quinta-feira, 29 de julho de 2010

Inconstitucionalidade por Arrastamento ou por Consequência

O controle de constitucionalidade difuso tem como característica a potencialidade de ser encetado por qualquer Juiz ou Tribunal, diante de um determinado caso concreto.


Por sua vez, no controle concentrado, o que se busca é analisar a própria compatibilidade de um comportamento estatal (seja uma ação ou omissão) em face dos preceitos da Carta Magna. Em outras palavras, referido controle tem como verdadeiro objeto a análise do comportamento estatal – em regra, um ato normativo – em face da Constituição, podendo levar à expurgação do ato do ordenamento jurídico. O próprio pedido é a declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinado comportamento estatal, motivo pelo qual a decisão produz efeitos erga omnes.


Não é difícil constatar, assim, os motivos pelos quais o modelo de controle concentrado possui características próprias, que o diferenciam do controle difuso e dos demais processos intersubjetivos. Tais particularidades se refletem no tipo de processo em que se exerce o controle concentrado. Realmente, esta espécie de controle é veiculada em um processo objetivo, que não se confunde com os processos tradicionais, baseados em conflitos interpessoais e regidos pela clássica sistemática processual civil.


De acordo com o Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI n.º 1434, “o controle normativo de constitucionalidade qualifica-se como típico processo de caráter objetivo, vocacionado exclusivamente à defesa, em tese, da harmonia do sistema constitucional. A instauração desse processo objetivo tem por função instrumental viabilizar o julgamento da validade abstrata do ato estatal em face da Constituição da República. O exame de relações jurídicas concretas e individuais constitui matéria juridicamente estranha ao domínio do processo de controle concentrado de constitucionalidade”.


Desta feita, como não há pretensão particular a ser tutelada, o autor da ação não precisará demonstrar interesse jurídico próprio, nos moldes da sistemática processual comum. Terá apenas que, quando for o caso, comprovar a necessária pertinência temática, ou seja, a relação entre o objeto da ação e seus fins institucionais. Assim, como não defendem interesse próprio – e sim de tutela do ordenamento jurídico – os autores não são partes em sentido material, mas apenas em sentido formal.


Dentro desta mesma linha, o Supremo Tribunal Federal já afirmou que sequer existe lide a ser solucionada no processo de controle de constitucionalidade.


Ademais, interessante anotar que a causa de pedir, no controle concentrado, é aberta: apesar de o autor da ação ter o ônus de indicar os fundamentos jurídico de seu pedido, demonstrando as razões pelas quais entende que a Constituição foi violada – mais especificamente, quais os preceitos constitucionais que restaram infringidos e por quais motivos – tal fundamentação não vincula o Supremo Tribunal Federal. Este poderá considerar a norma inconstitucional por violação a outros dispositivos constitucionais que não os indicados pelo autor.


Conforme o princípio do pedido, o Tribunal encarregado da análise do controle concentrado de constitucionalidade não pode agir de ofício, em obediência à máxima nemo iudex sine actore. Deve, portanto, aguardar a provocação dos órgãos encarregados pela Constituição de levar a questão à análise do Tribunal Constitucional. Referido princípio foi admitido expressamente pela legislação brasileira, notadamente nos artigo 3º, inciso I e artigo 14, inciso I, ambos da Lei n.º 9868/99 e artigo 3º, inciso II da Lei n.º 9882/99.


Decorrência do princípio do pedido é o chamado princípio da congruência, segundo o qual a sentença deve manter congruência com o thema decidendum trazido a Juízo pelo autor. No caso, o objeto do processo ficaria circunscrito ao pedido formulado, não podendo ir além ou aquém da pretensão deduzida.


Os princípios e regras aplicáveis aos conflitos intersubjetivos devem ser reinterpretados à luz das características, finalidades e princípios marcantes do processo objetivo. Neste sentido, Jorge Miranda leciona que “o princípio dispositivo e, portanto, o do pedido sofrem adaptações noutros ramos de Direito processual – no penal, no administrativo e também no constitucional – em função das características próprias, designadamente quando não haja partes e domine o sentido objetivista, como sucede maximamente na fiscalização abstrata da constitucionalidade e legalidade”.


Portanto, fácil concluir que a inconstitucionalidade por arrastamento é um exceção aos princípios do pedido e da congruência, sendo admissível sua aplicação e razão das particularidades do processo objetivo e de outros fundamentos.


Em regra, a inconstitucionalidade se mostra antecedente e é aquela que decorre de um princípio explícita e diretamente feito na inicial, em que se faz um confronto direto entre o comportamento estatal e a Constituição. A inconstitucionalidade conseqüente vem a ser a que decorre como corolário desse juízo ou a que inquina certo ato por inquinar ato que ele depende.


A inconstitucionalidade por arrastamento ocorre quando a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo expressamente impugnado produz efeitos sobre um dispositivo não expressamente impugnado, ligados que estão pelo vínculo de dependência ou interdependência. Sobre este último dispositivo não impugnado, mas dependente ou interdependente do impugnado, afirma-se que houve inconstitucionalidade por arrastamento.


A inconstitucionalidade por arrastamento é uma hipótese de exceção ao princípio do pedido, pois, mesmo que não tenha havido pedido expresso de declaração de inconstitucionalidade da norma dependente, esta será atingida.


Ressalte-se que, de acordo com o princípio do pedido, o autor poderá pedir a inconstitucionalidade também da norma dependente, em conjunto com a outra da qual depende.


Como há uma relação de dependência ou interdependência entre as normas impugnadas, decorre de um princípio lógico que estas normas não podem, isoladamente, manter vida autônoma, sob pena de se violar o postulado segundo o qual o ordenamento jurídico é um sistema ordenado de normas.


Neste sentido, declarada a inconstitucionalidade de uma norma, as demais que daquela são dependentes ou interdependentes, devem ser atingidas também pela eiva da inconstitucionalidade.


A inconstitucionalidade por arrastamento também tutela a segurança jurídica, pois traria perplexidade aos jurisdicionados a existência de norma isolada no ordenamento jurídico destituída de sentido. Não é demais lembrar que o princípio da segurança jurídica foi expressamente previsto no artigo 5º, caput da Constituição Federal.


Pode-se extrair da sistemática legal a possibilidade de aplicação da inconstitucionalidade por arrastamento. O artigo 23 da Lei n.º 9868/99, ao tratar da Ação Direta de Inconstitucionalidade, dispõe que, efetuado o julgamento, será proclamada a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou norma impugnada, se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis Ministros do Supremo Tribunal Federal.


Diversas disposições legais, que possuam vínculos de dependência ou interdependência, poderão formar apenas uma norma. Por conseguinte, como o ordenamento jurídico permite o julgamento não apenas das disposições, mas também de normas formadas a partir de vários dispositivos legais, é perfeitamente possível que tanto o dispositivo declarado inconstitucional quanto o afetado por conseqüência formem apenas uma norma. Assim, quando o Supremo Tribunal Federal declara a inconstitucionalidade por arrastamento de dispositivo não explicitado na ação, estaria, em verdade, atingindo uma norma que foi expressamente impugnada, ao menos em parte.


A inconstitucionalidade por arrastamento vertical há uma relação hierárquica entre as normas dependentes, após a declaração de inconstitucionalidade da norma hierarquicamente superior, a norma inferior, que extrai seu fundamento daquela, perde sua validade por inconstitucionalidade por conseqüência.


Na inconstitucionalidade por arrastamento vertical o pressuposto é que tenha sido declarada a inconstitucionalidade da norma superior que serve de fundamento de validade de outra norma, hierarquicamente inferior. Justamente em razão desta relação de dependência é que a norma inferior é atingida pela declaração de inconstitucionalidade.


A inconstitucionalidade por arrastamento horizontal é aquela em que as normas estão no mesmo patamar hierárquico, ou seja, tanto a norma impugnada quanto a não impugnada (atingida pela inconstitucionalidade por arrastamento) estão na mesma hierarquia, no mesmo degrau da pirâmide normativa.


Na inconstitucionalidade por arrastamento horizontal por dependência intrínseca, uma norma está inserida no processo de elaboração de outra ou, ao menos, como antecedente lógico de seu processo de formação. Assim, ocorrendo a inconstitucionalidade da norma antecedente, terá, por arrastamento, a inconstitucionalidade da norma conseqüente. É decorrência do princípio da causalidade, segundo o qual a nulidade de um ato levará à de todos aqueles que dele diretamente dependem, ou seja, conseqüentes.


Em se tratando de medida provisória, o Supremo Tribunal Federal não tem aceito a aplicação da inconstitucionalidade por arrastamento, pois exige que a inicial seja aditada expressamente nas hipóteses, sob pena de perda do objeto.


A inconstitucionalidade por arrastamento horizontal por dependência extrínseca é aquela em que há uma dependência exterior entre as normas, não ligadas pelo processo de formação, mas sim pelo sentido delas.


A dependência extrínseca ocorre quando o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma faz com que se esvazie a validade de outra norma, seja porque deixa de ter qualquer significado autônomo (dependência unilateral), seja porque as normas faziam parte de uma sistemática normativa comum, que restou comprometida pela declaração de inconstitucionalidade de uma delas (interdependência).


A dependência extrínseca pode, ainda, ser por dependência unilateral ou por interdependência.


Na hipótese de dependência unilateral é possível verificar que a relação entre as normas é tal que, após a declaração de inconstitucionalidade, a norma dependente deixa de ter qualquer significado autônomo, perdendo sua funcionalidade dentro da sistemática jurídica. A relação entre as normas – ao menos em seu aspecto funcional dentro do sistema – é de principal para acessório e, como se sabe, este não pode subsistir sem aquele. Portanto, em razão da referida dependência, será necessária a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento da norma dependente, mesmo que não expressamente impugnada.


É possível afirmar que há inconstitucionalidade por arrastamento horizontal por interdependência entre as normas quando estas fazem parte de uma mesma sistemática jurídica, existindo um liame de sentido entre as normas que as tornam integrantes de um mesmo regramento legal. Justamente por isto – dentro deste contexto de interdependência entre as normas, fruto de uma sistemática única – é que se impende a declaração de inconstitucionalidade apenas de uma delas.


Na inconstitucionalidade por interdependência é até possível imaginar uma norma sem a outra, não sendo desarrazoado afirmar que possuem autonomia, ao menos se isoladamente considerada.


Porém, a relação de interdependência entre as normas traz inerente um sério risco: de que, com a declaração parcial de constitucionalidade, se altere a vontade original do legislador. Realmente, caso se declare a inconstitucionalidade de apenas uma das normas interdependentes é possível que se chegue a uma situação sequer prevista inicialmente pelo legislador.


Nestas situações em que o legislador originariamente não adotaria uma norma desacompanhada da outra, caso o Supremo Tribunal Federal declare apenas uma das normas interdependentes inconstitucional estaria a atuar como legislador positivo. Em outras palavras, causaria um desequilíbrio dentro da lei, alterando o conteúdo originariamente previsto pelo legislador e, assim, criando uma nova lei.


Diante disso, o Egrégio Tribunal tem corretamente se recusado a declarar a inconstitucionalidade parcial, sob o argumento da separação de Poderes. Porém, ao invés de aplicar a inconstitucionalidade por arrastamento, o Supremo Tribunal Federal tem, ao contrário, não conhecido das ações diretas nestes casos, por impossibilidade jurídica do pedido.



Fonte: Leituras Complementares de Direito Constitucional – Controle de Constitucionalidade de Hermenêutica Constitucional. Organizador: Marcelo Novelino. Inconstitucionalidade por Arrastamento ou por Consequência. Andrey Borges de Mendonça.

domingo, 25 de julho de 2010

Norma Penal – Interpretação e Integração

A norma jurídico-penal tem natureza interpretativa e endereça-se a todos os cidadãos genericamente considerados, através de mandados (imperativo positivo) ou proibições (imperativo negativo) implícita e previamente formulados, visto que a lei penal modernamente não contém ordem direta, mas vedação indireta, na qual se descreve o comportamento humano pressuposto da conseqüência jurídica.


De acordo com a Teoria de Binding, essa técnica de redação chega à conclusão de que o criminoso, na verdade, quando praticava a conduta descrita no núcleo do tipo, não infringia a lei – pois o seu comportamento se amoldava perfeitamente ao tipo penal incriminador –, mas, sim, a norma penal que se encontrava contida na lei e, por exemplo no artigo 121 do Código Penal, dizia não matarás.


Norma jurídica e lei são conceitos diversos. A primeira é o prius lógico da lei, sendo esta o revestimento formal daquela. A lei, segundo a Teoria de Binding, teria caráter descritivo da conduta proibida ou imposta, tendo a norma, por sua vez, caráter proibitivo ou mandamental.


Existem normas que, em vez de conterem proibições ou mandamentos os quais, se infringidos, levarão à punição do agente, possuem um conteúdo explicativo, ou mesmo têm a finalidade de excluir o crime ou isentar o réu de pena. São as chamadas normas penais não incriminadoras.


Às normas penais incriminadoras é reservada a função de definir as infrações penais, proibindo ou impondo condutas, sob a ameaça de pena. É a norma penal por excelência, visto que quando se fala em norma penal pensa-se, imediatamente, naquela que proíbe ou impõe condutas sob a ameaça de sanção. São elas, por isso, consideradas normas penais em sentido estrito, proibitivas ou mandamentais.


Quando analisamos os tipos penais incriminadores, podemos verificar que existem dois preceitos, o primário e o secundário. O primeiro deles, conhecido como preceito primário (preceptum iuris), é o encarregado de fazer a descrição detalhada e perfeita da conduta que se procura proibir ou impor; ao segundo, chamado preceito secundário (sanctio iuris), cabe a tarefa de individualizar a pena, cominando-a em abstrato.


As normas penais não incriminadoras, ao contrário, possuem as seguintes finalidades: a) tornar ilícitas determinadas condutas; b) afastar a culpabilidade do agente, erigindo as causas de isenção de pena; c) esclarecer determinados conceitos; d) fornecer princípios gerais para a aplicação da lei penal.


Portanto, podem ser as normas penais não incriminadoras subdivididas em: permissivas; explicativas ou complementares. As permissivas podem: justificantes, quando têm por finalidade afastar a ilicitude (antijuridicidade) da conduta do agente; exculpantes, quando se destinam a eliminar a culpabilidade, isentando o agente de pena. Normas penais explicativas são aquelas que visam esclarecer ou explicitar conceitos. Normas penais complementares são as que fornecem princípios gerais para a aplicação da lei penal.


Normas penais em branco ou primariamente remetidas são aquelas em que há uma necessidade de complementação para que se possa compreender o âmbito de aplicação de seu preceito primário. Isso significa que, embora haja uma descrição da conduta proibida, essa descrição requer, obrigatoriamente, um complemento extraído de outro diploma – leis, decretos, regulamentos, etc. - para que possam, efetivamente, ser entendidos os limites da proibição ou imposição dos efeitos pela lei penal, uma vez que, sem esse complemento, torna-se impossível a sua aplicação.


Muitas vezes o complemento de que necessita a norma penal em branco é fornecido por outra lei ou por outro diploma que não uma lei em sentido estrito. Por essa razão, a doutrina divide as normas penais em branco em dois grupos: homogêneas (em sentido amplo) e heterogêneas (em sentido estrito).


Diz-se homogênea a norma penal em branco quando o seu complemento é oriundo da mesma fonte legislativa que editou a norma que necessita desse complemento. É heterogênea a norma penal em branco quando o seu complemento é oriundo de fonte diversa daquela que a editou.


Discute-se na doutrina se as normas penais em branco heterogêneas ofendem ao princípio da legalidade. Parte da doutrina entende que sim, visto que o conteúdo da norma penal poderá ser modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a seu respeito, como acontece quando os projetos de lei são enviados para o Congresso Nacional, sendo levada em consideração a vontade do povo, além do necessário controle do Poder Executivo, que exercita o sistema de freios e contrapesos.


Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar ensinam que não é o simples demonstrar que a lei penal em branco não configura uma delegação legislativa constitucionalmente proibida. Argumenta-se que há delegação legislativa indevida quando a norma complementar provém de um órgão sem autoridade legiferante penal, ao passo que quando emergem da fonte geradora constitucionalmente legítima não se faz outra senão respeitar a distribuição da potestade legislativa estabelecida nas normas fundamentais.


Quando assim se teorizou, as leis penais em branco eram escassas e insignificantes. A massificação provoca uma mudança qualitativa: através das leis penais em branco o legislador penal estará renunciando à sua função programadora de criminalização primária, assim transferida a funcionários e órgãos do Poder Executivo, e incorrendo, ao mesmo tempo, na abdicação da cláusula ultima ratio, própria do Estado de Direito.


Tem prevalecido, no entanto, a posição doutrinária que entende não haver ofensa ao princípio da legalidade quando a norma penal em branco prevê aquilo que se denomina núcleo essencial da conduta.


A amplitude das regulamentações jurídicas que dizem respeito sobre as mais diversas matérias, sobre as quais pode e deve pronunciar-se o Direito Penal, impossibilita manter o grau de exigência de legalidade que se podia contemplar no século passado ou inclusive a princípio do presente.


Normas penais incompletas ou imperfeitas (secundariamente remetidas) são aquelas que, para saber a sanção imposta pela transgressão de seu preceito primário, o legislador nos remete a outro texto da lei. Assim, pela leitura do tipo penal incriminador, verifica-se o conteúdo da proibição ou mandamento, mas para saber a conseqüência jurídica é preciso se deslocar para outro tipo penal.


A anomia pode ser concebida de duas formas: em virtude da ausência de normas, ou ainda, embora existindo essas normas, a sociedade não lhes dá o devido valor, continuando a praticar as condutas por elas proibidas como se tais normas não existissem, pois que confiam na impunidade.


Antinomia é aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico e tendo o mesmo âmbito de validade. Se houver uma relação de contrariedade entre normas existentes num mesmo ordenamento jurídico, qual delas deverá ser aplicada? Com a finalidade de resolver o problema da antinomia jurídica, propõe-se a aplicação dos seguintes critérios: a) critério cronológico; b) o critério hierárquico; c) o critério da especialidade.


Fala-se em concurso aparente de normas quando, para determinado fato, aparentemente, existem duas ou mais normas que poderão sobre ele incidir. Diz-se, porém, que esse conflito é tão-somente aparente, porque se duas ou mais disposições se mostram aplicáveis a um dado caso, só uma dessas normas, na realidade, é que o disciplina.


O conflito, porque aparente, deverá ser resolvido com a análise dos seguintes princípios: especialidade, subsidiariedade, consunção e alternatividade.


Pelo princípio da especialidade, a norma especial afasta a aplicação da norma geral. É a regra expressa pelo brocardo lex specialis derrogat generali. Há, pois, em a norma especial um plus, isto é, um detalhe que sutilmente a distingue da norma geral.


Pelo princípio da subsidiariedade, a norma dita subsidiária é considerada como um “soldado de reserva”, isto é, na ausência ou impossibilidade de aplicação da norma principal mais grave, aplica-se a norma subsidiária menos grave. É a aplicação do brocardo lex primaria derrogat subsidiariae. A subsidiariedade pode expressa ou tácita. Diz-se expressa quando a própria lei faz a sua ressalva, deixando transparecer seu caráter subsidiário. Fala-se em subsidiariedade tácita ou implícita quando o artigo, embora não se referindo expressamente ao caráter subsidiário, somente terá aplicação nas hipóteses de não-ocorrência de um delito mais grave, que, neste caso, afastará a aplicação da norma subsidiária.


A diferença que existe entre especialidade e subsidiariedade é que, nesta, ao contrário do que ocorre naquela, os fatos previstos em uma e outra norma não estão em relação de espécie a gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa, a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como “soldado reserva” e aplicar-se pelo residum.


Pode-se falar em princípio da consunção nas seguintes hipóteses: a) quando um crime é meio necessário ou norma fase de preparação ou de execução de outro crime; nos casos de antefato e pós-fato impuníveis. Os fatos não se acham de species a genus, mas de minus a plus, de parte a todo, de meio a fim. Assim, a consunção absorve a tentativa e este absorve o incriminado ato preparatório.


O princípio da alternatividade terá aplicação quando estivermos diante de crimes tidos como de ação múltipla ou de conteúdo variado, ou seja, crimes plurinucleares, nos quais o tipo penal prevê mais de uma conduta de variados núcleos. Mirabete assevera que o princípio da alternatividade indica que o agente só será punido por uma das modalidades inscritas nos chamados crimes de ação múltipla, embora possa praticar duas ou mais condutas do mesmo tipo penal. A rigor, o princípio da alternatividade não diz respeito à hipótese de conflito aparente de normas.


Interpretação e Integração da Lei Penal


Numa primeira abordagem, pode-se dividir a interpretação em: a) objetiva (voluntas legis); b) subjetiva (voluntas legislatoris). Por meio da chamada interpretação objetiva busca-se descobrir a suposta vontade da lei; ao contrário, com a interpretação subjetiva procura-se alcançar a vontade do legislador.


A interpretação pode ser distinguida, ainda, quanto ao órgão (sujeito) de que emana, quanto aos meios que são utilizados para alcançá-la e, ainda, quanto aos resultados obtidos.


A interpretação, no que diz respeito ao sujeito que a realiza, pode ser: autêntica, doutrinária e judicial (vinculante e não vinculante).


Diz-se autêntica a interpretação realizada pelo próprio texto legal. Em determinadas situações, a lei, com a finalidade de espancar qualquer dúvida quanto a este ou aquele tema, resolve, ela mesma, no seu corpo, fazer a sua interpretação.


A interpretação autêntica ainda pode ser considerada: contextual e posterior. A primeira, é a interpretação realizada no mesmo momento em que é editado o diploma legal que se procura interpretar. Posterior a interpretação realizada pela lei, depois da edição de um diploma legal anterior.


Não sendo efetivamente uma lei, as conclusões e explicações levadas a efeito na exposição de motivos não podem ser consideradas como interpretações autênticas, mas sim doutrinárias.


Interpretação doutrinária é aquela realizada pelos aplicadores do Direito, ou seja, pelos Juízes de primeiro grau e magistrados que compõem os Tribunais.


Quanto aos meios empregados, a interpretação pode ser: literal (gramatical), teleológica, sistêmica (sistemática) ou histórica.


Interpretação literal ou gramatical é aquela em que o exegeta se preocupa, simplesmente, em saber o real e efetivo significado das palavras. O intérprete, obrigatoriamente, deve buscar o verdadeiro sentido e alcance das palavras para que possa dar início ao seu trabalho de exegese.


Já na interpretação teleológica busca alcançar a finalidade da lei, aquilo ao qual ela se destina regular. O método teleológico fundamentado na análise da finalidade da regra geral, no seu objetivo social, faz seu espírito prevalecer sobre sua letra, ainda que sacrificando o sentido terminológico das palavras.


Com a interpretação sistêmica, o exegeta analisa o dispositivo legal no sistema no qual ele está contido, e não de forma isolada. Interpreta-se com os olhos voltados para o todo, e não somente para as partes.


Por meio da interpretação histórica, o intérprete volta ao passado, ao tempo em que foi editado o diploma que se quer interpretar, buscando os fundamentos de sua criação, o momento pelo qual atravessada a sociedade.


Quanto aos resultados, a interpretação pode ser: declaratória, extensiva ou restritiva.


Na interpretação declaratória, o intérprete não amplia nem restringe o seu alcance, mas apenas declara a vontade da lei.


Interpretação restritiva é aquela em que o intérprete diminui, restringe o alcance da lei, uma vez que esta, à primeira vista, disse mais do que efetivamente pretendia (lex plus dixit quam voluit), buscando, dessa forma, apreender o seu verdadeiro sentido.


Ocorre a interpretação extensiva, para que se possa conhecer a exata amplitude da lei, o intérprete necessita alargar seu alcance, haja vista ter aquela dito menos do que efetivamente pretendia (lex minus dixit quam voluit).


Um recurso que amplia o alcance da norma penal é a interpretação analógica que quer dizer que a uma fórmula casuística, que servirá de norte para o exegeta, segue-se uma fórmula genérica. Primeiramente, o Código, atendendo ao princípio da legalidade, detalha todas as situações que quer regular e, posteriormente, permite que tudo aquilo que a elas seja semelhante possa também ser abrangido pelo mesmo artigo.


Por exemplo, no artigo 121, § 2º, inciso III do Código Penal, pode-se perceber que a uma fórmula casuística – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura – o Código fez seguir uma fórmula genérica – outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa regular perigo comum.


Percebe-se que, da mesma forma que a interpretação extensiva, a interpretação analógica amplia o conteúdo da lei penal, com a finalidade de nela abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador, mas que por ele também foram desejadas.


A interpretação extensiva é o gênero, no qual são espécies a interpretação extensiva em sentido estrito e a interpretação analógica. Se, para abranger situações não elencadas expressamente no tipo penal, o legislador nos fornecer uma fórmula casuística, seguindo-se a ela uma fórmula genérica, faz-se, aqui, uma interpretação analógica. Caso contrário, se, embora o legislador não nos tenha fornecido o padrão a ser seguido, tiver que se ampliar o alcance do tipo penal para alcançar hipóteses não previstas expressamente, mas queridas por ele, estar-se diante de uma interpretação extensiva em sentido estrito.


A interpretação conforme a Constituição é método de interpretação através do qual o intérprete, de acordo com uma concepção penal garantista, procura aferir a validade das normas mediante o seu confronto com a Constituição.


Mesmo depois de utilizados todos os meios necessários e adequados a fim de buscar o verdadeiro alcance da lei, se ainda persistir a dúvida no âmago do intérprete, pode-se aplicar o princípio in dubio pro reo.


No entanto, há correntes doutrinárias que divergem desse entendimento. A primeira delas aduz que, em caso de dúvida de interpretação, esta deve pesar em prejuízo do agente (in dubio pro societate). Já a segunda corrente preleciona que a dúvida de interpretação teria de ser resolvida pelo julgador, podendo ser contrária ou a favor do réu. A última corrente, de posição mais adequada aos métodos de interpretação da lei penal, preconiza que, havendo dúvida em matéria de interpretação, deve esta ser resolvida em benefício do agente (in dubio pro reo), posição defendida por Nelson Hungria.


Define-se analogia como uma forma de autointegração da norma, consistente em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição legal relativa a um caso semelhante, atendendo-se, assim, ao brocardo ubi eadem ratio, ubi eadem legis dispositivo.


Tudo aquilo que não for expressamente proibido é permitido em Direito Penal. As condutas que o legislador deseja proibir ou impor, sob a ameaça de sanção, devem vir descritas de forma clara e precisa, de modo que o agente as conheça e as entenda sem maiores dificuldades. O campo de abrangência do Direito Penal, dado o seu caráter fragmentário, é muito limitado.


É terminantemente proibido, em virtude do princípio da legalidade, o recurso à analogia quando esta for utilizada do modo a prejudicar o agente, seja ampliando o rol de circunstâncias agravantes, seja ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador.


A aplicação da analogia in bonam partem, além de ser perfeitamente viável, é muitas vezes necessária para que ao se interpretar a lei penal não chegar a soluções absurdas. A analogia in malam partem é aquela que, de alguma maneira, prejudica o agente; a chamada analogia in bonam partem, ao contrário, é aquela que lhe é benéfica.


É preciso, porém, notar que a analogia pressupõe falha, omissão da lei, não tendo aplicação quando estiver claro no texto legal que a mens legis quer excluir de certa regulamentação determinados casos semelhantes.


A analogia in malam partem significa a aplicação de uma norma que define o ilícito penal, sanção, ou consagre occidentalia delicti (qualificadora, causa especial de aumento de pena e agravante) a uma hipótese não contemplada, mas que se assemelha ao caso típico. Evidentemente, porque prejudica e contrasta o princípio da reserva legal, é inadmissível.




Fonte: Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rogério Grecco.

domingo, 18 de julho de 2010

Relação Jurídica de Consumo

O objetivo do Código de Defesa do Consumidor - CDC, ao proteger o consumidor, não é a simples proteção pela proteção em si, mas a busca permanente do equilíbrio do contrato entre o consumidor e o fornecedor de bens e serviços.


O CDC nada mais é do que uma tentativa de reequilibrar essa relação, tendo em vista a posição econômica favorável do fornecedor; impondo-se a necessidade de um equilíbrio mínimo em todas as relações contratuais de consumo.


Para que se dê a proteção do CDC, não basta simplesmente adquirir bens e serviços no mercado. Essa proteção só vai ser acionada se ocorrer a chamada relação de consumo. Relação esta onde deve estar presente um consumidor, como destinatário final de bens e serviços, e um fornecedor, que com habitualidade e profissionalidade fornece bens e serviços ao mercado.


A relação de consumo vai comportar dois elementos fundamentais: o subjetivo e o teleológico. O subjetivo manifesta-se na qualidade dos partícipes desta relação. É que necessariamente deverão estar envolvidos um fornecedor e um consumidor. Já o elemento teleológico se manifesta no fim da aquisição do bem ou serviço, qual seja, a destinação final. A doutrina fala também na presença de um elemento objetivo, que seria o produto ou serviço.


A lei brasileira procura definir juridicamente a pessoa do consumidor no artigo 2º do CDC: “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Pela leitura do artigo, depreende-se que não basta que o cidadão retire o produto do mercado, importa que ele o utilize como destinatário final. De plano, o comerciante não pode ser considerado consumidor, já que adquire o produto para a sua revenda, sendo, portanto, um intermediário, e não um destinatário final; destinatário este que vai ser justamente a pessoa a quem ele vai revender o bem.


Quando se adquire um produto ou serviço para uso profissional, não há como estar presente a destinação econômica. A ausência desta destinação revela-se na finalidade da aquisição do bem ou serviço, ou seja, um fim profissional. Aqui, está presente uma atividade econômica com claro intuito de lucro. E o que é um fim não profissional? É a aquisição de qualquer produto ou serviço para uso pessoal, sem qualquer objetivo profissional.


No que concerne à possibilidade de a pessoa jurídica ser considerada consumidora, no Brasil, em razão da previsão no texto legal chega-se a um impasse. Pode a pessoa jurídica ser vulnerável? Teria sentido uma intervenção brutal do Estado no contrato firmado por uma grande empresa? O Código não responde literalmente a essas indagações. Tal resposta está sendo amadurecida no debate doutrinário e jurisprudencial. Duas correntes doutrinárias, os finalistas e os maximalistas, apresentam respostas diferentes para essas questões.


Os maximalistas entendem que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire bens. Não importa que seja economicamente forte ou não, se adquiriu um produto ou serviço para utilizá-lo em sua atividade ou cadeia produtiva.


Para os finalistas é preciso fazer uma interpretação teleológica do conceito de destinação final, aproximando-o do conceito econômico de consumidor, que o qualifica como a ponta final da produção econômica do bem ou serviço, colocando fim à sua circulação no mercado. Daí ser necessário o desdobramento da destinação final em destinação fática e econômica.


A aquisição de produtos e serviços relacionados à atividade-fim da empresa a exclui do conceito de consumidora, bem como a aquisição de qualquer bem, fora da atividade-fim da pessoa jurídica, a inclui no conceito de consumidora.


A pessoa jurídica, em regra, só poderia ser considerada consumidora quando estivesse adquirindo um bem fora da sua atividade-fim. Evidente, então, que ela goza no mínimo da presunção de vulnerabilidade técnica, quando adquire um bem fora de sua atividade-fim. Pode não haver propriamente a sua vulnerabilidade econômica, mas ela pode vir a celebrar um mau contrato em face da falta de conhecimentos técnicos, por exemplo. Parece que a pessoa jurídica só deve ser chamada a demonstrar sua vulnerabilidade quando ela efetivamente requer a proteção não como consumidora stricto sensu, do artigo 2º, mas como consumidora equiparada do artigo 29. Isto porque o CDC, em nenhum de seus artigos, vincula à destinação final qualquer outro requisito.


É certo que o CDC, no artigo 4º, reconhece a vulnerabilidade do consumidor, e tal reconhecimento norteia toda política de proteção ao destinatário final de bens e serviços. Entretanto, esse reconhecimento não pode ser apenas para o consumidor pessoa física ou não profissional, quando o legislador não excepcionou a vulnerabilidade.


O CDC traz ainda mais três conceitos de consumidor, todos por equiparação, presentes no parágrafo único do artigo 2º e nos artigos 17 e 29. Consoante o parágrafo único do artigo 2º, “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. No artigo 17, diz que, para efeito da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, “equiparam-se a consumidores todas as vítimas do evento”. Já o artigo 29 do CDC vai equiparar a consumidores, para efeito de merecer proteção contra as práticas comerciais abusivas, todas as “pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”.


Pode-se dizer que contra os abusos cometidos pelo contrato de massa, que é o contrato de adesão, o legislador deu a consumidor um direito coletivo de “massa”.


Veja-se que com a concepção coletiva não só do direito material do parágrafo único do artigo 2º, mas também do direito processual, conforme se infere do artigo 81 e seguintes do CDC, uma simples ação intentada por qualquer dos legitimados do artigo 82 seria suficiente para a defesa de milhões de consumidores. Essa defesa pode amparar qualquer pretensão seja da simples retirada do produto do mercado seja do direito à indenização por danos morais e materiais em decorrência.


Ressalte-se, entretanto, que a equiparação do parágrafo único do artigo 2º impõe uma condicionante: que essa coletividade “haja intervindo nas relações de consumo”.


Aqui, então, o CDC não está tratando do consumidor em potencial, conforme faz no artigo 29, mas do consumidor stricto sensu ou standard do caput do artigo 2º, aquele que já adquiriu ou utilizou produtos ou serviços como destinatário final.


No artigo 29 do CDC, justamente por ser equiparado a consumidor, não é exigida a efetiva aquisição de bens e serviços. O simples fato de poder vir a contratar, estando exposto a uma prática abusiva, e suficiente para merecer uma proteção até mesmo por meio das chamadas ações coletivas, de que trata do artigo 81 do CDC.


A equiparação deve buscar a origem, a gênese da relação de consumo. De vários artigos do CDC depreende-se que não é necessário haver a relação jurídica contratual para que haja a proteção. Quando o legislador fala em consumidor equiparado, ele também está se referindo ao cidadão que não participou da relação jurídica originária e, ainda assim, tem a proteção legal.


Para proteger de fato a maioria social, evitando a exposição às práticas abusivas, o legislador, dentro de uma conduta preventiva, equipara ao consumidor até mesmo quem não consumiu, mas que poderá ir ao mercado de consumo adquirir um bem, ou seja, o consumidor potencial.


O CDC emprestou vínculo jurídico a qualquer tipo de negociação preliminar. O artigo 30 deixa bem claro essa vinculação, ao dispor que “toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor a que fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.


O artigo 29 não permite a proteção, como equiparado, apenas o consumidor potencial, mas também a quem contratou a aquisição de bens e serviços, sem ser destinatário final. Este dispositivo também é a porta de entrada para a proteção contratual da pessoa jurídica, que não se qualifica como consumidor stricto sensu. Por essa equiparação, o CDC poderia ser perfeitamente aplicável ao contrato celebrado entre dois comerciantes.


Importante frisar que a demonstração da vulnerabilidade só se justifica para que a pessoa jurídica obtenha a proteção do CDC, como consumidora equiparada do artigo 29. É quando ela demonstraria que, mesmo sendo apenas destinatária fática do bem, acabou por celebrar um mau contrato com seu fornecedor, por conta de quaisquer das vulnerabilidades de que pode ser vítima: a econômica, a técnica ou a jurídica.


Outro conceito de consumidor equiparado está no artigo 17 do CDC, que, para efeito de responsabilização civil do fornecedor por fato do produto ou serviço, diz que “equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”.


O CDC, ao adotar a responsabilidade objetiva, ou seja, a responsabilização sem culpa, protege o consumidor potencial que não adquiriu diretamente o produto, haja vista o fato de que a responsabilidade objetiva só seria afastada se provado que o dano ocorreu por culpa exclusiva da vítima.


Com o citado artigo, o CDC expandiu a abrangência do Código para aqueles que são consumidores, mas que não participam direta ou ativamente da relação negocial. Tal fato, pela redação do CDC é irrelevante, abrangendo a todos que possam usufruir dos bens ou serviços, tenham participado ou não da relação contratual.


Segundo o artigo 3º do CDC, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou a prestação de serviços.


O CDC, na realidade, quis enquadrar como fornecedor todo aquele que “desenvolva atividades” econômicas no mercado. Da conjugação da profissionalidade com a habitualidade encontra-se juridicamente o fornecedor. Assim como não basta apenas a profissionalidade, a presença isolada da habitualidade juridicamente é irrelevante para o conceito de fornecedor.


Fornecedor é aquele que oferece ao mercado, habitualmente, bens e serviços visando ao lucro, que participa da cadeia produtiva, ou pratica alguns atos dentro desta cadeia, seja produzindo diretamente ou distribuindo, ou simplesmente intermediando o fornecimento de bens ou serviços. O que vai importar para o conceito de fornecedor é que ele esteja oferecendo bens e serviços, com habitualidade e profissionalidade, ao mercado.


Quanto ao fator remuneração, tal vai caracterizar tanto o fornecedor de produtos, como de serviços. Até porque os contratos sujeitos ao CDC, são, em regra, onerosos; a profissionalidade pressupõe onerosidade, afastado os contratos puramente gratuitos, onde não há intuito de lucro direto ou indireto. Ressalte-se que, havendo a presença de um objetivo indireto de lucro, estaria caracterizada a profissionalidade na forma de uma remuneração também indireta.


Majoritariamente, a doutrina se posiciona no sentido de que só pode haver relação de consumo quando esteja presente uma relação de mercado, onde o fornecedor busca o lucro.


Extrai-se do artigo 6º, inciso X que o CDC não estabeleceu distinção entre serviço público próprio e impróprio. A redação do artigo 22, que mais uma vez impõe ao Estado o dever de prestar serviços públicos eficientes, sem excepcionar nenhuma modalidade desses serviços, é clara ao dispor que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.”


Outra discussão, já pacificada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, diz respeito à presença da relação de consumo nos contratos bancários. Entretanto, ainda hoje a questão encontra-se pendente de manifestação do Supremo Tribunal Federal.


Em um primeiro momento, os que defendem não constituir o empréstimo bancário relação de consumo sustentam que dinheiro, salvo a situação do colecionador de moedas, é sempre bem intermediário na aquisição de outros bens.


Em um segundo momento, buscam aqueles defensores também desqualificar o empréstimo como relação de consumo, valendo-se do disposto no § 2º do artigo 3º, que diz que apenas os serviços bancários estaria sujeitos ao CDC. Como o empréstimo não encerra uma prestação de serviços, uma obrigação de fazer, mas uma obrigação de dar, estaria, portanto, fora do alcance do CDC.


Parece que seria um entendimento absolutamente incompatível com o espírito do CDC, que é justamente buscar o equilíbrio de toda relação contratual em que figure o consumidor vulnerável, deixa fora de seu alcance as operações bancárias, quando se sabe que as instituições financeiras sãos as que mais lançam mão dos chamados contratos de adesão, seja na simples prestação de serviços em si, seja as operações de concessão de créditos, deixando em flagrante desvantagem e desequilíbrio o outro contratante, que pode ser um consumidor.


Ainda que se conclua que é desinfluente o banco realizar uma operação ou prestar um serviço bancário para que haja relação de consumo, o fato é que no fornecimento de serviços o objeto da prestação é sempre uma obrigação da fazer. Na operação destinada à concessão de empréstimo não há que se falar em obrigação de fazer. A obrigação, nesses de mútuo, é sempre de dar.


Neste sentido, mostra-se incompatível com os institutos de direto obrigacional sustentar que na operação de crédito bancário tem-se um fornecimento de serviços, que, neste caso, não pode ocorrer porque a obrigação nuclear é a de dar; obrigação incompatível com o fornecimento de produtos.


Uma vez que o dinheiro pode ser objeto de consumo, não no sentido da destruição, mas de utilização, na concessão de empréstimos, a instituição financeira atua como fornecedora de bens e poderá atuar como também como fornecedora de serviços ou de produtos (no caso das operações bancárias), para efeito de proteção da Lei n.º 8078/90.


Com o julgamento final da ADIN 2592 foi reconhecida a constitucionalidade do artigo § 2º, do artigo 3º, que manda aplicar o CDC às operações bancárias.




Fonte: Direito do Consumidor. Paulo R. Roque A. Khouri.

terça-feira, 13 de julho de 2010

O Efeito Repristinatório na Declaração de Inconstitucionalidade

O efeito repristinatório é admitido pelo Supremo Tribunal Federal desde a Constituição anterior, como decorrência do princípio da nulidade do ato inconstitucional.

A Constituição não previu expressamente a sanção cominada ao ato inconstitucional. O princípio da nulidade está implícito no Texto Fundamental, sendo extraído do controle difuso de constitucionalidade.

Acrescenta-se que a Carta Magna dispõe que a inconstitucionalidade é reconhecida por decisão declaratória, o que reforça a tese da nulidade do ato inconstitucional, considerando que as decisões declaratórias reconhecem atos nulos, não anuláveis.

O efeito repristinatório significa que a norma declarada inconstitucional não foi apta para revogar validamente a lei anterior que tratava da mesma matéria, uma vez que nasceu nula. Ocorre uma pseudo-revogação.

Declarada a inconstitucionalidade da norma revogadora, constata-se que ocorreu uma mera pretensão da norma nula revogar outra norma.

O efeito repristinatório é o fenômeno da reentrada em vigor da norma aparentemente revogada. Já á repristinação, instituto distinto, substanciaria a reentrada em vigor da norma efetivamente revogada em função da revogação (mas não anulação) da norma revogadora. Esta somente é permitida caso exista previsão expressa, por vedação da Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 2º, parágrafo 3º.

Em síntese, na repristinação tem-se um instituto que envolve a vigência de três atos normativos, todos válidos, ao passo que no efeito repristinatório há duas leis e a posterior não revogou validamente a anterior, diante da sua inconstitucionalidade.

Na doutrina há quem se manifeste contrariamente ao efeito repristinatório, afirmando que não se harmoniza com o princípio da segurança jurídica. Contudo, é imperioso reconhecer que a ausência de tal efeito provocaria um vazio normativo, obrigando a integração da lacuna. O efeito repristinatório é compatível com o princípio da segurança jurídica, pois viabiliza a certeza da norma aplicável sobre determinado assunto.

O efeito repristinatório é expressamente consagrado pelo direito positivo (Lei n.º 9868/99, artigo 11, § 2º), apenas quanto ao deferimento da cautelar. Contudo, a mesma regra é aplicável às decisões de mérito nas ações de controle abstrato, já que decorrente da nulidade do ato inconstitucional.

Tendo em vista que não é a todo ato do Poder Público que pode ser conferido efeito repristinatório, em se tratando de argüição de descumprimento de preceito fundamental, tal instituto aplica-se apenas às decisões prolatadas em face de atos normativos.

O Supremo Tribunal Federal pronunciou-se favoravelmente à aplicação do efeito repristinatório no controle difuso, restringindo-o, dessa forma, às partes. Colha-se a seguinte ementa:

“ITBI: progressividade: L. 11.154/91, do Município de São Paulo: inconstitucionalidade. A inconstitucionalidade, reconhecida pelo STF (RE 234.105), do sistema de alíquotas progressivas do ITBI do Município de São Paulo (L. 11.154/91, art. 10, II), atinge esse sistema como um todo, devendo o imposto ser calculado, não pela menor das alíquotas progressivas, mas na forma da legislação anterior, cuja eficácia, em relação às partes, se restabelece com o trânsito em julgado da decisão proferida neste feito.” (RE 260.670-5/SP)

Clèmerson Merlin Cléve adverte para o fato de que nem sempre o efeito repristinatório é vantajoso. A norma que foi revogada ela norma declarada inconstitucional pode padecer de inconstitucionalidade ainda mais grave que a do ato nulificado. Previne-se o problema com o estudo apurado das eventuais conseqüências que a decisão judicial haverá de produzir. O estudo deve ser levado a termo por ocasião da propositura, pelos legitimados ativos, da ação direta de inconstitucionalidade. Detectada a manifestação de eventual eficácia repristinatória indesejada, cumpre requerer, igualmente, já na inicial da ação direta, a declaração de inconstitucionalidade, e, desde que possível, a do ato normativo ressuscitado. Tal entendimento foi adotado pelo Pretório Excelso, senão vejamos:

“Recentes decisões emanadas do Plenário do Supremo Tribunal Federal, proferidas na ADI 2.132-RJ e na ADI 2.242-DF, das quais foi Relator o eminente Ministro MOREIRA ALVES - e de cujo julgamento resultou, em um caso, o não-conhecimento da ação direta (ADI 2.242- DF) e, em outro, o seu conhecimento apenas parcial (ADI 2.132-RJ) - impõem algumas considerações prévias em torno de duas questões básicas: a primeira, pertinente ao valor do ato inconstitucional, e a segunda, relativa ao tema do denominado efeito repristinatório (que resulta da declaração de inconstitucionalidade "in abstracto" ou que decorre da mera suspensão cautelar de eficácia do ato estatal impugnado em sede de controle concentrado de constitucionalidade). Esta Suprema Corte, nos precedentes em questão, e considerando o efeito repristinatório acima referido, firmou orientação no sentido de que, em processo de fiscalização concentrada, a ausência de impugnação, em caráter subsidiário, da norma revogada por ato estatal superveniente, desde que somente este tenha sido contestado em sede de controle abstrato, achando-se, também ela, inquinada do vício de inconstitucionalidade, importa em não-conhecimento da ação direta, se esta, promovida, unicamente, contra o diploma ab-rogatório, não se dirigir contra a espécie normativa que por ele tenha sido afetada no plano de sua vigência. Passo, desse modo, a apreciar a cognoscibilidade da presente ação direta, quer em face das conseqüências jurídicas que derivam do efeito repristinatório a que precedentemente aludi, quer em virtude da ausência de formulação, nesta sede processual, de pedido sucessivo de declaração de inconstitucionalidade da Lei nº 11.630/99 (no ponto em que deu nova redação ao art. 33, IV e ao respectivo § 4º, da Lei nº 7.551/77). É que, com a eventual declaração de inconstitucionalidade - ou com a suspensão cautelar de eficácia das normas legais ora impugnadas - restaurar-se-á, em virtude do já mencionado efeito repristinatório, a aplicabilidade da Lei estadual nº 11.630/99, no ponto em que deu nova redação ao art. 33, inciso IV e ao respectivo § 4º, da Lei pernambucana nº 7.551/77, regras estas que também foram consideradas inconstitucionais pela própria entidade que promove esta ação direta (fls. 6/7), circunstância essa que torna aplicáveis, ao caso presente, os precedentes fundados na ADI 2.132-RJ e na ADI 2.242-DF, das quais foi Relator o eminente Ministro MOREIRA ALVES. Sabemos que a supremacia da ordem constitucional traduz princípio essencial que deriva, em nosso sistema de direito positivo, do caráter eminentemente rígido de que se revestem as normas inscritas no estatuto fundamental. Nesse contexto, em que a autoridade normativa da Constituição assume decisivo poder de ordenação e de conformação da atividade estatal - que nela passa a ter o fundamento de sua própria existência, validade e eficácia -, nenhum ato de Governo (Legislativo, Executivo e Judiciário) poderá contrariar-lhe os princípios ou transgredir-lhe os preceitos, sob pena de o comportamento dos órgãos do Estado incidir em absoluta desvalia jurídica. Essa posição de eminência da Lei Fundamental - que tem o condão de desqualificar, no plano jurídico, o ato em situação de conflito hierárquico com o texto da Constituição - estimula reflexões teóricas em torno da natureza do ato inconstitucional, daí decorrendo a possibilidade de reconhecimento, ou da inexistência, ou da nulidade, ou da anulabilidade (com eficácia ex nunc ou eficácia ex tunc), ou, ainda, da ineficácia do comportamento estatal incompatível com a Constituição. Tal diversidade de opiniões nada mais reflete senão visões doutrinárias que identificam, no desvalor do ato inconstitucional, "vários graus de invalidade" (MARCELO REBELO DE SOUSA, "O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional", vol. I/77, 1988, Lisboa). As várias concepções teóricas existentes sobre o tema - como destaca autorizado magistério doutrinário (CARLOS ROBERTO DE SIQUEIRA CASTRO, "Da Declaração de Inconstitucionalidade e seus Efeitos", in Revista Forense, vol. 335/17-44; MARCELO NEVES, "Teoria da Inconstitucionalidade das Leis", p. 68/85, 1988, Saraiva; JOSÉ AFONSO DA SILVA, "Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 54-58, item n. 15, 15ª ed., 1998, Malheiros) - permitem a formulação de teses que buscam definir a real natureza dos atos incompatíveis com o texto da Constituição, qualificando-os, em função de abordagens diferenciadas, como manifestações estatais tipificadas pela nota da inexistência (FRANCISCO CAMPOS, "Direito Constitucional", vol. I/430, 1956, Freitas Bastos), ou pelo vício da nulidade (ALEXANDRE DE MORAES, "Direito Constitucional", p. 599-602, 9ª ed., 2001, Atlas; OSWALDO LUIZ PALÚ, "Controle de Constitucionalidade", p. 75/76, 1999, RT), ou, ainda, pelo defeito da anulabilidade (REGINA MARIA MACEDO NERY FERRARI, "Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade", p. 181/183, 2ª ed., 1990, RT; JOÃO LEITÃO DE ABREU, "A Validade da Ordem Jurídica", p. 156/165, item n. 11, 1964, Globo). Cumpre enfatizar, por necessário, que, não obstante essa pluralidade de visões teóricas, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal - apoiando-se na doutrina clássica (ALFREDO BUZAID, "Da Ação Direta de Declaração de Inconstitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 132, item n. 60, 1958, Saraiva; RUY BARBOSA, "Comentários à Constituição Federal Brasileira", vol. IV/135 e 159, coligidos por Homero Pires, 1933, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, "Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais", p. 270, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; ELIVAL DA SILVA RAMOS, "A Inconstitucionalidade das Leis", p. 119 e 245, itens ns. 28 e 56, 1994, Saraiva; OSWALDO ARANHA BANDEIRA DE MELLO, "A Teoria das Constituições Rígidas", p. 204/205, 2ª ed., 1980, Bushatsky) - ainda considera revestir-se de nulidade a manifestação do Poder Público em situação de conflito com a Carta Política (RTJ 87/758 - RTJ 89/367 - RTJ 146/461 - RTJ 164/506, 509). Impõe-se reconhecer, no entanto, que se registra, no magistério jurisprudencial desta Corte, e no que concerne a determinadas situações (como aquelas fundadas na autoridade da coisa julgada ou apoiadas na necessidade de fazer preservar a segurança jurídica, em atenção ao princípio da boa-fé), uma tendência claramente perceptível no sentido de abrandar a rigidez dogmática da tese que proclama a nulidade radical dos atos estatais incompatíveis com o texto da Constituição da República (RTJ 55/744 - RTJ 71/570 - RTJ 82/791, 795): "RECURSO EXTRAORDINÁRIO. EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE EM TESE PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ALEGAÇÃO DE DIREITO ADQUIRIDO. Acórdão que prestigiou lei estadual à revelia da declaração de inconstitucionalidade desta última pelo Supremo. Subsistência de pagamento de gratificação mesmo após a decisão erga omnes da Corte. Jurisprudência do STF no sentido de que a retribuição declarada inconstitucional não é de ser devolvida no período de validade inquestionada da lei de origem - mas tampouco paga após a declaração de inconstitucionalidade. Recurso extraordinário provido em parte." (RE 122.202-MG, Rel. Min. FRANCISCO REZEK, DJU de 08/04/94) Mostra-se inquestionável, no entanto, a despeito das críticas doutrinárias que lhe têm sido feitas (CELSO RIBEIRO BASTOS, "Comentários à Constituição do Brasil", 4º vol., tomo III/87-89, 1997, Saraiva; CARLOS ALBERTO LÚCIO BITTENCOURT, "O Controle Jurisdicional da Constitucionalidade das Leis", p. 147, 2ª ed., Ministério da Justiça, 1997, reimpressão fac-similar, v.g.), que o Supremo Tribunal Federal vem adotando posição jurisprudencial, que, ao estender a teoria da nulidade aos atos inconstitucionais, culmina por recusar-lhes qualquer carga de eficácia jurídica. Embora o status quaestionis esteja assim delineado no Supremo Tribunal Federal, não há dúvida de que o relevo dessa matéria impõe novas reflexões sobre o tema (MÁRCIO AUGUSTO DE VASCONCELOS DINIZ, "Controle de Constitucionalidade e Teoria da Recepção", p. 43, 1995, Malheiros; INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, "Constitucionalidade/Inconstitucionalidade: Uma Questão Política?", in RDA 221/47-69, 64-66, item n. 4), especialmente se se tiver em consideração a experiência constitucional de outros países, cujas Leis Fundamentais - como ocorre em Portugal (art. 282, n. 4, na redação dada pela 4ª Revisão/1997), na Espanha (art. 164) e na Itália (art. 136), p. ex. - dispõem sobre a amplitude e o regime jurídico inerentes aos efeitos que resultam da declaração de inconstitucionalidade. Essa nova percepção do tema reflete, de certa maneira, nítida influência decorrente da prática jurisprudencial do Tribunal Constitucional Federal germânico, como ressalta PAULO BONAVIDES ("Curso de Direito Constitucional", p. 308, item n. 9, 10ª ed., 2000, Malheiros), cujo autorizado magistério sustenta a necessidade de criar-se, no plano do controle de constitucionalidade dos atos estatais, "um espaço de tempo, intermediário, que assegure a sobrevivência provisória da lei declarada incompatível com a Constituição". É certo que, no sistema normativo brasileiro, com a edição da Lei nº 9.868/99 (art. 27), introduziu-se inovação claramente inspirada nos modelos constitucionais positivados no direito português e no direito alemão. Impõe-se registrar, no entanto, que o art. 27 da Lei nº 9.868/99 é objeto de impugnação em sede de ação direta de inconstitucionalidade, promovida, respectivamente, perante o Supremo Tribunal Federal, pela Confederação Nacional das Profissões Liberais e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 2.154-DF e ADI 2.258-DF, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE), sob a alegação de que a matéria nele versada está sujeita à reserva de Constituição, não podendo, por isso mesmo, ser disciplinada pelo legislador comum. Essa controvérsia, contudo, será oportunamente dirimida pelo Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento das mencionadas ações diretas de inconstitucionalidade. Já se afirmou, no início desta decisão, que a declaração de inconstitucionalidade in abstracto, de um lado, e a suspensão cautelar de eficácia do ato reputado inconstitucional, de outro, importam - considerado o efeito repristinatório que lhes é inerente - em restauração das normas estatais revogadas pelo diploma objeto do processo de controle normativo abstrato. Esse entendimento - hoje expressamente consagrado em nosso sistema de direito positivo (Lei nº 9.868/99, art. 11, § 2º) -, além de refletir-se no magistério da doutrina (ALEXANDRE DE MORAES, "Jurisdição Constitucional e Tribunais Constitucionais", p. 272, item n. 6.2.1, 2000, Atlas; CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, "A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 249, 2ª ed., 2000, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS, "Comentários à Constituição do Brasil", vol. 4, tomo III/87, 1997, Saraiva; ZENO VELOSO, "Controle Jurisdicional de Constitucionalidade", p. 213/214, item n. 212, 1999, Cejup), também encontra apoio na própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, desde o regime constitucional anterior (RTJ 101/499, 503, Rel. Min. MOREIRA ALVES - RTJ 120/64, Rel. Min. FRANCISCO REZEK), vem reconhecendo a existência de efeito repristinatório nas decisões desta Corte Suprema, que, em sede de fiscalização normativa abstrata, declaram a inconstitucionalidade ou deferem medida cautelar de suspensão de eficácia dos atos estatais questionados em ação direta (RTJ 146/461-462, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.028-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES - ADI 2.036-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES). O sentido e o alcance do efeito repristinatório foram claramente definidos, em texto preciso, por CLÈMERSON MERLIN CLÈVE ("A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro", p. 249/250, 2ª ed., 2000, RT), cuja autorizada lição assim expôs o tema pertinente à restauração de eficácia do ato declarado inconstitucional, em sede de controle abstrato, ou objeto de suspensão cautelar de aplicabilidade, deferida em igual sede processual: "Porque o ato inconstitucional, no Brasil, é nulo (e não, simplesmente, anulável), a decisão judicial que assim o declara produz efeitos repristinatórios. Sendo nulo, do ato inconstitucional não decorre eficácia derrogatória das leis anteriores. A decisão judicial que decreta (rectius, que declara) a inconstitucionalidade atinge todos os 'possíveis efeitos que uma lei constitucional é capaz de gerar', inclusive a cláusula expressa ou implícita de revogação. Sendo nula a lei declarada inconstitucional, diz o Ministro Moreira Alves, 'permanece vigente a legislação anterior a ela e que teria sido revogada não houvesse a nulidade'. ....................................................... A reentrada em vigor da norma revogada nem sempre é vantajosa. O efeito repristinatório produzido pela decisão do Supremo, em via de ação direta, pode dar origem ao problema da legitimidade da norma revivida. De fato, a norma reentrante pode padecer de inconstitucionalidade ainda mais grave que a do ato nulificado. Previne-se o problema com o estudo apurado das eventuais conseqüências que a decisão judicial haverá de produzir. O estudo deve ser levado a termo por ocasião da propositura, pelos legitimados ativos, de ação direta de inconstitucionalidade. Detectada a manifestação de eventual eficácia repristinatória indesejada, cumpre requerer, igualmente, já na inicial da ação direta, a declaração da inconstitucionalidade, e, desde que possível, a do ato normativo ressuscitado." (grifei) Essa orientação, fundada no reconhecimento do efeito repristinatório, culminou no estabelecimento dos precedentes consubstanciados no julgamento da ADI 2.132-RJ e na ADI 2.242-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES, de tal modo que, à semelhança do que ocorre na espécie destes autos, não deduzida, em caráter subsidiário, qualquer impugnação contra a norma, que, alegadamente eivada do vício de inconstitucionalidade, foi revogada pelas regras expressamente atacadas em sede de fiscalização concentrada, torna-se inviável conhecer, em face de tal omissão processual, da própria ação direta. Todas as considerações que vêm de ser expostas, a propósito do efeito repristinatório, pertinente às declarações de inconstitucionalidade ou às suspensões cautelares de eficácia de atos estatais, pronunciadas em sede de controle normativo abstrato, justificam-se, não só em função dos precedentes mencionados, mas, sobretudo, em face das alegações deduzidas na petição inicial pela própria autora da presente ação direta de inconstitucionalidade. Sob tal aspecto, cabe transcrever, in extenso, os fundamentos invocados pela Associação dos Magistrados Brasileiros, que, depois de historiar a sucessão de diplomas legislativos no Estado de Pernambuco, em matéria de contribuição previdenciária, destacou, com especial ênfase, a inconstitucionalidade da própria Lei estadual nº 11.630/99, que, revogada pela Lei Complementar pernambucana nº 28/2000, teria sua aplicabilidade restaurada, ao menos no que concerne à matéria versada nas regras legais ora impugnadas (art. 71, I e II, da LC nº 28/2000), em função, precisamente, do efeito repristinatório inerente às decisões do Supremo Tribunal Federal, proferidas em sede cautelar ou em caráter definitivo, no âmbito das ações diretas de inconstitucionalidade. Eis, no ponto, as alegações expostas pela autora da presente ação direta (fls. 4/7): "Através da Lei nº 7.551, de 27 de dezembro de 1977, os servidores públicos do Estado de Pernambuco passaram a contribuir, como previsto no art. 33 e incisos, de forma linear, com o valor correspondente a 8% (oito por cento) dos seus vencimentos. Eis a redação do aludido preceito: 'Art. 33 - O custeio do plano previdenciário e assistencial será atendido pelas seguintes fontes de receita: I - Contribuição mensal dos segurados em geral, mediante o recolhimento de 8% do respectivo salário de contribuição;' De acordo com o art. 2º da referida lei, os planos de seguridade social elaborados pelo Estado tinham por objeto principal assegurar os benefícios de pensão, pecúlio, auxílio-reclusão, auxílio-natalidade, assistência médica, assistência social e assistência financeira. Quanto à aposentadoria dos servidores públicos estaduais, constituía encargo do Estado, sem previsão de fonte específica de custeio. A Lei nº 11.327, de 12 de janeiro de 1996, alterou o inciso I do referido art. 33 da Lei nº 7.551/77, que passou a vigorar com a seguinte redação: 'Art. 33 - ................................................... I - contribuição mensal dos segurados em geral e pensionistas, tomando-se como base a totalidade da respectiva remuneração dos proventos e pensão, mediante o recolhimento de: a) 8% (oito por cento) para os que percebam o correspondente até 10 (dez) salários mínimos; b) 10% (dez por cento) para os que percebem acima de 10 (dez) e até 14 (quatorze) salários mínimos; c) 12% (doze por cento) para os que percebem acima de 14 (quatorze) e até 18 (dezoito) salários mínimos; d) 14% (quatorze por cento) para os que percebem acima de 18 (dezoito) e até 22 (vinte e dois) salários mínimos; e) 16% (dezesseis por cento) para os que percebem acima de 22 (vinte e dois) salários mínimos.' Considerando que a referida Lei nº 11.327/96 continha flagrantes inconstitucionalidades, porquanto onerava duplamente, sem causa e sem reciprocidade, contribuintes que percebiam salários mais elevados, violando o princípio da eqüidade, além de utilizar o salário-mínimo como referência, a Autora ingressou perante esse Pretório Excelso com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.425-1 PE, a qual veio a ser julgada procedente, em sessão de 01 de outubro de 1997, declarando-se a inconstitucionalidade do inciso I do art. 33, da Lei nº 7.551/77, na redação dada pela Lei nº 11.327/96. Em decorrência da inconstitucionalidade do preceito, reconhecida por essa Corte Excelsa, veio a ser sancionada a Lei nº 11.522, de 07 de janeiro de 1998, mais uma vez alterando a redação do art. 33 da Lei nº 7.751/77: 'Art. 33 - O custeio do plano previdenciário e assistencial será atendido pela seguintes fontes de receita: I - contribuição mensal dos segurados em geral, tomando-se como base a totalidade das respectivas remunerações ou dos proventos mediante o recolhimento de 10% (dez por cento); Esta última regra vinha vigorando regularmente, com o Estado de Pernambuco retendo de seus servidores públicos a alíquota de 10% (dez por cento), tendo como base de cálculo a totalidade da respectiva remuneração, quando, através da Lei nº 11.630, de 28 de janeiro de 1999, mais uma vez veio a ser modificada a redação da Lei nº 7.551/77: 'Art. 33 - ... IV - contribuição mensal dos servidores estaduais ativos, inativos, e de seus pensionistas, acrescidos de 2% (dois pontos percentuais) sobre o valor da respectiva remuneração, subsídios, proventos ou pensões, destinada exclusivamente ao plano previdenciário, salvo se este valor for igual ou inferior a R$ 200,00 (duzentos reais). ... § 4º - O adicional de que trata o inciso IV deste artigo fica acrescido de 8% (oito pontos percentuais) incidente sobre o valor da remuneração, subsídios, proventos e pensões que exceder a R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais)'. Esta última Lei nº 11.630/99, apesar de não oferecer aos servidores públicos novos benefícios, contraprestações, vantagens ou direitos, majorou a contribuição social, que até então era de 10% (dez por cento), acrescendo 2% (dois pontos percentuais) para quem percebia acima de R$ 200,00 (duzentos reais), além de mais 8% (oito pontos percentuais) incidentes sobre a remuneração excedente de R$ 1.200,00 (um mil e duzentos reais). Por força de inúmeras medidas liminares, concedidas em mandados de segurança impetrados singular e coletivamente pelos servidores estaduais, aposentados e pensionistas, tais majorações foram sustadas, acolhendo-se argumentos como os de que as mesmas infringiam o princípio da eqüidade e caracterizavam a odiosa figura do confisco." (grifei) Vê-se, da seqüência cronológica das leis pernambucanas mencionadas, que a decisão desta Corte, proferida em sede de controle abstrato, que eventualmente suspenda a eficácia ou declare a inconstitucionalidade do art. 71, I e II, da Lei Complementar estadual nº 28/2000, importará em restauração da eficácia da Lei nº 7.551/77, notadamente do art. 33, IV e § 4º, na redação dada pela Lei estadual nº 11.630/99 - também expressamente revogada pela Lei Complementar estadual nº 28/2000 (fls. 50) -, que veiculava regras ora substituídas por aquelas inscritas no art. 71, I e II, da Lei Complementar nº 28/2000, objeto exclusivo de impugnação na presente ação direta de inconstitucionalidade. Desse modo, considerados os precedentes referidos, e ausente a cumulação de pedidos sucessivos (declaração de inconstitucionalidade da norma superveniente + declaração de inconstitucionalidade da norma anterior por ela revogada), torna-se incognoscível a presente ação direta, pois, seja do deferimento de medida cautelar, seja da eventual declaração de inconstitucionalidade do ato normativo editado em momento subseqüente, resultará, no caso, efeito repristinatório indesejado, pertinente ao diploma revogado, o qual - segundo a própria autora (fls. 6/7) - acha-se igualmente impregnado do vício da ilegitimidade constitucional. O caso ora em exame registra situação idêntica à constatada na ADI 2.132-RJ e na ADI 2.242-DF, Rel. Min. MOREIRA ALVES, pois a autora da presente ação, não obstante o efeito repristinatório precedentemente mencionado, deixou de formular, em caráter subsidiário, pedido de declaração de inconstitucionalidade referente ao art. 33, IV, e respectivo § 4º, da Lei estadual nº 7.551/77, na redação dada pela Lei nº 11.630/99, ambas expressamente revogadas pela edição superveniente da Lei Complementar estadual nº 28/2000, cujas normas constituem o único objeto de impugnação nesta sede de fiscalização concentrada. A inviabilidade da presente ação direta, que se evidencia em função dos próprios fundamentos que dão suporte a esta decisão, autoriza uma observação final: assiste, ao Ministro-Relator, no desempenho dos poderes processuais de que dispõe, competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios que venha a praticar com fundamento no art. 38 da Lei nº 8.038/90, que assim prescreve: "O relator, no Supremo Tribunal Federal (...), decidirá o pedido ou o recurso que haja perdido seu objeto, bem como negará seguimento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo, incabível ou improcedente ou, ainda, que contrariar, nas questões predominantemente de direito, Súmula do respectivo Tribunal." (grifei) Cumpre acentuar, neste ponto, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal reconheceu a inteira validade constitucional dessa norma legal, que inclui, na esfera de atribuições do Relator, a competência para negar trânsito, em decisão monocrática, a recursos, pedidos ou ações, quando incabíveis, intempestivos, sem objeto ou que veiculem pretensão incompatível com a jurisprudência predominante do Tribunal (RTJ 139/53): "PODERES PROCESSUAIS DO MINISTRO-RELATOR. - Assiste ao Ministro-Relator competência plena, para, com fundamento nos poderes processuais de que dispõe, exercer o controle de admissibilidade das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal. Cabe-lhe, em conseqüência, poder para negar trânsito, em decisão monocrática, a ações, pedidos ou recursos incabíveis, intempestivos, sem objeto ou que veiculem pretensão incompatível com a jurisprudência predominante do Tribunal. Precedentes." (RTJ 168/174-175, Rel. Min. CELSO DE MELLO) Cabe enfatizar, por necessário, que esse entendimento jurisprudencial é também aplicável aos processos de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 563-DF, Rel. Min. PAULO BROSSARD - ADI 593-GO, Rel. Min. MARCO AURÉLIO - ADI 2.060-RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 2.207-AL, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), eis que, tal como já assentou o Plenário do Supremo Tribunal Federal, o ordenamento positivo brasileiro "não subtrai, ao Relator da causa, o poder de efetuar - enquanto responsável pela ordenação e direção do processo (RISTF, art. 21, I) - o controle prévio dos requisitos formais da fiscalização normativa abstrata, o que inclui, dentre outras atribuições, o exame dos pressupostos processuais e das condições da própria ação direta" (RTJ 139/67, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Sendo assim, considerando as razões expostas, não conheço da presente ação direta de inconstitucionalidade, restando prejudicada, em conseqüência, a apreciação do pedido de medida cautelar. Arquivem-se os presentes autos. Publique-se. Brasília, 17 de abril de 2001. Ministro CELSO DE MELLO Relator (ADI 2215 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, julgado em 17/04/2001, publicado em DJ 26/04/2001 PP-00004 RTJ VOL-00200-03 PP-01404)

O efeito repristinatório não deve ser aplicado nas hipóteses em que a norma revogada pela declarada inconstitucional também é inválida.

Fonte: Leituras Complementares de Direito Constitucional – Controle de Constitucionalidade de Hermenêutica Constitucional. Organizador: Marcelo Novelino. O Efeito Repristinatório na Declaração de Inconstitucionalidade. Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira.