Por esta razão, passou-se a entender que o estupro, quando praticado com violência real – isto é, física –, seria objeto de ação penal pública incondicionada, em razão de ser também de ação pública a persecução dos crimes de lesão corporal (artigo 129 do CP). É exatamente neste sentido a redação do Enunciado n.º 608 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. No mesmo plano, embora não explicitado, deve ser situado o crime de atentado violento ao pudor, quando praticado com a mesma violência real.
A Suprema Corte vem decidindo que o estupro e o atentado violento ao pudor, praticados em quaisquer de duas formas, simples ou qualificadas, caracterizam-se como crimes hediondos, independentemente do resultado qualificado previsto no artigo 223 do Código Penal.
A regra geral é ação privada, para crimes praticados sem violência real; caso ocorra, a ação será sempre pública incondicionada. Mesmo tratando-se de vítima menor de 14 anos ou de pessoa alienada mental ou que não possa oferecer resistência, a ação é privada, quando praticado o crime sem violência real.
Exceções: crimes praticados com abuso do pátrio poder ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador, a ação será sempre pública incondicionada, ainda que sem violência real (artigo 225, § 1º, inciso II do CP). Quando a vítima e seus pais não puderem prover as despesas do processo sem se privar de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família, a ação será pública condicionada à representação (artigo 225, § 1º, inciso I do CP).



Ação privada personalíssima
Ainda na linha da discricionariedade, a nossa legislação, para determinados delitos, reserva exclusivamente o juízo de conveniência acerca da propositura da ação penal, não sendo facultada a ninguém a substituição processual em caso de morte ou ausência do interessado.
É o que ocorre na hipótese do crime contra o casamento definido no artigo 236 do Código Penal (induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento, no casamento), cuja ação penal deverá ser promovida unicamente pelo contraente enganado, depois de transitada em julgado a decisão que anular o csamento.

Fonte: Curso de Processo Penal. Eugênio Pacelli de Oliveira.

Poder de Polícia

As limitações ao exercício da liberdade e da propriedade correspondem à configuração em sua área de manifestação legítima, isto é, da esfera jurídica de liberdade e da propriedade tuteladas pelo sistema. É precisamente esta razão pela qual as chamadas limitações administrativas à propriedade não são indenizáveis. Posto que através de tais medidas de polícia não há interferência onerosa a um direito, mas tão-só definição que giza suas fronteiras, inexiste o gravame que abriria ensanchas a uma obrigação pública de reparar.
Para caracterizar este setor de atividade estatal, compreensivo tanto das leis que delineiam o âmbito da liberdade e da propriedade (isto é, que dimensionam tais direitos) quanto dos atos administrativos que lhes dão execução, usa-se a expressão “poder de polícia” – a atividade estatal de condicionar a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos.
A expressão, em sentido amplo, abrange tanto atos do legislativo quando do Executivo. Refere-se, pois, ao complexo de medidas do Estado que delineia a esfera juridicamente tutelada da liberdade e da propriedade dos cidadãos.
A expressão “poder de polícia” pode ser tomada em sentido mais restrito, relacionando-se unicamente com as intervenções, quer gerais e abstratas, como os regulamentos, quer concretas e específicas (tais autorizações, as licenças, as injunções), do Poder Executivo destinadas a alcançar o mesmo fim de prevenir e obstar ao desenvolvimento de atividades particulares contrastantes com os interesses sociais. Esta acepção mais limitada responde à noção de polícia administrativa.
O poder expressável através da atividade de polícia administrativa é o que resulta de sua qualidade de executora das leis administrativas.
O poder, pois, que a Administração exerce ao desempenhar seus encargos de polícia administrativa repousa nesta, assim chamada, “supremacia geral”, que, no fundo, não é senão a própria supremacia das leis em geral, concretizadas através de atos da Administração.
Bem por isso, não se confundem com a polícia administrativa as manifestações impositivas da Administração que, embora limitadoras da liberdade, promanam de vínculos ou relações específicas firmadas entre o Poder Público e o destinatário de sua ação.
Assim, estão fora do campo da polícia administrativa os atos que atingem os usuários de um serviço público, a ele admitidos, quando concernentes àquele especial relacionamento. Da mesma forma, excluem-se de seu campo, por igual razão, os relativos aos servidores públicos e concessionários de serviços públicos.
É corrente da doutrina alemã e nas doutrinas italiana e espanhola, a distinção entre a supremacia geral da Administração sobre os administrados e a supremacia especial ou relação especial de sujeição.
De acordo com tal formulação doutrinária, a Administração, com base em sua supremacia geral, como regra não possui poderes para agir senão extraídos diretamente da lei. Diversamente, assistir-lhe-iam poderes outros, não sacáveis diretamente da lei, quando estivesse assentada em relação específica que os conferisse. Seria esta relação, portanto, que, em tais casos, forneceria o fundamento jurídico atributivo do poder de agir.
É inequivocamente reconhecível a existência de relações específicas intercorrendo entre o Estado e um círculo de pessoas que nelas se inserem, de maneira a compor situação jurídica muito diversa da que atina à generalidade das pessoas, e que demandam poderes específicos, exercitáveis, dentro de certos limites, pela própria Administração.
Os vínculos que se constituíram são, para além de qualquer dúvida ou entredúvida, exigentes de uma certa disciplina interna para funcionamento dos estabelecimentos em apreço, a qual, de um lado, faz presumir certas regras, certas imposições restritivas, assim como, eventualmente, certas disposições benéficas, isto é, favorecedoras, umas e outras tendo em vista regular a situação dos que se inserem no âmbito de atuação das instituições em apreço e que não têm como deixar de ser parcialmente estabelecidas na própria intimidade delas, como condição elementar de funcionamento das sobreditas atividades.
É igualmente reconhecível que seria impossível, impróprio e inadequado que todas as convenientes disposições a serem expedidas devessem ou mesmo pudessem estar previamente assentadas em lei e unicamente em lei, com exclusão de qualquer outra fonte normativa.
Enquanto não construirmos categorias próprias para explicar detidamente as aludidas situações, há que aceitar a categoria das relações especiais de sujeição – ainda que bastante reformadas em relação a sua formulação de origem – de tal sorte que todas as discussões erigíveis ao respeito delas, para se manterem dentro do campo de um impostergável realismo, cifrar-se-ão a indagar sobre sãs condições e limites de exercícios dos poderes que comportam.
Assim, pode-se entender como indispensável, pelo menos, os seguintes condicionantes positivos de quaisquer destes poderes (sejam restritivos, sejam ampliativos), a saber:
a) tenham que encontrar seu fundamento último em lei que, explícita ou implicitamente, confira aos estabelecimentos e órgãos públicos em questão atribuições para expedir ditos regramentos, os quais consistirão em especificações daqueles comandos;
b) que os referidos poderes possam exibir seu fundamento imediato naquelas mesmas relações de sujeição especial, tal como, poderes contratuais encontram fundamento no contrato;
c) restrinjam suas disposições ao que for instrumentalmente necessário ao cumprimento das finalidades que presidem ditas relações especiais;
d) mantenham-se rigorosamente afinadas com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, de sorte que todo excesso se configure como inválido; e
e) conservem seu objeto atrelado ao que for relacionado tematicamente e, em geral, tecnicamente com a relação especial que esteja em causa.
Por outro lado, seriam seus condicionantes negativos:
a) não podem infirmar qualquer direito ou dever, ou seja, não podem contrariar ou restringir direitos, deveres ou obrigações decorrentes de norma (princípio ou regra) de nível constitucional ou legal, nem prevalecer contra a superveniência destes;
b) não podem extravasar, em relação aos abrangidos pela supremacia especial (por suas repercussões), nada, absolutamente nada que supere a intimidade daquela específica relação de supremacia especial;
c) não pode exceder em nada, absolutamente nada, o estritamente necessário para o cumprimento dos fins da relação de supremacia especial em causa;
d) não podem produzir, por si mesmas, conseqüências que restrinjam ou elidam interesses de terceiros, ou os coloquem em situação de dever, pois, de tal supremacia, só resultam relações circunscritas à intimidade do vínculo entretido entre Administração e quem nele se encontre internado. Ressalvam-se, apenas, as decisões cujo efeito sobre este, por simples conseqüência lógica irrefragável, repercuta na situação de um terceiro.
Os atos encartados n âmbito das relações de sujeição especial não se enquadram no campo do poder de polícia, isto é, das “limitações administrativas à liberdade e à propriedade”.
O poder de polícia tem, contudo, na quase-totalidade dos casos, um sentido realmente negativo, mas em acepção diversa da examinada. É negativo no sentido de que através dele o Poder Público, de regra, não pretende uma atuação do particular, pretende uma abstenção. Por meio dele normalmente não se exige nunca um facere, mas um non facere. Por isso mesmo, antes que afirmar o seu caráter negativo, no sentido que usualmente se toma – o que é falso – deve-se dizer que a utilidade pública é, no mais das vezes, conseguida de modo indireto pelo poder de polícia, em contraposição à abstenção direta de tal utilidade, obtida através dos serviços públicos.
O que os aparta, então, é, de um lado, o alcance direto ou indireto da utilidade coletiva, e, de outro lado, a circunstância de que, enquanto os serviços públicos se traduzem em prestações de utilidade ou comodidade oferecidas pelo Estado ou quem lhe faça as vezes, o poder de polícia corresponde à atividade estatal que não almeja outra coisa senão uma abstenção dos particulares.
Convém dizer, entretanto, que há uma outra ordem de casos em que se excepciona esta característica do poder de polícia. É a que respeita ao condicionamento do uso da propriedade imobiliária a fim de que se conforme ao atendimento da função social. Enquadram-se na caracterização das leis do poder de polícia as que imponham ao proprietário uma atuação em prol de ajustar o uso de sua propriedade à função social.
São traços característicos da atividade de polícia: a) provir privativamente de autoridade pública; b) ser imposta coercitivamente pela Administração; c) abranger genericamente as atividades e propriedades.
Uma vez que o poder de polícia se caracteriza – normalmente – pela imposição de abstenções aos particulares, não há que imaginá-lo existente em manifestações da Administração que, contrariamente, impõem prestações positivas aos administrados, sujeitando-os a obrigações de dar, como nas requisições de bens, ou de fazer, como nas requisições de serviços.
Em umas e outras o Poder Público impõe a particular um dever de agir, ao passo que através da polícia administrativa exige-se, de regra, uma inação, um non facere. Às vezes há, aparentemente, obrigação de fazer (por exemplo, exibir planta para licenciamento de construção). É mera aparência de obrigação de fazer. O Poder Público não quer esses atos. Quer, sim, evitar que as atividades ou situações pretendidas pelos particulares sejam efetuadas de maneira perigosa ou nociva, o que ocorreria se realizadas fora destas condições. Quando o Poder Público quer o próprio resultado só pode obtê-lo mediante ação dos particulares através da requisição de bens ou serviços, imposta pela lei dentro das condições e limites constitucionalmente previstos.
Não se deve, ainda, confundir tais situações com as que derivam das servidões administrativas, via de regra caracterizadas por um pati, ou seja, um dever de suportar.
Enquanto o através do poder de polícia – nas chamadas limitações administrativas – o dano social é evitado (ou, reversamente, o interesse coletivo é obtido), pelo simples ajustamento do exercício da propriedade ao bem comum, nas servidões administrativas o bem particular é colocado sob parcial senhoria da coletividade.
Na servidão o bem é contemplado como já sendo portador de uma utilidade que o Poder Público deseja captar em proveito da coletividade; através da limitação administrativa, a utilidade a ser oferecida pelo bem nasce, juridicamente, da vedação imposta ao administrado de atuar de maneira contrária ao que foi definido como interesse público.
No poder de polícia é idéia predominante a vedação de um comportamento; na servidão, diversamente, predomina a idéia de auferir, especificamente, um valor positivo da coisa, previamente reconhecido como existente nela in actu, não in potentia.
Dado que o poder de polícia administrativa tem em mira cingir a livre atividade dos particulares, a fim de evitar uma conseqüência que dela poderia derivar, o condicionamento que impõe requer frequentemente a prévia demonstração de sujeição do particular aos ditames legais. Assim, este pode se encontrar na obrigação de não fazer alguma coisa até que a Administração verifique que a atividade por ele pretendida se realizará segundo padrões legalmente permitidos.
Costuma-se, mesmo, afirmar que se distingue a polícia administrativa da polícia judiciária com base no caráter preventivo da primeira e repressivo da segunda. Contudo, frequentemente, a Administração, no exercício da polícia administrativa, age repressivamente. Só se poderá considerá-la preventiva relativamente, isto é, em relação aos futuros danos outros que adviriam da persistência do comportamento permitido.
O que efetivamente aparta a polícia administrativa da polícia judiciária é que a primeira se predispõe unicamente a impedir ou paralisar atividades anti-sociais enquanto a segunda se preordena à responsabilização dos violadores da ordem pública.
A importância da distinção entre polícia administrativa e polícia judiciária está em que a segunda regre-se na conformidade da legislação processual penal e a primeira pelas normas administrativas.
A polícia administrativa manifesta-se tanto através de atos normativos e de alcance geral quanto de atos concretos e específicos. Regulamentos ou portarias, bem como as normas administrativas que disciplinem horários e condições de vendas de bebidas alcoólicas em certos locais, são disposições genéricas próprias da atividade de polícia administrativa.
De outro lado, injunções concretas, como as que exigem a dissolução de uma reunião subversiva, apreensão de edição de revistas ou jornal que contenha reportagem sediciosa, são atos específicos de polícia administrativa praticados em obediência a preceitos legais e regulamentares.
Cumpre agregar que a atividade de polícia envolve também os atos fiscalizadores, através dos quais a Administração preventivamente acautela eventuais danos que poderiam advir da ação de particulares. Assim, a fiscalização de pesos e medidas por meio da qual o Poder Público se assegura de que uns e outros competentemente aferidos correspondem efetivamente aos padrões e, com isso, previne eventual lesão aos administrados, que decorreria de marcações inexatas.
Costuma-se afirmar que o poder de polícia é atividade discricionária. Em rigor, no Estado de Direito inexiste um poder, propriamente dito, seja discricionário fruível pela Administração. Há, isto sim, atos em que a Administração pode manifestar competência discricionária e atos a respeito dos quais a atuação administrativa é totalmente vinculada.
No caso específico da polícia administrativa é fácil demonstrá-lo. Basta considerar que, enquanto as autorizações, atos típicos da polícia administrativa, são expedidas no uso de competência exercitável discricionariamente, as licenças, expressões igualmente típicas dela, são atos vinculados, consoante pacífico entendimento da doutrina. Basta a consideração de tal fato para se perceber que é inexato o afirmar-se que o poder de polícia é discricionário. Pode-se, com propriedade, asseverar, isto sim, que a polícia administrativa se expressa ora através de atos no exercício da competência discricionária, ora através de atos vinculados.
Pode-se definir a polícia administrativa como a atividade da Administração, expressa em atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação ora fiscalizadora, ora preventiva, ora repressiva, impondo coercitivamente aos particulares um dever de abstenção (non facere), a fim de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados no sistema normativo.
É corrente na doutrina francesa a distinção entre polícia geral e especial. Entre nós não tem qualquer sentido estabelecer o citado discrímen. Com efeito, há uma razão peculiar no Direito francês para a separação em tela. Entende-se como polícia geral a atividade de limitação ao exercício da liberdade e da propriedade dos indivíduos quando preordenada a assegurar tranqüilidade, a segurança e a salubridade públicas. Polícia especial seria aquela concernente aos outros diversos ramos de atuação da polícia administrativa.
No Brasil só existem regulamentos executivos, isto é, para fiel execução das leis. Foge à alçada regulamentar inovar na ordem jurídica. Para nós, então, não interessa indagar se se trata de segurança, ordem ou salubridade públicas, ou qualquer outro setor, um vez que se encontram niveladas todas as intervenções da Administração.
Os atos jurídicos expressivos de poder público, de autoridade pública, e, portanto, os de polícia administrativa, certamente não poderiam, ao menos em princípio e salvo circunstâncias excepcionai ou hipóteses muito específicas, ser delegados a particulares, ou ser por ele praticados.
Daí não se segue, entretanto, que certos atos materiais que precedem atos jurídicos de polícia não possam ser praticados por particulares, mediante delegação, propriamente dita, ou em decorrência de um simples contrato de prestação. Em ambos os casos (isto é, com ou sem delegação), às vezes, tal figura aparecerá sob o rótulo de credenciamento – por exemplo, na fiscalização do cumprimento de normas de trânsito mediante equipamentos fotossensores.
Há, ainda, a possibilidade de particulares serem encarregados de praticar ato material sucessivo a ato jurídico de polícia, isto é, de cumprimento deste, quando se trate de executar materialmente ato jurídico interferente apenas com a propriedade dos administrados; nunca, porém, quando relativo à liberdade dos administrados. Tome-se como exemplo a possibilidade de a Administração contratar com empresa privada a demolição ou implosão de obras efetuadas irregularmente e que estejam desocupadas, se o proprietário do imóvel recalcitrar em providenciá-las por seus próprios meios.
Existe, finalmente, a hipótese na qual ato jurídico de polícia inteiramente vinculado pode ser expedido por máquina que sirva de veículo de formação e transmissão de decisão do próprio Poder Público (no caso de parquímetros que expeçam auto de infração), inobstante o equipamento pertença a um contratado e esteja sob sua guarda e manutenção.
Salvo hipóteses excepcionalíssimas, não há delegação de ato jurídico de polícia a particular e nem a possibilidade de que este o exerça a título contratual. Pode haver, entretanto, habilitação do particular à prática de ato material preparatório ou sucessivo a ato jurídico desta espécie, nos termos e com as limitações supra-assinaladas.
As medidas de polícia administrativa frequentemente são autoexecutórias: isto é, pode a Administração promover, por si mesma, independentemente de remeter-se ao Poder Judiciário, a conformação do comportamento do particular às injunções dela emanadas, sem necessidade de um prévio juízo de cognição e ulterior juízo de execução processado perante as atividades judiciárias.
Todas essas providências têm lugar em três diferentes hipóteses: a) quando a lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da medida for urgente para a defesa do interesse público e não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem sacrifício ou risco para a coletividade; c) quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento da medida de polícia.
É natural que seja no campo do poder de polícia que se manifesta de modo frequente o exercício da coação administrativa, pois os interesses coletivos defendidos frequentemente não poderiam, para eficaz proteção, depender das demoras resultantes do procedimento judicial, sob pena de perecimento dos valores sociais resguardados através das medidas de polícia, respeitadas, evidentemente, entretanto, as garantias individuais do cidadão constitucionalmente estabelecidas.
A utilização dos meios coativos por parte da Administração é uma necessidade imposta em nome da defesa dos interesses públicos. Tem, portanto, na área de polícia, como em qualquer outro setor de atuação da Administração, um limite conatural ao ser exercício. Esse limite é o atingimento da finalidade legal em vista da qual foi instituída a medida de polícia.
É preciso que a Administração se comporte com extrema cautela, nunca se servindo de mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pretendido pela lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administração. Importa que haja proporcionalidade entre a medida adotada e a finalidade legal a ser atingida.
A vida da coação só é aberta para o Poder Público quando não há outro meio eficaz para obter o cumprimento da pretensão jurídica e só se legitima na medida em que é não só compatível como proporcional ao resultado pretendido e tutelado pela ordem normativa. Toda coação que exceda ao estritamente necessário à obtenção do efeito jurídico licitamente desejado pelo Poder Público será antijurídica.
Este eventual excesso pode se apresentar de dois modos: a) a intensidade da medida é maior que a necessária para a compulsão do obrigado; b) a extensão da medida é maior que a necessária para obtenção dos resultados licitamente perseguíveis.
Pode-se dizer, em suma, que a polícia administrativa propõe-se a salvaguardar os seguintes valores: a) de segurança pública; b) de ordem pública; c) de tranquilidade pública; d) de higiene e saúde públicas; e) estéticos e artísticos; f) históricos e pasigísticos; g) riquezas naturais; h) de moralidade pública; i) economia popular.
Como critério fundamental, procede-se dizer que é competente para dada medida de polícia administrativa quem for competente para legislar sobre a matéria.
Há vários assuntos relacionados como de competência da União que, quanto ao fundo, só a ela são pertinentes, mas que repercutem diretamente sobre intresses peculiares do Município e por isso mesmo são suscetíveis de serem por ele regulados e assegurados nos aspectos que interferem com a vida e a problemática municipais.
Deve-se entender que a atividade de polícia administrativa incumbe a quem legisla sobre a matéria, ficando, todavia, claro que a competência legislativa da União sobre os assuntos relacionados no artigo 22 da Constituição Federal não exclui competência municipal ou estadual, e, portanto, não exclui o poder de polícia destes, quanto aos aspectos externos à essência da matéria deferida à União. Haverá competência concorrente quando o interesse de pessoas políticas diferentes se justapõe. Assim, em matéria de segurança e salubridade públicas não é rara a ocorrência do fato.

Fonte: Curso de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello.