quinta-feira, 29 de julho de 2010

Inconstitucionalidade por Arrastamento ou por Consequência

O controle de constitucionalidade difuso tem como característica a potencialidade de ser encetado por qualquer Juiz ou Tribunal, diante de um determinado caso concreto.


Por sua vez, no controle concentrado, o que se busca é analisar a própria compatibilidade de um comportamento estatal (seja uma ação ou omissão) em face dos preceitos da Carta Magna. Em outras palavras, referido controle tem como verdadeiro objeto a análise do comportamento estatal – em regra, um ato normativo – em face da Constituição, podendo levar à expurgação do ato do ordenamento jurídico. O próprio pedido é a declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade de determinado comportamento estatal, motivo pelo qual a decisão produz efeitos erga omnes.


Não é difícil constatar, assim, os motivos pelos quais o modelo de controle concentrado possui características próprias, que o diferenciam do controle difuso e dos demais processos intersubjetivos. Tais particularidades se refletem no tipo de processo em que se exerce o controle concentrado. Realmente, esta espécie de controle é veiculada em um processo objetivo, que não se confunde com os processos tradicionais, baseados em conflitos interpessoais e regidos pela clássica sistemática processual civil.


De acordo com o Ministro Celso de Mello no julgamento da ADI n.º 1434, “o controle normativo de constitucionalidade qualifica-se como típico processo de caráter objetivo, vocacionado exclusivamente à defesa, em tese, da harmonia do sistema constitucional. A instauração desse processo objetivo tem por função instrumental viabilizar o julgamento da validade abstrata do ato estatal em face da Constituição da República. O exame de relações jurídicas concretas e individuais constitui matéria juridicamente estranha ao domínio do processo de controle concentrado de constitucionalidade”.


Desta feita, como não há pretensão particular a ser tutelada, o autor da ação não precisará demonstrar interesse jurídico próprio, nos moldes da sistemática processual comum. Terá apenas que, quando for o caso, comprovar a necessária pertinência temática, ou seja, a relação entre o objeto da ação e seus fins institucionais. Assim, como não defendem interesse próprio – e sim de tutela do ordenamento jurídico – os autores não são partes em sentido material, mas apenas em sentido formal.


Dentro desta mesma linha, o Supremo Tribunal Federal já afirmou que sequer existe lide a ser solucionada no processo de controle de constitucionalidade.


Ademais, interessante anotar que a causa de pedir, no controle concentrado, é aberta: apesar de o autor da ação ter o ônus de indicar os fundamentos jurídico de seu pedido, demonstrando as razões pelas quais entende que a Constituição foi violada – mais especificamente, quais os preceitos constitucionais que restaram infringidos e por quais motivos – tal fundamentação não vincula o Supremo Tribunal Federal. Este poderá considerar a norma inconstitucional por violação a outros dispositivos constitucionais que não os indicados pelo autor.


Conforme o princípio do pedido, o Tribunal encarregado da análise do controle concentrado de constitucionalidade não pode agir de ofício, em obediência à máxima nemo iudex sine actore. Deve, portanto, aguardar a provocação dos órgãos encarregados pela Constituição de levar a questão à análise do Tribunal Constitucional. Referido princípio foi admitido expressamente pela legislação brasileira, notadamente nos artigo 3º, inciso I e artigo 14, inciso I, ambos da Lei n.º 9868/99 e artigo 3º, inciso II da Lei n.º 9882/99.


Decorrência do princípio do pedido é o chamado princípio da congruência, segundo o qual a sentença deve manter congruência com o thema decidendum trazido a Juízo pelo autor. No caso, o objeto do processo ficaria circunscrito ao pedido formulado, não podendo ir além ou aquém da pretensão deduzida.


Os princípios e regras aplicáveis aos conflitos intersubjetivos devem ser reinterpretados à luz das características, finalidades e princípios marcantes do processo objetivo. Neste sentido, Jorge Miranda leciona que “o princípio dispositivo e, portanto, o do pedido sofrem adaptações noutros ramos de Direito processual – no penal, no administrativo e também no constitucional – em função das características próprias, designadamente quando não haja partes e domine o sentido objetivista, como sucede maximamente na fiscalização abstrata da constitucionalidade e legalidade”.


Portanto, fácil concluir que a inconstitucionalidade por arrastamento é um exceção aos princípios do pedido e da congruência, sendo admissível sua aplicação e razão das particularidades do processo objetivo e de outros fundamentos.


Em regra, a inconstitucionalidade se mostra antecedente e é aquela que decorre de um princípio explícita e diretamente feito na inicial, em que se faz um confronto direto entre o comportamento estatal e a Constituição. A inconstitucionalidade conseqüente vem a ser a que decorre como corolário desse juízo ou a que inquina certo ato por inquinar ato que ele depende.


A inconstitucionalidade por arrastamento ocorre quando a declaração de inconstitucionalidade de um dispositivo expressamente impugnado produz efeitos sobre um dispositivo não expressamente impugnado, ligados que estão pelo vínculo de dependência ou interdependência. Sobre este último dispositivo não impugnado, mas dependente ou interdependente do impugnado, afirma-se que houve inconstitucionalidade por arrastamento.


A inconstitucionalidade por arrastamento é uma hipótese de exceção ao princípio do pedido, pois, mesmo que não tenha havido pedido expresso de declaração de inconstitucionalidade da norma dependente, esta será atingida.


Ressalte-se que, de acordo com o princípio do pedido, o autor poderá pedir a inconstitucionalidade também da norma dependente, em conjunto com a outra da qual depende.


Como há uma relação de dependência ou interdependência entre as normas impugnadas, decorre de um princípio lógico que estas normas não podem, isoladamente, manter vida autônoma, sob pena de se violar o postulado segundo o qual o ordenamento jurídico é um sistema ordenado de normas.


Neste sentido, declarada a inconstitucionalidade de uma norma, as demais que daquela são dependentes ou interdependentes, devem ser atingidas também pela eiva da inconstitucionalidade.


A inconstitucionalidade por arrastamento também tutela a segurança jurídica, pois traria perplexidade aos jurisdicionados a existência de norma isolada no ordenamento jurídico destituída de sentido. Não é demais lembrar que o princípio da segurança jurídica foi expressamente previsto no artigo 5º, caput da Constituição Federal.


Pode-se extrair da sistemática legal a possibilidade de aplicação da inconstitucionalidade por arrastamento. O artigo 23 da Lei n.º 9868/99, ao tratar da Ação Direta de Inconstitucionalidade, dispõe que, efetuado o julgamento, será proclamada a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da disposição ou norma impugnada, se num ou noutro sentido se tiverem manifestado pelo menos seis Ministros do Supremo Tribunal Federal.


Diversas disposições legais, que possuam vínculos de dependência ou interdependência, poderão formar apenas uma norma. Por conseguinte, como o ordenamento jurídico permite o julgamento não apenas das disposições, mas também de normas formadas a partir de vários dispositivos legais, é perfeitamente possível que tanto o dispositivo declarado inconstitucional quanto o afetado por conseqüência formem apenas uma norma. Assim, quando o Supremo Tribunal Federal declara a inconstitucionalidade por arrastamento de dispositivo não explicitado na ação, estaria, em verdade, atingindo uma norma que foi expressamente impugnada, ao menos em parte.


A inconstitucionalidade por arrastamento vertical há uma relação hierárquica entre as normas dependentes, após a declaração de inconstitucionalidade da norma hierarquicamente superior, a norma inferior, que extrai seu fundamento daquela, perde sua validade por inconstitucionalidade por conseqüência.


Na inconstitucionalidade por arrastamento vertical o pressuposto é que tenha sido declarada a inconstitucionalidade da norma superior que serve de fundamento de validade de outra norma, hierarquicamente inferior. Justamente em razão desta relação de dependência é que a norma inferior é atingida pela declaração de inconstitucionalidade.


A inconstitucionalidade por arrastamento horizontal é aquela em que as normas estão no mesmo patamar hierárquico, ou seja, tanto a norma impugnada quanto a não impugnada (atingida pela inconstitucionalidade por arrastamento) estão na mesma hierarquia, no mesmo degrau da pirâmide normativa.


Na inconstitucionalidade por arrastamento horizontal por dependência intrínseca, uma norma está inserida no processo de elaboração de outra ou, ao menos, como antecedente lógico de seu processo de formação. Assim, ocorrendo a inconstitucionalidade da norma antecedente, terá, por arrastamento, a inconstitucionalidade da norma conseqüente. É decorrência do princípio da causalidade, segundo o qual a nulidade de um ato levará à de todos aqueles que dele diretamente dependem, ou seja, conseqüentes.


Em se tratando de medida provisória, o Supremo Tribunal Federal não tem aceito a aplicação da inconstitucionalidade por arrastamento, pois exige que a inicial seja aditada expressamente nas hipóteses, sob pena de perda do objeto.


A inconstitucionalidade por arrastamento horizontal por dependência extrínseca é aquela em que há uma dependência exterior entre as normas, não ligadas pelo processo de formação, mas sim pelo sentido delas.


A dependência extrínseca ocorre quando o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma faz com que se esvazie a validade de outra norma, seja porque deixa de ter qualquer significado autônomo (dependência unilateral), seja porque as normas faziam parte de uma sistemática normativa comum, que restou comprometida pela declaração de inconstitucionalidade de uma delas (interdependência).


A dependência extrínseca pode, ainda, ser por dependência unilateral ou por interdependência.


Na hipótese de dependência unilateral é possível verificar que a relação entre as normas é tal que, após a declaração de inconstitucionalidade, a norma dependente deixa de ter qualquer significado autônomo, perdendo sua funcionalidade dentro da sistemática jurídica. A relação entre as normas – ao menos em seu aspecto funcional dentro do sistema – é de principal para acessório e, como se sabe, este não pode subsistir sem aquele. Portanto, em razão da referida dependência, será necessária a declaração de inconstitucionalidade por arrastamento da norma dependente, mesmo que não expressamente impugnada.


É possível afirmar que há inconstitucionalidade por arrastamento horizontal por interdependência entre as normas quando estas fazem parte de uma mesma sistemática jurídica, existindo um liame de sentido entre as normas que as tornam integrantes de um mesmo regramento legal. Justamente por isto – dentro deste contexto de interdependência entre as normas, fruto de uma sistemática única – é que se impende a declaração de inconstitucionalidade apenas de uma delas.


Na inconstitucionalidade por interdependência é até possível imaginar uma norma sem a outra, não sendo desarrazoado afirmar que possuem autonomia, ao menos se isoladamente considerada.


Porém, a relação de interdependência entre as normas traz inerente um sério risco: de que, com a declaração parcial de constitucionalidade, se altere a vontade original do legislador. Realmente, caso se declare a inconstitucionalidade de apenas uma das normas interdependentes é possível que se chegue a uma situação sequer prevista inicialmente pelo legislador.


Nestas situações em que o legislador originariamente não adotaria uma norma desacompanhada da outra, caso o Supremo Tribunal Federal declare apenas uma das normas interdependentes inconstitucional estaria a atuar como legislador positivo. Em outras palavras, causaria um desequilíbrio dentro da lei, alterando o conteúdo originariamente previsto pelo legislador e, assim, criando uma nova lei.


Diante disso, o Egrégio Tribunal tem corretamente se recusado a declarar a inconstitucionalidade parcial, sob o argumento da separação de Poderes. Porém, ao invés de aplicar a inconstitucionalidade por arrastamento, o Supremo Tribunal Federal tem, ao contrário, não conhecido das ações diretas nestes casos, por impossibilidade jurídica do pedido.



Fonte: Leituras Complementares de Direito Constitucional – Controle de Constitucionalidade de Hermenêutica Constitucional. Organizador: Marcelo Novelino. Inconstitucionalidade por Arrastamento ou por Consequência. Andrey Borges de Mendonça.