quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Ilícito Tributário

No Direito Tributário, como conjunto de normas que regulam a instituição e cobrança de tributos, prevalece o princípio da legalidade. É importante, outrossim, observar tal princípio diz respeito à relação de tributação.
Não há tributo sem lei que o estabeleça. Se o fato não está previsto na lei tributária, sua ocorrência é irrelevante para o Direito Tributário. Diz-se que o fato não previsto na lei tributária integra o campo da não incidência.
Sanção é o meio de que se vale a ordem jurídica para desestimular o comportamento ilícito. Pode limitar-se a compelir o responsável pela inobservância da norma ao cumprimento de seu dever, e pode consistir num castigo, numa penalidade a este cominada.
A penalidade, por seu turno, pode ser pessoal e patrimonial. No âmbito da tributação as penalidades pessoais podem ser consideradas obsoletas e inadequadas. São as restrições de direitos, as interdições de atividades. As penalidades patrimoniais são as multas.
Ilícito administrativo tributário é o comportamento que implica inobservância de norma tributária. Implica inadimplemento de obrigação tributária, seja principal ou acessória.
O ilícito tributário diz-se de conteúdo patrimonial quando implica o não pagamento, total ou parcial, do tributo. Sem conteúdo patrimonial é o ilícito consistente no inadimplemento de simples obrigação acessória.
As leis tributárias geralmente estabelecem penalidades específicas para o descumprimento de obrigações acessórias, com valores fixos ou com indicações de limites mínimo e máximo, mas sem vinculação com o imposto ou com o valor de qualquer operação tributável. São as chamadas multas por infrações formais. Se o contribuinte pode demonstrar que o imposto foi pago, afastando, portanto, aquela presunção de inadimplemento da obrigação principal, é esta a multa cabível, e não aquela fixada em função do valor do imposto ou de sua base de cálculo.
As multas proporcionais ao valor do tributo somente se justificam naqueles casos em que também o dever de pagar o tributo não foi cumprido, e por isto mesmo é cobrado juntamente com a penalidade. Se esta for cobrada de forma autônoma, porque inexistem condições legais para a cobrança do tributo, não há razão para aplicação de penalidade proporcional ao valor do tributo.
Importante é ter-se em vista que o uso de documento fiscal inidôneo, ou de descumprimento de qualquer outra obrigação tributária acessória, apenas pode gerar presunção mas nunca certeza do inadimplemento da obrigação principal. Se o contribuinte comprova, por quaisquer meios em direito geralmente admitidos, que o fato tributável foi escriturado em seus livros e o tributo correspondente foi pago, ou está registrado para pagamento no prazo legal, infundada será a imposição de penalidade proporcional ao tributo, ao mesmo tempo em que a exigência deste é também indevida, por configurar inadmissível bis in idem.
Havendo dúvida sobre a capitulação legal do fato, ou sobre qual seja a penalidade aplicável, a solução deve ser mais favorável ao acusado do cometimento do ilícito, por força do princípio do Direito Penal albergado pelo artigo 112 do Código Tributário Nacional.
A Lei n.º 4.729/95 definiu como crime de sonegação fiscal comportamentos, que descreveu de forma casuística, relacionados com o dever tributário.
Nos termos do artigo 1º da Lei n.º 8.137/90, constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:
- omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
- fraudar a fiscalização tributária inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza em documentos ou livro exigido pela lei fiscal;
- falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;
- elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;
- negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa à venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.
O crime de supressão ou redução de tributo distingue-se do antigo crime de sonegação fiscal, essencialmente, por ser um crime material, ou de resultado. Só estará consumado se houver a supressão ou redução do tributo.
Nos termos do artigo 2º da Lei n.º 8.137/90, constitui crime contra a ordem tributária:
- fazer declaração falsa, ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;
- deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
- exigir, pagar, ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer porcentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;
- deixar de aplicar ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcela de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;
- utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.
Os crimes definidos no artigo 2º são formais, ou de mera conduta, vale dizer, restam consumados independentemente do resultado. O dolo específico é elementar do tipo.
A Lei n.º 4.357/64, em seu artigo 11, estabeleceu que inclui-se entre os fatos constitutivos do crime de apropriação indébita, definido no artigo 168 do Código Penal, o não recolhimento, dentro de 90 (noventa) dias do término dos prazos legais:
- das importâncias do Imposto de Renda, seus adicionais e empréstimos compulsórios, descontados pelas fontes pagadoras de rendimentos;
- do valor do Imposto do Consumo indevidamente creditado nos livros de registro de matérias-primas e deduzido de recolhimentos quinzenais, referentes às notas fiscais que não correspondam à efetiva operação de compra e venda ou que tenham sido emitidas em nome de firma ou sociedade inexistente ou fictícia;
- do valor do Imposto do Selo recebido de terceiros pelos estabelecimentos sujeitos ao regime de verba especial.
O fato deixa de ser punível, se o contribuinte ou a fonte retentora recolher dos débitos antes da decisão administrativa de primeira instância ou no respectivo processo fiscal.
Extingue-se a punibilidade do crime de apropriação indébita, pela existência, à data da apuração da falta, de crédito do infrator, perante à Fazenda Nacional, autarquias federais e sociedades de economia mista em que a União seja majoritária, de importância superior aos tributos não recolhidos, excetuados os créditos restituíveis, nos termos da Lei n.º 4.155/62.
A ação penal será iniciada por meio de representação da Procuradoria da República, à qual a autoridade julgadora de primeira instância é obrigada a encaminhar as peças principais do feito, destinadas a comprovar a existência de crime, logo após a decisão final condenatória na esfera administrativa.
Quando a infração for cometida por sociedade, responderão por ela seus diretores, administradores, gerentes ou empregados cuja responsabilidade no crime for apurada em processo regular. Tratando-se de sociedade estrangeira, a responsabilidade será apurada entre seus representantes, dirigentes e empregados no Brasil.
O artigo 2º do Decreto-lei n.º 326/67, por seu turno, estabelece que a utilização do produto da cobrança do imposto sobre produtos industrializados em fim diverso do recolhimento de tributo constitui crime de apropriação indébita definido no artigo 168 do Código Penal, imputável aos responsáveis legais da firma, salvo se pago o débito espontaneamente, ou quando instaurado processo fiscal, antes da decisão administrativa de primeira instância.
A Lei n.º 8.137/90 estabelece que constitui crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado na condição de sujeito passivo da obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”.
Não se diga que o não pagamento do IPI, ou do imposto de renda retido na fonte, ou de contribuição de seguridade social descontadas de empregados, corresponde à apropriação indébita, definida no artigo 168 do Código Penal. O contribuinte não se apropria, porque o dinheiro lhe pertence, e não ao Fisco, que é simplesmente credor.
Em qualquer caso, o contribuinte escritura, em sua contabilidade, os valores a serem pagos ao Tesouro, resta ausente o elemento subjetivo do tipo penal.
Os Tribunais Regionais Federais estão admitindo que, na hipótese de séria dificuldade financeira, comprovada pela falência da empresa, o não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas de empregados deixa de configurar o crime previsto no artigo 95, alínea “d” da Lei n.º 8.212/91, em face da inexigibilidade de outra conduta.
A não exigibilidade de conduta configura-se sempre que, em situação de crise financeira, a opção pelo uso do dinheiro disponível para o pagamento de empregados e de dívidas outras seja a única forma de manter a empresa em funcionamento, numa tentativa sincera de superação da crise, depois da qual a dívida tributária será paga.
Inexiste distinção essencial entre o ilícito civil, ou administrativo, e o ilícito penal. Em conseqüência, não há também distinção essencial entre a sanção civil, ou administrativa, e a sanção penal. A distinção seria apenas valorativa. A sanção penal seria reservada aos que praticam ilícitos mais graves, que mais seriamente ofendem aos interesses sociais. A distinção residiria na gravidade da violação da ordem jurídica.
Parte da doutrina alega que a ação penal, nos crimes contra a ordem tributária, deve ser recebida ainda quando não descreva a conduta individual de cada denunciado. Seria bastante a descrição do fato capaz de tipificar o crime, ocorrido no âmbito da empresa da qual o denunciado é dirigente. Todavia, admitir-se tal argumento é aceitar não apenas a responsabilidade objetiva, mas também a responsabilidade pelo fato de outrem.
Não são raras as situações nas quais o fato que constitui crime contra a ordem tributária é praticado por empregado, e até por diretor da empresa, em detrimento desta e em proveito próprio. Os dirigentes da empresa, como seus proprietários, restam lesados, e não é razoável que além de vítimas, ainda sejam responsabilizados pelo ilícito fiscal. Justo, portanto, é exigir-se que a denúncia descreva a conduta de cada denunciado.
Não vale o argumento segundo o qual a individualização da conduta pode ser feita no curso da ação penal. Tal individualização há de ser prévia, sem o que estará fortemente cerceado o direito de defesa, pois o acusado não saberá o que lhe está sendo imputado, e assim não terá como defender-se.
A questão da responsabilidade por cometimentos ilícitos deve ser equacionada a partir da distinção entre as sanções pessoais e as sanções patrimoniais. As primeiras são aquelas que afligem diretamente a pessoa natural, e se caracterizam pela possibilidade de serem suportadas pessoalmente por qualquer ser humano, independentemente de sua atividade profissional, de sua riqueza ou qualquer outra qualificação. São as penas ditas corporais. Penas privativas de liberdade, ou de prestação de serviços à comunidade, por exemplo. As últimas são aquelas que só indiretamente afligem a pessoa natural, e se caracterizam por seu conteúdo patrimonial, e que por isto mesmo somente podem ser suportadas por quem disponha de riqueza.
Para ensejar sanções pessoais a responsabilidade há de ser necessariamente fundada na culpa. Tais sanções, por isto mesmo, somente podem ser aplicadas a pessoais naturais, pois somente em relação a estas se pode falar em culpa. Para ensejar sanções patrimoniais não será necessário cogitar de dolo ou culpa. Por isto, tais situações podem ser aplicadas à pessoas jurídicas, com fundamento na responsabilidade objetiva.
As sanções políticas são flagrantemente inconstitucionais, entre outras razões, porque: a) implicam indevida restrição ao direito de exercer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, assegurado pelo artigo 170, parágrafo único, da Constituição Federal; b) configuram cobrança, sem o devido processo legal, com grave violação ao direito de defesa do contribuinte, porque a autoridade que a este impõe a restrição não é a autoridade competente para apreciar se a exigência do tributo é ou não legal.
Apesar de inconstitucionais, as sanções políticas são hoje largamente praticadas, no mais das vezes por puro comodismo das autoridades da Administração Tributária. Tem sido freqüente, assim, a impetração de mandados de segurança para garantir ao contribuinte a prática de certos atos, livrando-o das sanções políticas.
Enquanto ninguém for responsabilizado pelos práticas ilegais, o Fisco vai continuar agindo de forma arbitrária, porque as autoridades não estão preocupadas de nenhum modo como a legalidade. Mesmo que haja a responsabilização da entidade pública, a ilegalidade seguirá sendo praticada porque cada governante vai deixar o problema da indenização para o sucessor, cuidando apenas de protelar o desfecho da questão. Entretanto, no momento em que a autoridade sentir-se responsabilizada, pessoalmente, pela conduta ilegal ou abusiva, certamente vai pensar antes de seguir em sua prática.
A Lei n.º 10.684/2003, que estabeleceu forma especial de parcelamento de débitos fiscais, determinou a suspensão da pretensão punitiva tanto em relação aos crimes contra a ordem tributária como e relação aos crimes de apropriação indébita e de sonegação de contribuições de previdência social. E o Supremo Tribunal Federal já consagrou o entendimento segundo o qual, em face dessa lei, o pagamento do débito tributário a qualquer tempo extingue a punibilidade de qualquer desses crimes, mesmo depois do recebimento da denúncia. Há corrente doutrinária que defende da extinção da punibilidade mesmo que o pagamento venha ocorrer depois da sentença condenatória transitada em julgado.
No âmbito das penalidades administrativas, a questão se resolve nos termos do artigo 138 do Código Tributário Nacional. Se o pagamento é feito com denúncia espontânea a infração, nenhuma penalidade pode ser aplicada. Se, todavia, é feito em face de exigência formalizada em ação fiscal, o pagamento do crédito tributário feto no prazo estabelecido para impugnação do auto de infração, ou no prazo para o recurso administrativo, implica redução do valor da multa, que geralmente vem estabelecido na lei específica de cada tributo.
Essa redução do valor da multa, nas hipóteses em que o contribuinte renuncia ao direito de impugnar e recorrer, constitui uma forma obliqua de punir o sucumbente. Por isto a doutrina entende que a lei deveria estabelecer sucumbência também para a Fazenda Pública, dando, assim, um tratamento isonômico aos litigantes.
Segundo o artigo 212 do Código Tributário Nacional, o Poder Executivo de cada esfera de governo, tem o dever de expedir, anualmente, até o dia 31 de janeiro de cada ano, a consolidação, em texto único, da legislação tributária vigente, relativa a cada um dos seus tributos. A ausência deste ato não desobriga o contribuinte do pagamento.
Para que sejam preservados os direitos constitucionais do contribuintes, entre os quais o de pagar apenas os tributos devidos, e de utilizar-se desse fim, do direito ao contraditório e ampla defesa, inclusive no processo administrativo, não se pode admitir denúncia sem o prévio exaurimento da via administrativa.
Por isto mesmo a lei determinou que a representação fiscal, para fins penais, relativa aos crimes contra a ordem tributária será encaminhada ao Ministério Público após proferida decisão final, na esfera administrativa, sobre a existência fiscal do crédito tributário correspondente.
De acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, há falta de justa causa para ação penal antes do lançamento definitivo, por se tratar de crime de resultado. E, na verdade, a ação penal antes do lançamento definitivo pode conduzir a uma situação absurda, no qual o Estado-Juiz pune alguém por supressão ou redução de tributo, e o mesmo Estado, como Administração Tributária, diz que nenhum tributo lhe é devido.
A questão essencial consiste em saber se é juridicamente válido o uso da ação penal como instrumento de coação para obrigar o contribuinte a pagar tributos sem direito de questionar a legalidade destes.
Quando não tenha sido iniciada ação fiscal e o Ministério Público tenha, por outros meios, notícia do crime, deve este oficiar à autoridade administrativa para que instaure ação fiscal. Somente nas hipóteses em que disponha de suficientes indícios de corrupção passiva, prevaricação ou outro crime cometido pela autoridade administrativa, no âmbito dos fatos relacionados com o ilícito penal imputável ao contribuinte, poderá desde logo oferecer denúncia contra este, e, em tais hipóteses, há de denunciar também a autoridade administrativa.
O crime definido no artigo 1º da Lei n.º 8.137/90 é de resultado, vale dizer, só se consuma quando ocorre a supressão ou redução do tributo devido. Em outras palavras, a existência do tributo devido é elemento essencial do tipo. Assim, se não há tributo devido, não se consuma o crime. Já no caso do artigo 2º da mesma lei, o crime é de natureza formal, no entanto, também é essencial a existência de tributo devido.

Fonte: Curso de Direito Tributário. Hugo de Brito Machado

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Defeitos do Negócio Jurídico – O Erro e o Dolo

A vontade é a mola propulsora dos atos e dos negócios jurídicos. Essa vontade deve ser manifestada de forma idônea para que o ato tenha vida normal na atividade jurídica e no universo negocial. Se essa vontade na corresponder ao desejo do agente, o negócio jurídico torna-se suscetível de nulidade ou anulação.
Quando a vontade nem ao menos se manifesta, quando é totalmente tolhida, não se pode falar nem mesmo em existência do negócio jurídico. O negócio é inexistente ou nulo por lhe faltar requisito fundamental.
Quando, porém, a vontade é manifestada, mas com vício ou defeito que a torna mal dirigida, mal externada, estamos, na maioria das vezes, no campo do ato jurídico anulável, isto é, o negócio jurídico terá vida somente até que, por iniciativa de qualquer prejudicado, seja pedia sua anulação. O Código Civil regula o erro ou a ignorância, o dolo, a coação, o estado de perigo, a lesão e a fraude contra credores.
Em seu artigo 171, o Código Civil consigna que, além dos casos expressamente declarados por lei, é anulável o negócio jurídico: i) por incapacidade relativa do agente; ii) por vício constante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude contra credores.
O primeiro vício de consentimento é o erro, com as mesmas conseqüências da ignorância. Trata-se de manifestação de vontade em desacordo com a realidade, quer porque o declarante a desconhece (ignorância), quer porque tem representação errônea dessa realidade (erro).
Quando esse desacordo com a realidade é provocado maliciosamente por outrem, estamos perante o dolo,
Quando o agente é forçado a praticar um ato por ameaça contra si, ou contra alguém que lhe é caro, o ato é anulável por coação.
Quando o agente paga preço desproporcional ao real valor da coisa, sob certas circunstâncias estaremos perante hipótese de lesão. O estado de perigo configura-se quando alguém, premido de necessidade de salvar-se, ou pessoa de sua família, de grave dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.
Esses vícios afetam a vontade intrínseca do agente e a manifestação de vontade é viciada.
Nos vícios sociais, a situação é diversa. O intuito é ludibriar terceiros. A vontade, por parte do declarante, é real e verdadeira, mas dirigida para prejuízo de outrem.
Na simulação, há processo de mancomunação do declarante e declaratário com o objetivo de fraudar a lei ou prejudicar terceiros.
Na fraude contra credores, a intenção do declarante é afastar seu patrimônio de seus credores, por meios de atos que possuam aparência de legitimidade.
De acordo com a teoria da responsabilidade, prefere-se o interesse da sociedade ao do indivíduo; a segurança das relações sociais ao interesse individual. Por essa teoria, o erro poderia anular o ato jurídico tão-somente se o declarante houvesse agido de plena boa-fé, se culpa ou dolo. Trata-se de abrandamento à teoria da declaração. Existe ainda a corrente eclética, a teoria da confiança, que é o abrandamento da teoria da vontade. Por ela, se a declaração diverge da vontade, o ato será válido se o defeito não for perceptível pelo declaratário.
O Código Civil admite expressamente que o prazo, para anular o negócio jurídico por coação, erro, dolo, fraude contra credores, estado de perigo e lesão é decadencial e de 4 (quatro) anos. Nesse mesmo prazo, decai a pretensão para anular atos de incapazes, a contar do dia em que cessar a incapacidade. Tratando a simulação como causa de nulidade, a ação para sua declaração é imprescritível no vigente ordenamento civil.


Erro
O Código assemelhou e equiparou os efeitos do erro à ignorância. O erro manifesta-se mediante a compreensão psíquica errônea da realidade, ou seja, a incorreta interpretação de um fato. A ignorância é um nada a respeito de um fato, é o total desconhecimento.
O artigo 138 do Código Civil dispõe: são anuláveis os negócios jurídicos quando as declarações emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio. O citado dispositivo fala em erro substancial. Distingue-se, portanto, de início, o erro substancial do erro acidental.
O erro deve apresentar os seguintes requisitos: a) ser escusável; b) ser real, isto é, recair sobre o objeto do contrato e não simplesmente sobre o nome ou suas qualificações; c) referir-se ao próprio negócio e não a motivos não essenciais; d) ser relevante.
O erro grosseiro, facilmente perceptível pelo comum dos homens, não pode ser idôneo para autorizar a anulação do ato. O princípio geral é do homem médio. Por essa razão, o Código Civil reporta-se ao erro que pode ser percebido por pessoa de diligência normal para as circunstâncias do negócio. Trata-se do conceito de homem médio para o caso concreto.
Todo vício de vontade, e principalmente o erro, deve ser examinado sob o prisma da declaração de vontade. Doutra parte, não podemos deixar de levar na devida conta a situação do declaratário, principalmente na situação que não obrou, não colabarou para o erro do declarante. Nesse caso, a anulação do ato jurídico para o primeiro será sumamente gravosa. Tendo em vista esse aspecto, não podemos deixar de levar em consideração a escusabilidade do erro.
A escusabilidade aparece quando o erro não provém de extraordinária ignorância ou diligência. Por outro lado, o erro indesculpável é o erro escandaloso, que procede de culpa grave do declarante, é aquele que não teria caído uma pessoa dotada de normal inteligência, experiência e circunspecção.
A lei exige que o erro, para anular o ato, seja substancial. O erro substancial ou essencial contrapõe-se ao erro acidental ou incidental.
Erro essencial é o que tem papel decisivo na determinação da vontade do declarante, de modo que, se conhecesse o verdadeiro estado das coisas, não teria desejado, de modo nenhum, concluir o negócio. Erro substancial ou essencial é, portanto, o que dá causa ao negócio, mas não é necessário que tenha sido a causa única. Pode ter sido concausa ou casa concomitante. Dessa forma, o erro deve ser causa suficiente para conclusão do negócio, uma das causas.
O artigo 139 do Código Civil define o que a lei entende por erro substancial o que interessa à natureza do negócio, o objeto principal da declaração, ou alguma das qualidades a ele essenciais. O artigo 139, inciso II, menciona o erro quanto à pessoa, aquele que concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante.
No erro substancial quanto à natureza do ato (error in ipso negotio), o declarante pretende praticar ato e, entretanto, outro é praticado. O erro sobre o objeto principal da declaração (erro in ipso corpore rei), a coisa objetivada pelo declarante não era a constante do negócio. Nesses dois casos, temos o que a doutrina denomina erro obstáculo, que não seria exatamente vício de consentimento, mas óbice impeditivo da manifestação de vontade. A lei brasileira equipara as duas situações e não faz distinção entre elas; trata todas as situações sob o prisma da anulabilidade, entendendo que o erro sobre a natureza do negócio ou sobre a identidade do objeto perfaz, em síntese, manifestação de vontade, errônea, é verdade, mas que nem por isso deixa de ser uma externação volitiva.
O erro, para propiciar a anulação do negócio, além de ser escusável, deve ser substancial e real, isto é, verdadeiro, tangível, palpável, importando em verdadeiro prejuízo para o declarante.
Erro acidental, pelo contrário, não é suficiente para anular o negócio. Avulta de importância o exame do caso concreto feito pelo Juiz, na busca da intenção das partes. Acidental é o erro que recai sobre motivos ou qualidades secundárias de um objeto ou de uma pessoa, não alterando a validade do negócio: não se poderia presumir que o declarante não fizesse o negócio se soubesse das reais circunstâncias.
Em qualquer caso, é o exame do caso concreto que define o erro substancial ou acidental, cuja dúvida, geralmente, reside nas qualidades essenciais do objeto ou nas qualidades essenciais da pessoa, a quem se refira a declaração da vontade. Em geral, os casos de erro-obstáculo são sempre de erro substancial.
Os motivos são de ordem interna, psicológica e não devem intervir na estabilidade jurídica dos negócios. Se as partes, porém, erigem um dos motivos em razão determinante do negócio, ele se integra ao próprio, passa a fazer-lhe parte, gerando a anulabilidade se for inverídico ou falso. Importa aqui mencionar que o motivo deve ser de conhecimento do declaratário; caso contrário, não pode ser alegado como fundamento de anulação do ato.
O texto da Lei de Introdução ao Código Civil dispõe: ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. Portanto, que é levado a falso entendimento, por ignorância da lei não cogente, não está desobedecendo-a. Logo, nada impede que se alegue erro de direito se seu reconhecimento não ferir norma de ordem pública ou cogente e servir para demonstrar descompasso entre a vontade real do declarante e a vontade manifestada. Destarte, a regra nemo ius ignorare consentur (a ninguém é dado ignorar a lei) tem alcance limitado e refere-se sobretudo aos atos ilícitos.
O artigo 1309, inciso III do Código Civil também dispõe que o erro é substancial também quando sendo de direito e não implicando recusa da aplicação da lei, for o móvel o único ou principal do negócio, pondo, assim, fim à controvérsia.
A transmissão errônea da vontade por meios interpostos é anulável nos mesmos casos em que o é a declaração direta. Se a vontade é transmitida erradamente por anúncio, por exemplo, ou no caso de mensagem truncada por telex, telegrama, ou fac-símile, o ato pode ser anulado, nas mesmas condições da transmissão direta. Aqui, também, temos de ter em vista a situação do declaratário. O erro deve ser reconhecível por ele. Se o ato não logra ser anulado, a hipótese e de responsabilidade do emitente (do anúncio ou do mensageiro), se obrou com culpa, nos termos do artigo 186 do Código Civil.
O artigo 142 do Código Civil trata do erro acidental ou incidental e, portanto, sanável, incapaz de viciar o ato. Ex.: um testador refere-se ao filho Antonio, quando, na realidade, não filho com esse nome, mas apenas filho de nome José,
O artigo 143 diz que erro de cálculo apenas autoriza a retificação da declaração de vontade. De acordo com essa disposição, que podia perfeitamente ser aplicada como orientação doutrinária, o erro é acidental. Não constitui motivo de anulação, mas pode ser corrigido, vale, portanto, o negócio.
O erro não prejudica a validade do negócio jurídico, quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante.
A teoria dos vícios redibitórios e aplicação da teoria geral do erro. Vício redibitório é o defeito oculto de que é portadora a coisa objeto do contrato comutativo, que a torna imprópria para o uso a que se destina ou prejudica-lhe o valor. O erro é apontado como seu fundamento; se o agente soubesse do vício, não teria realizado o contrato. Tem como efeito a duplicidade de alternativa: pode o adquirente enjeitar a coisa, redibindo o contrato e devolvendo o bem ou, se for o caso, pode utilizar-lhe da ação quantiminoris, pedindo a diminuição do preço.
Embora a íntima relação existente entre os vícios redibitórios e o erro sobre as qualidades essenciais do objeto, seus respectivos fundamentos são diversos. No vício redibitório, o fundamento é a obrigação que o vendedor possui de assegurar o comprador contra defeitos ocultos na coisa que a tornem imprestável para a finalidade a que se destina. No erro, o fundamento é a vontade incorretamente manifestada no momento do próprio ato. O vício redibitório é objetivo, existe na própria coisa. O erro é subjetivo, reside na manifestação de vontade.
Mesmo nos vícios redibitórios, os Tribunais têm negado a redibição quando o defeito é visível, facilmente perceptível, quando há, então, negligência por parte do agente.
Há erro quando alguém paga determinado preço que acredita justo, numa compra e venda, e posteriormente vê que é desproporcionadamente alto, havendo enorme disparidade.
Anulação por erro redunda em situação toda especial, ou seja, a responsabilidade é exatamente daquele que pede a anulação do negócio, já que é o único responsável por sai má destinação. Seria sumamente injusto que o declarátario que não erro, nem concorreu para o erro do declarante, arcasse com duplo prejuízo, duplo castigo: a anulação do negócio e a absorção do prejuízo pelas importâncias a serem pagas ou devolvidas, conforme o caso, além dos ônus da sucumbência processual. Devem, portanto, os Juízes atentar para essa importante particularidade ao decretar a anulação do negócio por erro, atendendo-se os requisitos do interesse negativo.
A parte que incide em erro responde pelos danos causados por um ato lícito, já que decorreu de sua própria negligência ao contratar, o que deu causa à anulabilidade desse mesmo ato. Trata-se do interesse negativo.
Processualmente, a situação é interessante. Parece que o réu na ação anulatória deve ingressar com reconvenção, pois, na sistemática processual, é estranha a condenação do autor que vence a ação... Na falta de reconvenção, ficarão abertas ao sucumbente as portas da ação autônoma, se bem que nada obsta que, mesmo na ausência de reconvenção, o réu seja indenizado em execução de sentença, a qual geralmente, deve ser processada por artigos. A situação é, mutatis mutandis semelhante ao direito de retenção por benfeitorias. O que é patente, no entanto, é que não de pode sacrificar o direito material sob o fundamento de atender a princípios de ordem processual. A presente situação é típica de encarar o processo como meio de atingir a Justiça e não um fim em si mesmo. Ainda que a situação possa parecer estranha, o fato é que o direito material deve ser atendido, constituindo-se igualmente o princípio da economia processual.


Dolo
Dolo consiste em artifício, artimanha, engodo, encenação, astúcia, desejo maligno tendente a viciar a vontade do destinatário, a desviá-la de sua correta direção.
O dolo induz o declaratário, isto é, o destinatário da manifestação de vontade, a erro, mas erro provocado pela conduta do declarante. O erro participa do conceito de dolo, mas é por ele absolvido.
O dolo tem em vista o proveito ao declarante ou a terceiro. No integra a noção de dolo o prejuízo que possa ter o declarante, porém, geralmente, ele existe, daí porque a ação de anulação do negócio jurídico, como regra, é acompanhada do pedido de indenização por perdas e danos. A prática do dolo é ato ilícito, nos termos do artigo 186 do Código Civil.
Embora a noção ontologicamente seja igual, não se confunde o dolo nos atos jurídicos com o dolo no Direito Penal. Neste é doloso o crime quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. O induzimento malicioso, o dolo, é uma das causas viciadoras do negócio.
Objetivamente, o erro mostra-se a vista de todos, da mesma forma que o dolo, ou seja, como representação errônea da realidade. A diferença reside no ponto que no erro o vício da vontade decorre da íntima convicção do agente, enquanto no dolo há induzimento ao erro por parte do declaratário ou de terceiro. Como costumeiramente diz a doutrina: o dolo surge provocado, o erro é espontâneo.
Conforme dispositivos legais, assim como existe erro essencial e erro acidental, há dolo principal ou essencial e dolo incidente, com iguais conseqüências; os primeiros implicam a anulabilidade e os segundos, não. O dolo essencial, assim como erro essencial, são aqueles que afetam diretamente a vontade, sem os quais o negócio jurídico não teria sido realizado.
Na prática, verifica-se que a mera alegação de erro é suficiente para anular o negócio. Sucede, no entanto, que a prova do erro é custosa, por ter de adentra-se no espírito do declarante. Daí porque preferem as partes legitimadas alegar dolo e demonstrar o artifício da outra parte, menos difícil de se evidenciar.
A fraude é processo astucioso e ardiloso tendente a burlar a lei ou convenção preexistente ou futura. O dolo, por seu lado, surge concomitantemente ao negócio e tem como objetivo enganar o próximo. A fraude geralmente visa à execução do negócio, enquanto o dolo visa à sua própria conclusão.
Washington Monteiro de Barros e Serpa Lopes enumeram os seguintes requisitos do dolo: a) intenção de induzir o declarante a praticar o ato jurídico; b) utilização de recursos fraudulentos graves; c) que esses artifícios sejam a causa determinante da declaração de vontade; d) que procedam do outro contratante ou sejam por estes conhecidos como procedentes de terceiros.
O dolo há de ser essencial, isto é, mola propulsora da vontade do declarante. Deve, em outro conceito, estar na base do negócio jurídico. Caso contrário, será dolo acidental e não terá potência de viciar o ato.
A intenção de prejudicar é própria do dolo, mas, em que pese a opinião de parte da doutrina, o prejuízo é secundário. Basta que a vontade seja desviada de sua meta para que o ato se torne anulável. O prejuízo pode ser apenas de ordem moral e não econômico. O ato jurídico é anulável ainda que a pessoa seja levada a praticar o ato objetivamente vantajoso, mas que ele não desejava. O silêncio intencional de uma das partes sobre fato relevante ao negócio também constitui dolo.
O Código Civil admite expressamente que o prazo par anular o negócio jurídico é de decadência, fixando-o em quatro anos contado do dia em que se realizou o negócio.
O dolo principal ou essencial torna o ato anulável. O dolo acidental só obriga a satisfação de perdas e danos. No dolo essencial há vício do consentimento, enquanto no dolo acidental há ato ilícito que gera responsabilidade para o culpado, de acordo com o artigo 186 do Código Civil.
Tanto no dolo essencial como no dolo acidental (dolo incidens), há propósito de enganar. Neste último caso, o dolo não é a razão precípua da realização do negócio, que apenas surge ou é concluído de forma mais onerosa para a vítima. É acidental o dolo quando a seu despeito o ato se teria praticado, embora por outro modo.
A contrario sensu, nos termos do artigo 146 do Código Civil é essencial o dolo, que é a razão de ser do negócio jurídico. Procura-se, por outro lado, identificar o dolo incidente como aquele praticado no curso de negociação já iniciada. Com freqüência isso pode ocorrer, mas não é caso exclusivo de dolo incidental.
Há, na história do Direito, dolo menos intenso, tolerado, que os romanos denominavam dolus bonus, opondo-se ao dolo mais grave, o dolus malus. O denominado dolo bom é, no exemplo clássico, a atitude do comerciante que elogia exageradamente sua mercadoria em detrimento dos concorrentes.
O dolo positivo (ou comissivo) traduz-se por expediente enganatórios, verbais ou de natureza que podem importar em série de atos e perfazer uma conduta. O dolo negativo (ou omissivo) é a reticência, a ausência maliciosa de ação para incutir falsa idéia ao declaratário. Costuma-se dizer na doutrina, a ser admitir com certa reservam que só há verdadeiramente dolo omissivo quando existe para o decptor o dever de informar. Tal dever, quando não resulta da lei ou da natureza do negócio, deve ser aferido pelas circunstâncias. É sempre o princípio da boa-fé que deve nortear os contratantes e é com base nele que o julgador deve pautar-se. A omissão dolosa deve ser cabalmente comprovada, devendo constituir-se dolo essencial.
São requisitos do dolo negativo: a) intenção de levar o outro contratante a se desviar de sua real vontade, de induzi-lo a erro; b) silêncio sobre circunstância desconhecida da outra parte; c) relação de essencialidade entre a omissão dolosa intencional e a declaração de vontade; d) ser a omissão do próprio contraente e não de terceiro.
Nos contratos de seguro, há aplicação específica do dever de informação particularmente amplo, como estatui o artigo 773 do Código Civil.
Desse modo, conclui-se que, apesar de o silêncio, por si só, não gerar efeito jurídico algum, quando há dever de informar, pode caracterizar dolo omissivo. Esse dever de informar decorre de cada caso concreto, do prudente exame do Juiz. Nesse aspecto, avulta de importância o critério do julgador para identificar o verdadeiro dolus bônus, ou dolo inocente, distinguindo-o do dolus malus.
Geralmente, o dolo que conduz à anulação do negócio provém do outro contratante. Pode ocorrer, contudo, que terceiro fora da eficácia direta do negócio aja com dolo.
O dolo de terceiro, para se constituir em motivo de anulabilidade, exige a ciência de uma das partes contratantes.
O dolo pode ocorrer, de forma genérica, nos seguintes casos: a) dolo direto, ou seja, de um dos contratantes; b) dolo de terceiro, ou seja, artifício praticado por estranho ao negócio, com cumplicidade da parte; c) dolo de terceiro, com mero conhecimento da parte a quem aproveita; d) dolo exclusivo de terceiro, sem que dele tenha conhecimento o favorecido.
Nas três primeiras situações, o negócio é anulável. No ultimo caso, quando o eventual beneficiado não toma conhecimento do dolo, o negócio persiste, mas o autor do dolo, por ter praticado ato ilícito, responderá por perdas e danos.
Levando em conta que, conquanto o dolo de terceiro seja desconhecido pela vítima e pelo outro contratante, há desvio de vontade, a doutrina critica o legislador por não permitir a anulação do ato. Protege-se, no entanto, nessa hipótese, a boa-fé do contratante inocente, em detrimento do desvio de vontade do declarante. No que se refere ao dolo, se a parte dele não tomou conhecimento, o ato não é anulável.
O dolo pode ser do representante ou do agente. Segundo o artigo 149 do Código Civil, o dolo do representante legal de uma das partes obriga o representado a responder civilmente até a importância do proveito que teve. Se, porém, o dolo for do representante convencional, o representante responderá solidariamente com ele por perdas e danos.
A culpa in eligendo ou in vigilando do representando deve ter por conseqüência responsabilizá-lo solidariamente pela reparação do dano e não simplesmente limitar sua responsabilidade ao proveito que teve.
Se ambas as partes procederam com dolo, há empate, igualdade na torpeza. A lei pune a conduta de ambas, não permitindo a anulação do ato. Se ambas as partes procederam com dolo, nenhuma pode alegá-lo, para anular o negócio, ou reclamar indenização. É a aplicação da regra geral pela qual ninguém pode alegar a própria torpeza – nemo propriam turpitudinem allegans. Não se compensam os dolos. O que a lei faz é tratar com indiferença ambas as partes que foram maliciosas, punindo-as com a impossibilidade de anular o negócio, pois ambos os partícipes agiram de má-fe.


Fonte: Direito Civil – Parte Geral. Sílvio de Salvo Venosa.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Organização Administrativa

O Estado tanto pode desenvolver por si mesmo as atividades administrativas que tem constitucionalmente a seu encargo, como pode prestá-las através de outros sujeitos.
Nesta segunda hipótese, ou transfere a particulares o exercício de certas atividades que lhe são próprias ou, então, cria outras pessoas, como entidades adrede concebidas para desempenhar cometimentos de sua alçada. Ao criá-las, a algumas conferirá personalidade de Direito Público e a outras personalidades de Direito Privado. Por meio delas, então, descentralizará as sobreditas atividades.
O Estado como a outras pessoas de Direito Público que crie, pelos múltiplos cometimentos que lhes assistem, têm de repartir no interior deles mesmos, os encargos de sua alçada entre diferentes unidades, cada qual, de uma parcela de atribuições para decidir que lhes são afetos. Estas unidades são denominadas órgãos e se constituem por um conjunto de competências.
Órgãos são as unidades abstratas que sintetizam os vários círculos de atribuições do Estado. Por se tratar, tal como o próprio Estado, de entidades reais, porém abstratas (seres de razão), não têm nem vontade nem ação, no sentido de vida psíquica ou anímica próprias, que, estas, só os seres biológicos podem possuí-las. De fato, os órgãos não passam de simples repartições de atribuições, e nada mais. A vontade e a ação do Estado (manifestada por seus órgãos) são constituídas na e pela vontade e ação dos agentes.
Os órgãos não passam de simples partições internas da pessoa cuja intimidade estrutural integram, isto é, não têm personalidade jurídica. Por isto, as chamadas relações interorgânicas, isto é, entre os órgãos, são, na verdade, relações entre os agentes enquanto titulares das respectivas competências, os quais, de resto, têm direito subjetivo ao exercício delas e dever jurídico de expressar-nas e fazê-las valer, inclusive contra intromissões indevidas e outros órgãos.
Os órgãos, quanto à estrutura, podem ser divididos em: a) simples; b) colegiais, conforme suas decisões sejam formadas e manifestadas individualmente por seus agentes, ou, então, coletivamente pelo conjunto de agentes que os integram, caso, este, em que suas deliberações são imputadas ao corpo deliberativo, e não a cada qual de seus componentes.
Quanto às funções que exercem, são tradicionalmente classificados em: a) ativos, que são os que expressam decisões estatais para o cumprimento dos fins da pessoa jurídica; b) de controle, que são os prepostos a fiscalizar e controlar a atividade de outros órgãos ou agentes; c) consultivos, que são os de aconselhamento e elucidação (pareceres) para que sejam tomadas as providências pertinentes pelos órgãos ativos.
A estas espécies tipológicas de órgãos devem ser acrescentados os órgãos verificadores, que são os encarregados da emissão de perícias ou de mera conferência de situações fáticas ou jurídicas; e os órgãos contenciosos, aos quais compete, em posição de absoluta imparcialidade, o julgamento de situações controversas.
Os pareceres emitidos pelos órgãos consultivos, quanto ao conteúdo, são: a) de mérito, se lhes compete apreciar a conveniência e oportunidade da medida a ser tomada, ou b) de legalidade, se devem examiná-la sob o ponto de vista da conformidade ao Direito. Quanto ao grau de necessidade ou influência que a lei lhes irroga, serão: a) facultativos, quando a autoridade não é obrigada a solicitá-los, fazendo-o para melhor se ilustrar, sem que a tanto esteja obrigada; b) obrigatórios, quando sua ouvida é imposta como impostergável, embora não seja obrigatório seguir-lhes a orientação; c) vinculantes, quando a autoridade não pode deixar de atender às conclusões neles apontadas.
Antes que poderes, as competências são deveres, o que é particularmente visível no caso das competências administrativas. Na verdade, elas são deveres-poderes, expressão, esta, que descreve melhor suas naturezas do que as expressão poder-dever. É que ditas competências são atribuídas ao Estado, a seus órgãos, e, pois, aos agentes neles investidos, especificamente para que possam atender a certas finalidades públicas consagradas em lei; isto é, para que possam cumprir o dever legal de suprir interesses concebidos em proveito da coletividade.
Na esfera do Direito Público os poderes assinados ao sujeito não se apresentam como situações subjetivas a serem consideradas apenas pelo ângulo ativo. É que, encartados no exercício de funções, implicam dever de atuar no interesse alheio – o do corpo social –, compondo, portanto, uma situação de sujeição. Vale dizer, os titulares dessas situações subjetivas recebem suas competências para as exercerem em prol de um terceiro: a coletividade que representam.
Ditos poderes têm caráter meramente instrumental, são meios à falta dos quais restaria impossível, para o sujeito, desempenhar-se do dever de cumprir o interesse público, que é, a final, o próprio objetivo visado e a razão mesma pela qual foi investido nos poderes atribuídos. O que a ordem jurídica pretende, então, não é que um dado sujeito desfrute de um poder, mas que possa realizar uma certa finalidade, proposta a ele como encargo do qual tem de se desincumbir. Como, para fazê-lo, é imprescindível que desfrute de poderes, estes são outorgados sob o signo assinalado. Então, o poder, na competência, é a vicissitude de um dever.
Nem o Estado nem, portanto, seus órgãos e agentes dispõem de competências para auto-satisfação. Estas, no Estado de Direito obviamente não são instituídas em favor de quem as titularize, mas para que sirvam a determinados objetivos estabelecidos no interesse de todos.
Uma vez que a atividade administrativa é infralegal, submissa à lei e preordenada à satisfação de seus comandos, as competências administrativas nada mais podem ser senão feixes de atribuições concebidos para proporcionar as realizações in concreto dos desideratos legais, cujo atendimento propõe-se para órgãos e agentes administrativos como uma imposição à qual, de direito, não podem se esquivar. Segue-se que os poderes nela contidos, por definição, ficarão delimitados pelo necessário e suficiente ao cumprimento do escopo normativo, jamais podendo excedê-lo.
A competência pode ser conceituada como círculo compreensivo de um plexo de deveres públicos a serem satisfeitos mediante o exercício de correlatos e demarcados poderes instrumentais, legalmente conferidos, para a satisfação de interesses públicos.
Consequência disto é que as competências, embora apareçam abstratamente com a extensão, intensidade e amplitude necessárias para colher as várias hipóteses possíveis, outorgam, in concreto, única e exclusivamente o quantum de poder indispensável para curar o interesse em vista do qual foram atribuídas a alguém, ou seja, nada mais do que o requerido para a satisfação do dever que lhes preside a existência. Logo, a compostura do poder manejável ficará iniludivelmente delimitada pelo que seja deveras requerido para atendimento do interesse público que o justifica.
As competências públicas são: a) obrigatórias para os órgãos e agentes públicos; b) irrenunciáveis, significando isto que seu titular não pode abrir mão delas enquanto titularizar; c) intransferíveis; d) imodificáveis pela vontade do titular, a lei, contudo, pode admitir hipóteses de avocação; e) imprescritíveis.
Se alguém é parte diretamente interessa em uma decisão administrativa, pode questioná-la mediante: a) pedido de reconsideração, que é a petição dirigida à mesma autoridade prolatora da decisão, postulando que a modifique ou suprima; b) recurso hierárquico, que é a petição dirigida à autoridade imediatamente superior à que proferiu a decisão questionada, postulando sua reforma ou supressão – normalmente é interposto perante a própria autoridade recorrida, a qual poderá reconsiderar o decidido, o que deverá fazer em cinco dias, ou elevar a matéria.
O prazo para recorrer, salvo disposição específica em sentido diverso, é de 10 (dez) dias, contados da ciência ou divulgação oficial da decisão recorrida. A autoridade terá de decidir, se não houver prazo diferente estabelecido em lei, no máximo em 30 (trinta) dias a partir do recebimento dos autos, prorrogáveis por igual período ante a justificativa explícita.
O direito de recorrer administrativamente não pode ser recusado, visto que se trata de uma inerência ao princípio constitucional da ampla defesa. Os recursos administrativos são propostos na intimidade de ima mesma pessoa jurídica, por isso são chamados de recursos hierárquicos. Se, todavia, a lei previr que da decisão de uma pessoa jurídica cabe recurso para autoridade encartada em outra pessoa jurídica, o recurso será, em tal caso, denominado recurso hierárquico impróprio.
Durante a pendência de recurso administrativo, conforme entendimento corrente, não corre prazo prescricional contra o administrado. Opostamente, o pedido de reconsideração não interrompe nem suspende a prescrição.
Como regra, os recursos administrativos têm efeitos apenas devolutivos, ou seja, o de submeter a questão ao escalão superior. Só terão efeito suspensivo nos casos em que a lei lhe atribua tal efeito ou quando a autoridade recorrida verificar a necessidade de conferi-lo.
Se o insurgente não é parte da relação jurídica em cujo bojo foi tomada a decisão, poderá dirigir-se à autoridade competente para apreciar a matéria. Trata-se de manifestação do direito de petição, previsto no artigo 5º, inciso XXXIV da Constituição Federal. Assumirá o nome de: a) representação, que é precisamente o designativo que se dá a manifestações insurgentes não qualificáveis como pedido de reconsideração ou recurso; b) denúncia, designativo utilizado para hipótese similar, na qual, todavia, prepondera o intuito de alertar a autoridade competente para conduta administrativa apresentada como censurável.
Encontra-se, ainda, para referir insurgência expressiva do direito de petição não qualificável como pedido de reconsideração ou recurso hierárquico, a expressão reclamação administrativa, taxinomia genérica e que designa a manifestação do inconformismo do administrado em face de decisão administrativa que lhe afeta direitos ou interesses.
Todos os prazos começam a correr a partir da certificação oficial, excluindo-se da contagem o dia do começo e incluindo-se o do vencimento, o qual, se coincidir com dia no qual não haja expediente ou em que este for encerrado antes da hora normal, prorrogar-se-á para o primeiro dia útil.
Diz-se que a atividade administrativa é descentralizada quando é exercida por pessoa ou pessoas distintas do Estado. Diz-se que atividade administrativa é centralizada quando é exercida pelo próprio Estado, ou seja, pelo conjunto orgânico que lhe compõe a intimidade.
Nos termos do Decreto-Lei 200, a Administração Direta é a que se constitui dos serviços integrados da estrutura administrativa da Presidência da República e dos Ministérios, e Administração Indireta é a que compreende as seguintes categorias de entidades dotadas de personalidade jurídica própria: autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas.
Dentre as pessoas categorizadas no Decreto-Lei 200/67 como Administração Indireta, as autarquias foram apontadas como predispostas a executar atividades típicas da Administração Pública.
Para as empresas públicas e sociedades de economia mista o Decreto-Lei 200/67 consignou que a finalidade da atividade econômica que o governo seja levado a exercer por força da contingência ou de conveniência administrativa. Já as fundações públicas foram configuradas como sujeitos criados para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de Direito Público.
Percebe-se, pois, que o critério retor da classificação foi o orgânico, também chamado de subjetivo. Com efeito, foram relacionados à conta de entidades da Administração Indireta quaisquer sujeitos havidos como integrantes da Administração Federal, pelo só fato de comporem dito aparelho, independentemente da natureza substancial da atividade que se lhes considere própria e independentemente do regime jurídico que lhes corresponda (público ou privado).
Entidades paraestatais são sujeitos que não integram a estrutura do Estado, isto é, são pessoa de direito privado, que, em paralelismo com o Poder Público, desempenham cometimentos que este poderia desempenhar por se encontrarem no âmbito de interesse seus, mas não exclusivamente seus. Caracterizam-se pelo fato de que o Estado enfaticamente os assume como colaboradores, emprestando-lhes o significativo amparo de colocar a seu serviço o poder de império de que dispõe ao instituir em favor deles, como justamente com os serviços sociais autônomos, circunstância esta que lhes confere uma peculiar singularidade entre os sujeitos alheios à Administração Indireta que concorrem para objetivos sociais de interesse público.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello inclui o âmbito paraestatal, além dos serviços socais autônomos, as escolas particulares, pois seu ensino tem validade oficial, os sindicatos e os partidos políticos, reconhecendo em todos eles serem sujeitos que constituem-se juridicamente por ato de livre vontade e independente de qualquer delegação do Estado, nos termos legais por este permitido e previsto, para atuarem paralelamente a ele na consecução de fins considerados de interesse público, e para coadjuvarem seus cometimentos.


Fonte: Curso de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Princípios do Direito Penal

Princípio da Intervenção Mínima
O princípio da intervenção mínima, ou ultima ratio, é o responsável não só pela indicação dos bens de maior relevo que merecem especial atenção do Direito Penal, mas se presta, também, a fazer com que ocorra a chamada descriminalização. Se é com base neste princípio que os bens são considerados como os de maior importância, também será com fundamento nele que o legislador, atento às mutações da sociedade, que com a sua evolução deixar de dar importância a bens que, no passado, eram de maior relevância, fará retirar do ordenamento jurídico-penal certos tipos incriminadores.
Ressaltando o caráter subsidiário do Direito Penal, Roxin assevera:
“A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nesse missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito Penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do problema. Por isso se denomina a ultima ratio da política social e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.”

Princípio da Lesividade
Os princípios da intervenção mínina e da lesividade são como que duas faces da mesma moeda. O princípio da lesividade nos esclarecerá, limitando ainda mais o poder do legislador, quais são as condutas que poderão ser incriminadas pela lei penal. Na verdade, nos orientará no sentido de saber quais são as condutas que não poderão sofrer os rigores da lei penal.
O princípio da lesividade possui quatro principais funções, a saber: a) proibir a incriminação de uma atitude interna; b) proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor; c) proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais; d) proibir a incriminação de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.
Todas as vertentes traduzem, na verdade, a impossibilidade de atuação do Direito Penal caso o bem jurídico relevante de terceira pessoa não esteja sendo efetivamente atacado.

Princípio da Adequação Social
A teoria da adequação social, concebida por Hans Welzel, siginfica que apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal, não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada.
O princípio da adequação social, na verdade, possui dupla função. Uma delas é a de restringir a abrangência do tipo penal, limitando a sua interpretação, e dele excluindo as condutas socialmente adequadas e aceitas pela sociedade. A segunda função é dirigida ao legislador em duas vertentes. A primeira delas orienta o legislador quando da seleção das condutas que deseja proibir ou impor, com a finalidade de proteger os bens considerados mais importantes. Se a conduta que está na mira do legislador for considerada socialmente adequada, não poderá ele reprimi-la valendo-se do Direito Penal. Tal princípio serve-lhe, portanto, como norte. A segunda vertente destina-se a fazer com que o legislador repense os tipos penais e retire do ordenamento jurídico a proteção sobre aqueles bens cujas condutas já se adaptam perfeitamente à evolução da sociedade.
O princípio da adequação social, por si só, não tem o condão de revogar tipos penais incriminadores.

Princípio da Fragmentariedade
Como corolário dos princípios da intervenção mínima, da lesividade e da adequação social, temos o princípio da fragmentariedade do Direito Penal. O caráter fragmentário do Direito Penal significa, em síntese, que, uma vez escolhidos aqueles bens fundamentais, comprovada a lesividade e inadequação das condutas que os ofendem, esses bens passarão a fazer parte de uma pequena parcela que é protegida pelo Direito Penal, originando-se, assim, a sua natureza fragmentária.
O Direito Penal se limita apenas a castigar as ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes, daí seu caráter fragmentário, pois que de toda a gama de ações proibidas e bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico, o Direito Penal só se ocupa de uma parte, fragmentos, se bem que da maior importância.
Esse caráter fragmentário do Direito Penal aparece sob uma tríplice forma nas atuais legislações penais: em primeiro lugar, defendendo o bem jurídico somente contra aqueles de especial gravidade, exigindo determinadas intenções e tendências, excluindo a punibilidade da comissão imprudente em alguns casos; em segundo lugar, tipificando somente uma parte do que nos demais ramos do ordenamento jurídico se estima como antijurídico; e, por último, deixando, em princípio, sem castigo ações meramente imorais.

Princípio da Insignificância
Tipicidade formal é a adequação perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal.
A tipicidade conglobante exige a verificação de dois aspectos fundamentais: a) se a conduta do agente é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico. O estudo do princípio da insignificância reside nesta segunda vertente da tipicidade conglobante, ou seja, na chamada tipicidade material.
Além da necessidade de existir um modelo abstrato que preveja com perfeição a conduta praticada pelo agente, é preciso que, para que ocorra essa adequação, isto é, para que a conduta do agente se amolde com perfeição ao tipo penal, seja levada em consideração a relevância do bem que está sendo objeto de proteção.
A tipicidade penal seria resultante da conjugação da tipicidade formal com a tipicidade conglobante (antinormatividade + atividades não fomentadas + tipicidade material).
Se não há tipicidade material, não há tipicidade conglobante; por conseguinte, se não há tipicidade penal, não haverá fato típico; e, como conseqüência lógica, se não há fato típico, não haverá crime.
Deve-se, portanto, lidar com o conceito de razoabilidade para se chegar à conclusão de que aquele bem mereceu a proteção do Direito Penal, pois que inexpressivo.
Os Tribunais Superiores têm entendido pela possibilidade da aplicação do princípio da insignificância nos delitos patrimoniais cometidos sem violência.

Princípio da Individualização da Pena
Tendo o julgador chegado à conclusão de que o fato praticado é típico, ilícito e culpável, dirá qual a infração penal praticada pelo agente e começará, agora, a individualizar a pena a ele correspondente. Primeiramente, fixará a pena-base de acordo com o critério trifásico determinado pelo artigo 68 do Código Penal, atendendo-se às chamadas condições judiciais; em seguida, levará em consideração as circunstâncias atenuantes e agravantes; por último, as causas de diminuição e de aumento da pena. Esta é a fase da chamada aplicação da pena, a qual compete ao julgador. A individualização sai do plano abstrato (cominação/legislador) e passa para o plano concreto (aplicação/julgador).
Também ocorre a individualização na fase da execução penal, conforme determina o artigo 5º da Lei de Execuções Penais: “os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal”.
Com o advento da Lei n.º 8.072/90, foi travada discussão no sentido de que o § 1º do artigo 2º do aludido diploma legal estaria violando o princípio da individualização da pena, uma vez que impunha o total cumprimento da pena em regime fechado, quando houvesse cometimento dos crimes por ela elencados como hediondos, a prática de tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo.
No julgamento do HC 82959/SP, tendo como Relator o Ministro Marco Aurélio de Melo, foi declarada incidenter tantum a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da Lei n.º 8.072/90.
Após a edição da Lei n.º 11.464/2007 a discussão perdeu o sentido, uma vez que alterou a Lei de Crimes Hediondos para determinar que a pena dos delitos por ele disciplinados seria cumprida inicialmente em regime fechado, permitindo, ainda, a progressão de regime após o cumprimento de 2/5 da pena, se o condenado for primário, e de 3/5 em caso de reincidente.

Princípio da Proporcionalidade
O princípio da proporcionalidade exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem que de que alguém pode ser privado (gravidade da pena). Toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio acentuado, estabelece-se, por conseqüência, inaceitável desproporção. O princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de penas (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu estado global. Tem, em conseqüência, um duplo destinatário: o Poder Legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionais, em abstrato, à gravidade do delito) e o Juiz (as penas que os Juízes impõem ao autor do delito têm de ser proporcionadas à sua concreta gravidade).
No que diz respeito especificamente à proporcionalidade em concreto, ou seja, aquela levada a efeito pelo Juiz, sua aferição não é tão tormentosa quanto aquela que deve ser realizada no plano abstrato. Isto porque o artigo 68 do Código Penal, ao implementar o critério trifásico de aplicação da pena, forneceu ao julgador meios para que pudesse, no caso concreto, individualizar a pena do agente, encontrando, com isso, aquela proporcional ao fato por ele cometido.

Princípio da Limitação das Penas
Em virtude do princípio a responsabilidade pessoal, também conhecido como princípio da pessoalidade ou da intranscendência da pena, somente o condenado é que terá de se submeter à sanção que lhe foi aplicada pelo Estado.
Havendo o falecimento do condenado, por exemplo, a pena que lhe foi infligida, mesmo que de natureza pecuniária, não poderá ser estendida a ninguém, tendo em vista o seu caráter personalíssimo, quer dizer, somente o autor do delito é que pode submeter-se às sanções penais a ele aplicadas. Todavia, diante de uma responsabilidade não penal, como a obrigação de reparar o dano, nada impede que, no caso de morte do condenado e tendo havido transferência de seus bens aos sucessores, este respondem até as forças da herança.
Mesmo após a alteração legislativa que passou a considerar a pena de multa como dívida de valor, aplicando-lhe as normas da legislação relativa à dívida ativa da Fazenda Pública, impedindo, ainda, a sua conversão em pena privativa de liberdade, há corrente doutrinária entendendo que a multa não perdeu o seu caráter penal.
Dessa forma, no caso de morte do condenado, não poderá valor correspondente à pena de multa a ele aplicada ser cobrado de seus herdeiros, uma vez que, neste caso, estaríamos infringindo o princípio da responsabilidade pessoal, insculpido no artigo 5º, inciso XLV da Constituição Federal, que diz que nenhuma pena passará da pessoa do condenado.
Ferrajoli, afirma, com precisão, que “acima de qualquer argumento utilitário, o valor da pessoa humana impõe uma limitação fundamental em relação à qualidade e quantidade da pena. É este o valor sobre o qual se funda, irredutivelmente, o rechaço da pena de morte, das penas corporais, das penas infames e, por outro lado, da prisão perpétua e das penas privativas de liberdade excessivamente extensas”.
Mesmo tratando-se de penas privativas de liberdade, o princípio da dignidade da pessoa humana, que deve orientar toda a atividade legislativa do Estado, não poderá deixar de ser observado.

Princípio da Culpabilidade
Culpabilidade diz respeito ao juízo de censura, ao juízo de reprovabilidade que ser faz sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Reprovável ou censurável é aquela conduta levada a efeito pelo agente que, nas condições em que se encontrava, poderia agir de outro modo. Reprova-se o agente por ter optado de tal modo que, sendo-lhe possível atuar de conformidade com o Direito, haja preferido agir contrariamente ao exigido pela lei. Culpabilidade é um juízo sobre a formação da vontade do agente.
O princípio da culpabilidade não se encontra no rol dos chamados princípios constitucionais expressos, podendo, no entanto, se extraído do texto constitucional, principalmente do chamado princípio da dignidade da pessoa humana,
O princípio da culpabilidade possui três sentidos fundamentais:
- culpabilidade como elemento integrante do conceito analítico de crime: a culpabilidade é a terceira característica ou elemento do conceito analítico de crime, sendo estudada após a análise do fato típico e da ilicitude, ou seja, após concluir-se que o agente praticou um injusto penal. Uma vez chegada a essa conclusão, vale dizer de que a conduta do agente é típica e antijurídica, inicia-se um novo estudo, que agora terá seu foco dirigido à possibilidade ou não de censura do fato praticado. Portanto, sob esse primeiro enfoque, a culpabilidade exerce papel fundamental na caracterização da infração penal.
- culpabilidade como princípio medidor da pena: uma vez concluído que o fato praticado pelo agente é típico, ilícito e culpável, pode-se afirmar a existência da infração penal. O agente estará, em tese, condenado. Deverá o julgador, após a condenação, encontrar a pena correspondente à infração penal praticada, tendo sua atenção voltada para a culpabilidade do agente como critério regulador. Deverá o julgador observar, agora, as regras do critério trifásico de aplicação da pena previsto pelo artigo 68 do Código Penal. No primeiro momento, encontrará a chamada pena-base e, para tanto, deverá analisar, uma a uma, todas as condições judiciais elencadas pelo artigo 59 do Código Penal. A primeira das circunstâncias judiciais a ser aferida pelo Juiz é, justamente, a culpabilidade. Nessa fase, esse estudo não mais se destinará a concluir pela infração penal, já verificada no momento anterior. A culpabilidade, uma vez condenado o agente, exercerá uma função medidora da sanção penal que a ele será aplicada, devendo ser realizado outro juízo de censura sobre a conduta por ele praticada, não podendo a pena exceder o limite necessário à reprovação pelo fato típico, ilícito e culpável praticado.
- culpabilidade como princípio medidor da responsabilidade penal objetiva, ou seja, responsabilidade penal sem culpa: a princípio da culpabilidade impõe a subjetividade da responsabilidade penal. Não cabe, em Direito Penal, uma responsabilidade objetiva, derivada tão-só de uma associação causal entre conduta e um resultado de lesão ou perigo para um bem jurídico. Isso significa que para determinado resultado a ser atribuído ao agente é preciso que a sua conduta tenha sido dolosa ou culposa. Os resultados que não foram causados a título de dolo ou culpa pelo agente não podem ser a ele atribuídos, pois que a responsabilidade penal, de acordo com o princípio da culpabilidade, deverá sempre ser subjetiva. Nessa quadra, a culpabilidade deve ser entendida somente como um princípio em si, pois que, uma vez adotada a teoria finalista da ação, dolo e culpa foram deslocados para o tipo penal, não pertencendo mais ao âmbito da culpabilidade, que é composta pela imputabilidade, pelo potencial conhecimento da ilicitude do fato e pela exigência de conduta diversa.

Princípio da Legalidade
O princípio da legalidade vem insculpido no inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição Federal que, diz: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” – redação que pouco difere daquela contida no artigo 1º do Código Penal.
O princípio da legalidade possui quatro funções fundamentais: a) proibir a retroatividade da lei penal (nullum crimem nulla poena sine lege praevia); b) proibir da criação de crimes e penas pelos costumes (nullum crimen nulla poena sine lege scripta); c) proibir o emprego da analogia para criar crimes, fundamentar ou agravar penas (nullum crimen nulla poena sine lege stricta); d) proibir incriminações vagas e indeterminadas (nullum crimen nulla poena sine lege certa).
Um Direito Penal que procura estar inserido sob a ótica garantista deve, obrigatoriamente, discernir os critérios de legalidade formal e material, sendo ambos indispensáveis à aplicação da lei penal.
Por legalidade formal entende-se a obediência aos trâmites procedimentais previstos pela Constituição para que determinado diploma legal possa vir a fazer parte do nosso ordenamento jurídico. A aceitação de uma norma que atendesse tão-somente às formas e procedimentos destinados à sua criação conduziria a adoção do princípio da mera legalidade. Diante disso, devem ser obedecidos não somente as formas e procedimentos impostos pela Constituição, mas também e, principalmente, o seu conteúdo, respeitando-se suas proibições e imposições para garantia dos direitos fundamentais por ela previstos (legalidade material). Aqui, adota-se não mera legalidade, mas, sim, um princípio da estrita legalidade.
Os princípios da legalidade formal e da legalidade material, bem como os de vigência e validade da norma, podem ser resumidos e expressos por meio do brocardo nulla poena, nullum crimen sine lege valida.
O conceito de vigência da lei penal é vinculado à legalidade formal, assim como o conceito de validade liga-se à legalidade material. A lei penal formalmente editada pelo Estado pode, decorrido o período de vacatio legis, ser considerada em vigor. Contudo, a sua vigência não é suficiente, ainda, para que ela possa vier a ser efetivamente aplicada. Assim, somente depois da aferição de sua validade, isto é, somente depois de conferir sua conformidade com o texto constitucional é que ela terá plena aplicabilidade, sendo considerada, portanto, válida.
O procedimento legislativo previsto na Constituição Federal, apto a inovar o nosso ordenamento jurídico-penal pela edição de uma lei ordinária, é composto pelas seguintes fases: iniciativa do projeto; discussão; votação; sanção ou veto; promulgação; publicação; vigência.
Depois de discutido e votado o projeto de lei pelo Congresso Nacional, ele é remetido ao Presidente da República, coma finalidade de sancioná-lo (aprovando-o) ou vetá-lo (rejeitando-o). Uma vez sancionado o projeto, o Presidente da República o promulga, atestando que a ordem jurídica foi inovada. Desse modo, o projeto deixa de ser considerado como tal e possa gozar do status de lei. Agora, a lei deverá ser publicada para que dela todos tomem conhecimento. Uma vez publicada a lei penal, ela terá vigência imediata ou não. Se houver previsão para sua vigência e esta não coincidir com a sua publicação, o período entre a publicação e a vigência da lei é conhecido como vacatio legis.
O marco, portanto, para que devamos obediência à lei penal, como regra, é a data de sua vigência. Isso quer dizer que a lei penal que contenha tipos penais incriminadores ou de qualquer forma agrave a situação do agente, aumentando, por exemplo, hipóteses de circunstâncias agravantes, criando causas de aumento da pena etc., só pode ser aplicada, ou mesmo obedecida, após a sua entrada em vigor.
Em caso de lex mitior (lei mais benéfica), existe a possibilidade de ser aplicada ao caso concreto antes mesmo de sua entrada em vigor, visto que, segundo as determinações contidas no inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal e do artigo 2º do Código Penal, a lei posterior que de qualquer modo favorecer o agente deverá retroagir, ainda que o fato tenha sido decidido por sentença condenatória transitada em julgado. O raciocínio que se faz, in casu, é no sentido de que se a lei, obrigatoriamente, terá de retroagir a fim de beneficiar o agente, por que não aplicá-la antes mesmo do início de sua vigência, mediante a sua só publicação? Por economia de tempo, não se exige que se aguarde a sua vigência, podendo ser aplicada a partir de sua publicação.
A partir da promulgação da Emenda Constitucional n.º 32, ficou expressamente vedada a edição de medida provisória em matéria penal.
Parte da doutrina procura levar efeito uma distinção entre princípio da legalidade e o da reserva legal. De acordo com esse entendimento, a diferença residiria no fato de que, falando-se tão-somente em princípio da legalidade, estaríamos permitindo a adoção de quaisquer dos diplomas elencados no artigo 59 da Constituição Federal (leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos, resoluções); ao contrário, quando fazemos menção ao princípio da reserva legal, estamos limitando a criação legislativa, em matéria penal, apenas às leis ordinárias – que é a regra geral – e às leis complementares.

Princípio da Extra-Atividade da Lei Penal
A regra geral, trazida no próprio texto da Constituição Federal, é a de irretroatividade in pejus, ou seja, da absoluta impossibilidade de a lei penal retroagir para, de qualquer modo, prejudicar o agente; a exceção é a retroatividade in mellius, quando a lei vier, também, de qualquer modo, favorecê-lo, conforme se dessume do incisco XL de seu artigo 5º, assim redigido: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
O primeiro marco, necessário ao confronto das leis que se sucederam no tempo, deverá ser identificado com clareza. É preciso, pois apontar com precisão o chamado tempo do crime, a partir do qual nosso raciocínio se desdobrará.
Várias teorias disputam o tratamento do tema relativo ao tempo do crime:
- teoria da atividade: tempo do crime será o da ação ou da omissão, ainda que seja outro o momento do resultado;
- teoria do resultado: determina que tempo do crime será o da ocorrência do resultado;
- teoria da ubiqüidade ou mista: concede igual relevo aos dois momentos apontados pelas teorias anteriores, asseverando que tempo do crime será o da ação ou da omissão, bem como o do momento do resultado.
O Código Penal adotou a teoria da atividade, conforme se verifica no seu artigo 4º: “considera-se praticado o crime no momento da ação ou omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.
Chama-se de extra-atividade a capacidade que tem a lei penal de se movimentar no tempo regulando fatos ocorridos durante a sua vigência, mesmo depois de ter sido revogada, ou de retroagir no tempo, a fim de regular situações ocorridas anteriormente à sua vigência, desde que benéficas ao agente. Tem-se, portanto, a extra-atividade como gênero, de onde seriam espécies a ultra-atividade e a retroatividade.
Fala-se em ultra-atividade quando a lei, mesmo depois de revogada, continua a regular os fatos ocorridos durante a sua vigência; retroatividade seria a possibilidade conferida à lei penal de retroagir no tempo, a fim de regular os fatos ocorridos anteriormente à sua entrada em vigor.
A lei nova, editada posteriormente à conduta do agente, poderá conter dispositivos que o prejudiquem ou que o beneficiem. Será considerada novatio legis in pejus, se prejudicá-lo; ou novatio legis in mellius, se beneficiá-lo.
Pode a lei prejudicar o agente: ampliando o rol de circunstâncias agravantes, criando causas de aumento de pena, aumentando o prazo de prescrição ou mesmo trazendo novas causas interruptivas ou suspensivas, etc. Poderá beneficiá-lo quando: trouxer causas de aumento e diminuição da pena, reduzir os prazos prescricionais, condicionar as ações penais à representação do ofendido, etc.
A novatio legis in mellius será sempre retroativa, sendo aplicada aos fatos ocorridos anteriormente à sua vigência, ainda que tenham sido decididos por sentença condenatória já transitada em julgado.
De acordo como Enunciado n.º 711 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, a lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência.
Quando o legislador, atento às mutações sociais, resolve não mais continuar a incriminar determinada conduta, retirando do ordenamento jurídico-penal a infração que a previa, pois que passou a entender que o Direito Penal não mais se fazia necessário à proteção de determinado bem, ocorre o fenômeno jurídico conhecido como abolitio criminis.
Descriminalizando aquela conduta até então punida pelo Direito Penal, o Estado abre mão de seu jus puniedi e, por conseguinte, declara a extinção da punibilidade (artigo 107, inciso III do CP) de todos os fatos ocorridos anteriormente à edição da lei nova. A extinção da punibilidade pode ocorrer nas fases policial e judicial.
Além de conduzir à extinção da punibilidade, a abolitio criminis faz cessar todos os efeitos penais da sentença condenatória, permanecendo, contudo, os seus efeitos civis.
Tem-se entendido por abolitio criminis temporalis, ou suspensão da tipicidade, a situação na qual a aplicação de determinado tipo penal encontra-se temporariamente suspensa, não permitindo, consequentemente, a punição do agente que pratica o comportamento durante o prazo da suspensão.
Pode acontecer a hipótese em que a lei penal a se aplicada não seja nem aquela vigente à época dos fatos, tampouco aquela em vigor quando da prolação da sentença. É o caso da chamada lei intermediária. A regra da ultra-atividade e da retroatividade é absoluta nos sentido de, sempre, ser aplicada a agente a lei que mais lhe favoreça, não importando, na verdade, o momento de sua vigência, isto é, se na data do fato, na data da sentença, ou mesmo entre esses dois marcos.
As leis temporárias e excepcionais encontram previsão no artigo 3º do Código Penal. Considera-se temporária a lei quando esta traz expressamente em seu texto o dia de início, bem como o término de sua vigência. Excepcional é aquela editada em virtude de situações também excepcionais (anormais), cuja vigência é determinada pela própria duração da aludida situação que levou à edição do diploma legal. Encerrado o período de sua vigência, ou cessadas as circunstâncias anormais que a determinaram, tem-se por revogadas as leis temporária e excepcional.
É controvertida a constitucionalidade das leis temporárias e excepcionais. Aquelas que pugnam pela constitucionalidade desses diplomas legais argumentam qe as condições anormais que as geraram são consideradas elementos do tipo, assim se posiciona Frederico Marques, seguido por Damásio de Jesus:
“Quando a lei ordinária retoma o seu vigor após a extinção da vigência da lei excepcional ou temporária, não é mudada a concepção jurídica do fato. Este passa a ser lícito porque não mais estão presentes as condições temporais ou de fato exigidas por aquelas. Não se pode falar em exclusão da reação penal, mais sim ausência de elementos do tipo. O mesmo se pode dizer quando a lei excepcional ou temporária impõe pena mais severa. Terminado o prazo de sua vigência e em vigor a lei ordinária menos severa, não há alteração do estado jurídico de fato, no sentido de tornar mais benigna a repressão penal, mas ausência das situações que justificavam a maior punibilidade.”
Em sentido contrário, merece destaque a posição de Nilo Batista e Zaffaroni, segundo os quais, não tendo a Constituição Federal ressalvado a possibilidade de ultra-atividade in pejus das leis temporárias e excepcionais, não será possível tal interpretação, devendo prevalecer o entendimento nno sentido de que o artigo 3º do Código Penal, em tem de sucessão de leis penais no tempo, não foi recepcionado pela atual Carta Constitucional, para fins de aplicação da lei anterior em prejuízo do agente. Assim, portanto, havendo sucessão de leis temporárias e excepcionais, prevalecerá a regra constitucional da extra-atividade in mellius.
Fala-se em combinação de leis quando, a fim de atender aos princípios da ultra-atividade e da retroatividade in mellius, ao julgador é conferida a possibilidade de extrair de dois diplomas os dispositivos que atendam aos interesses do agente, desprezando aqueles que o prejudiquem.
Discute-se se é possível esse tipo de raciocínio, uma vez que, segundo parte da doutrina, o julgador estaria criando um terceiro gênero de lei, o que lhe é vedado. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, existe divergência jurisprudencial.
Pode acontecer que ainda durante a fase investigatória surja outra lei mais benéfica ao agente. O Ministério Público, ao receber os autos de inquérito policial, já deverá oferecer denúncia tomando por base o novo texto. Se o processo estiver em andamento, o Juiz ou o Tribunal poderá aplicar a lex mitior.
Uma vez transitada em julgado a sentença penal condenatória, como regra, a competência da para aplicação da lex mitior é transferida para o Juízo das execuções, conforme determina o artigo 66, inciso I da Lei de Execuções Penais. Competirá ao Juízo das execuções a aplicação da lei mais benéfica sempre que tal aplicação importar num cálculo meramente matemático. Caso contrário, não. Toda vez que o Juiz da Vara de Execuções, a fim de aplicar a lex mitior, tiver de, obrigatoriamente, adentrar no mérito da ação penal de conhecimento, já não possuirá competência para tanto.
O princípio da irretroatividade in pejus não se aplica às medidas de segurança. Isso porque elas possuem caráter curativo, sendo sua finalidade, portanto, diferente da pena.
Tem-se entendido como vacatio legis indireta a hipótese em que a lei, além do seu período normal de vacatio legis, em seu próprio corpo, prevê um outro prazo para que determinados dispositivos possam ter aplicação (ex. artigo 30 do Estatuto do Desarmamento, com a nova redação que lhe foi dada pela Lei n.º 11.706/2008). Nossos Tribunais Superiores têm reconhecido a atipicidade do comportamento praticado dentro do período de vacatio legis indireta.
Quando a nova interpretação jurisprudencial for benéfica ao agente, deverá, obrigatoriamente, retroagir, a fim de alcançar os fatos ocorridos no passado que foram julgados sob a ótica do entendimento anterior.

Princípio da Territorialidade
Pela teoria da atividade, lugar do crime seria o da ação ou omissão, ainda que outro fosse o da ocorrência do resultado. Já a teoria do resultado despreza o lugar da conduta e defende a tese de que lugar do crime será, tão-somente, aquele em que ocorrer o resultado. A teoria da ubiqüidade ou mista adota as duas posições anteriores e aduz que lugar do crime será o da ação ou omissão, bem como onde se produziu ou deveria produzir-se o resultado (teoria adotada pelo Código Penal).
O artigo 5º, caput, do Código Penal determina a aplicação da lei brasileira, sem prejuízo de convenções, tratados e regras de direito internacional, ao crime cometido no território nacional. É a regra da territorialidade. Pela redação do mencionado artigo, percebe-se que no Brasil não se adotou uma teoria absoluta da territorialidade, mas sim uma teoria conhecida como temperada, haja vista que o Estado, mesmo sendo soberano em determinadas situações, pode abrir mão da aplicação de sua legislação, em virtude de convenções, tratados e regras de direito internacional.
O § 1º do artigo 5º do Código Penal considerou, para efeitos penais, como extensão do território nacional as embarcações e aeronaves brasileiras, de natureza pública ou a serviço do governo brasileiro onde quer que se encontrem, bem como as aeronaves e as embarcações brasileiras, mercantes ou de natureza privada, que se achem, respectivamente, no espaço aéreo correspondente ou em alto-mar.
O § 2º do artigo 5º do Código Penal determinou também a aplicação da lei brasileira aos crimes praticados a bordo de aeronaves ou embarcações estrangeiras de propriedade privada, achando-se em pouso no território nacional ou em vôo no espaço aéreo correspondente, e as embarcações em porto ou mar territorial do Brasil (quando de natureza pública ou a serviço do governo estrangeiro também são consideradas como extensão do território correspondente à sua bandeira).

Princípio da Extraterritorialidade
O princípio da extraterritorialidade preocupa-se com a aplicação da lei brasileira às infrações penais cometidas além de nossas fronteiras. A extraterritorialidade pode ser condicionada ou incondicionada.
Extraterritorialidade condicionada é a possibilidade de aplicação da lei penal brasileira a fatos ocorridos no estrangeiro, sem que, para tanto, seja necessário o concurso de qualquer condição. As hipóteses de extraterritorialidade incondicionada estão previstas no artigo 7º, inciso I do Código Penal, in verbis:
“Art. 7º - Ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro:
I - os crimes:
a) contra a vida ou a liberdade do Presidente da República;
b) contra o patrimônio ou a fé pública da União, do Distrito Federal, de Estado, de Território, de Município, de empresa pública, sociedade de economia mista, autarquia ou fundação instituída pelo Poder Público;
c) contra a administração pública, por quem está a seu serviço;
d) de genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil;”
O agente será punido segundo a lei brasileira, ainda que absolvido ou condenado no estrangeiro. Em caso de condenação, a pena cumprida no estrangeiro atenua a pena imposta no Brasil pelo mesmo crime, quando diversas, ou nela é computada quando idênticas. No que diz respeito ao crime de genocídio, deve ser ressalvada, ainda, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional.
A extraterritorialidade condicionada encontra-se prevista no inciso II do artigo 7º do Código Penal:
“II - os crimes:
a) que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir;
b) praticados por brasileiro;
c) praticados em aeronaves ou embarcações brasileiras, mercantes ou de propriedade privada, quando em território estrangeiro e aí não sejam julgados.”
De acordo com o § 2º do citado artigo, as condições para aplicação da lei brasileira são as seguintes:
“§ 2º - Nos casos do inciso II, a aplicação da lei brasileira depende do concurso das seguintes condições:
a) entrar o agente no território nacional;
b) ser o fato punível também no país em que foi praticado;
c) estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição;
d) não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena;
e) não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável.”
O § 3º do artigo 7º do Código Penal dispõe, ainda, que a lei brasileira aplica-se também ao crime cometido por estrangeiro contra brasileiro fora do Brasil, se reunidas as condições previstas no § 2º do mesmo artigo: a) não sendo pedida ou negada a extradição; b) houve requisição do Ministro da Justiça. Acolhe-se, aqui, o chamado princípio da defesa ou da personalidade passiva.
Compete aos Juízes federais processar e julgar as causas relativas aos direitos humanos e que se refere o § 5º do artigo 109 da Constituição Federal:
“§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal.”

Fonte: Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rogério Grecco.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Estrutura do Estado

O Estado, modo específico de organização política, é a base do Poder. Encarna o princípio da ordem e da coerência sobre o qual assenta a sociedade. É o Estado que possibilita a integração e a unificação social.
O Estado compõe a substância e a essência da Constituição. A realidade da Constituição é inseparável da realidade do Estado. Daí a necessidade de se considerar o Estado como matéria-objeto da Constituição.
Tem-se entendido por sociedade o maior dos grupos a que um indivíduo pertence, ou o grupo dentro do qual os membros compartilham dos elementos e condições básicas de uma vida comum. São elementos necessários para que um grupo humano possa ser reconhecido como sociedade: a) finalidade ou valor social; b) manifestações de conjunto ordenados; c) poder social.
As manifestações de conjunto ordenadas, entendidas como ordem social e ordem jurídica, hão de ser harmônicas, para que se preserve a liberdade de todos. Para atender aos objetivos a que se acham ligadas, devem atender a três requisitos: reiteração, ordem e adequação.
As características da vida social podem ser assim sintetizadas: a) não existe realidade social totalmente desligada da natureza, como não existe natureza onde existir sociedade humana não submetida a fatores histórico-culturais; b) a realidade social é um todo complexo, que resulta de fatores históricos inerentes à natureza dos indivíduos, e de fatores ocasionados pela atividade voluntária do homem.
O poder social sempre existiu em qualquer sociedade humana. Consiste na faculdade de alguém, ou um grupo social, de impor sua vontade a outrem ou a outro grupo social, limitando-lhes as alternativas de comportamento. O poder é fenômeno social e de bilateralidade.
Os fundamentos da sociedade podem ser reduzidos a duas teorias: a teoria orgânica e a teoria mecânica.
Para os organicistas, o homem como ser eminentemente social, não pode viver fora da sociedade. A sociedade é, assim, um organismo composto de várias partes, com funções distintas, mas que concorrem para a vida do todo. São organicistas, dentre outros, Aristóteles, Platão, Comte, Bluntschli e Savigny.
Os mecanicistas afirmam que a base da sociedade é o consentimento e não o princípio da autoridade. A vontade livre e autônoma do indivíduo constitui um valor que a sociedade deve legitimar. Os mecanicistas partem da existência de um estado de natureza apenas lógico anterior ao estado de sociedade, para explicar seu fundamento com base na vontade livre dos indivíduos (Locke e Rousseau).
Ao se relacionar com o outro, o homem trava relações sociais que podem revestir-se de várias modalidades.
No primeiro grupo estão as relações sociais espontâneas e organizadas, que dão origem à comunidade e à sociedade.
A base de distinção entre comunidade e sociedade é psicológica e parte de uma oposição entre dois tipos de vontade – a vontade natural e a vontade reflexiva.
A distinção entre as duas vontades leva às duas maneiras pelas quais os homens formam grupos sociais: comunidade, baseada na vontade orgânica, e sociedade, baseada na vontade reflexiva.
A comunidade atende às necessidades da vida orgânica e tem suas raízes no estado primitivo natural do indivíduo, no agrupamento da sua vida elementar: as relações entre mãe e filho, homem e mulher, irmão e irmãs. Essas relações originárias s traduzem na vida comum, na convivência, na reciprocidade ou solidariedade pelo mútuo auxílio de vontades.
A comunidade de lugar tem por vínculo a vida sedentária, enquanto a de espírito é aquela propriamente humana, o tipo mais elevado de comunidade. Há portanto, três tipos de comunidade: a) de sangue; b) de lugar ou local de vizinhança; c) de espírito ou de amizade.
A sociedade, ao contrário, é, por natureza, artificial. Nela, as relações sociais fundamentam-se no cálculo e na representação. É dominada pela razão abstrata. O reflexivo prevalece sobre o espontâneo, o artificial sobre o orgânico e natural. Baseia-se quase sempre em convenções contratuais.
As formas de relações sociais não se esgotam na distinção entre comunidade e sociedade. Dão origem a outras classificações de sociedades:
- sociedades necessárias, em que ocorrem vinculações que se impõem aos indivíduos, como fundamentais e imprescindíveis – sociedade familiar;
- sociedades contingentes, em que ocorrem relações meramente acidentais e circunstanciais que aprimoram e facilitam o convívio humano – sociedades esportivas;
- sociedades de fins particulares, cuja finalidade é definida e voluntariamente escolhida por seus membros;
- sociedades de fins gerais, cujo objetivo, indefinido e genérico, é o de criar condições necessárias para que os indivíduos e demais grupos sociedades que nela se acham integrados, consigam atingir seus fins particulares. A participação nelas quase sempre independe de um ato de vontade.
Das várias formas de sociedade, a sociedade políticas é aquela que permite a realização da totalidade do ser humano e concilia os objetivos dos demais grupos sociais, ainda que conflitantes, em função de um fim comum a atingir.
Três aspectos essenciais do político estão imbricados em todo o fenômeno desse gênero: a) caráter associativo: é a dimensão política do homem que confere a unidade à vida social, construindo, conservando e garantindo a coesão da coletividade; b) caráter imperativo: é a dimensão política do homem que põe ordem – o elemento mais comum – na unidade e coesão sociais; c) caráter instrumental: é a dimensão política do homem que dá aos membros da sociedade os meios que lhes permitem buscar a realização de seus fins últimos (esse caráter instrumental manifesta-se na dialética público-privado, pelo qual o primeiro está a serviço do último).
O político é o global. É equilíbrio, organização, plenitude. Equilíbrio porque o poder social que se torna político permite a harmonia total, dos grupos sociais; organização porque preside todos os grupos, encabeça-os, ordena e os planifica; plenitude porque esses poderes equilibrados e organizados permanecem enquadrados num âmbito total e geral, que exige lealdade a todos eles.
O Estado aparece então como a organização política, estrutura, a forma de governo que acompanha a convivência: o Estado é, assim, produto da essência política do homem.
A convivência e a coexistência reclamam direção, ordenação e governo, sob pena de se transformarem no caos, na anarquia e na desordem. Dessa forma, a convivência social não pode dispensar chefia e direção, encarnadas num governo que deverá naturalmente buscar o que é comum à totalidade da convivência social. Tal organização política é hoje o Estado.
Caracteriza-se o Estado pela ocorrência de duas notas que o distinguem de outras organizações políticas: o poder político soberano e a territorialidade.
Para se chegar a um conceito de Estado, deve-se considerar a existência de três elementos que o integram: povo, território e poder político.
Alexandre Groppali entende por Estado a pessoa jurídica soberana, constituída de um povo organizado sobre um território sob o comando de um poder supremo, para fins de defesa, ordem, bem-estar e progresso social.
A sociedade civil serve de base de sustentação para o Estado-comunidade, embora com ele não se confunda, de um prisma jurídico e institucional, já que a sociedade é o domínio do privado, onde o privado se manifesta e se desenvolve, enquanto que o Estado é a esfera do público, do que é geral e comum.
O Estado, quanto a sua natureza, pode ser explicado segundo enfoques sociológico, deontológico, jurídico e político. Não se deve esquecer as concepções filosóficas na justificação do Estado. Mencione-se, entre elas, a de Hegel, para quem o Estado expressa a realidade da idéia ética, consistente na síntese do espírito absoluto, a partir da dialética entre família (tese ou síntese do espírito subjetivo) e a sociedade (antítese ou espírito objetivo). O Estado é uma realidade da vida ética, da vontade substancial, em que a consciência mesma do indivíduo se eleva à comunidade e, portanto, o racional em si para si.
As teorias sociológicas consideram o Estado como construção social, que se qualifica pelas propriedades de seu poder. Jellinek menciona que o Estado deve ser investigado como construção social e como instituição jurídica, formulando conceito sociológico e jurídico do Estado. No primeiro sentido, considera o Estado como a unidade de associação dotada originariamente de poder de dominação e formada por homens fixados num território. Na ordem jurídica, concebe o Estado, que já se mostra como sujeito de direitos, ao qual atribui personalidade jurídica, como a corporação formada por um povo, data de poder de mando originário e fixada em determinado território, isto é, a corporação territorial dotada de um poder de mando originário.
Do ponto de vista sociológico, busca-se investigar a realidade social ou grupal do Estado, o fenômeno desta convivência organizada, que consiste no Estado, sob o domínio de um ou de alguns. Desse modo, as teorias sociológicas giram em torno do mando, do poder ou dominação no agrupamento humano, que é o Estado, e que se revela como fenômeno de poder, um fato que se dá no âmbito do objetivo social.
As teorias são sociológicas são chamadas de teorias realistas, porque dão pouca ou nenhuma importância aos aspectos da soberania e da personalidade jurídica, noções até mesmo como metafísicas no confronto com elas. O conteúdo da investigação das teorias sociológicas é o fato, que tem um puro caráter objetivo, determinado por intermédio de suas próprias características, suas leis e sua lógica.
O Estado enquanto fenômeno social, é um fato ou uma relação de fatos consistentes em que os homens estão sujeitos a um mesmo poder jurídico. É uma forma particular de submissão, a uma só vontade, de todas as vontades formadas por uma variedade de elementos sociais estabelecidos num território determinado. E a mais alta graduação de relações naturais de serviço e de relações sociais.
O Estado como fato de dominação é um grupo humano fixado num território, onde os mais fortes impõe sua vontade aos mais fracos. O Estado é a força material, a dualidade de governantes e governados. Dá-se ênfase no simples fato da dominação. O Estado se revela na detenção do poder por um grupo mais forte, cujo limite é apenas a solidariedade social ou dependência recíproca entre os homens, que é a regra de direito ou o direito objetivo.
Para o Estado como dualidade de governantes e governados, em qualquer grupo social, surge a distinção entre ambos. A teoria sociológica se ocupa de acentuar esse aspecto da realidade do Estado como grupo social. O Estado e, assim, fundamentalmente, uma dualidade. O grupo social se divide em dois grandes campos de ação: o dos que governam e os dos que são governados. O termo Estado perde, portanto, todo o significado, sem essa dualidade.
O Estado como instituição é concebido como um substrato social e não constitui uma categoria elaborada pelo Direito, mas é um fenômeno social que se verifica à margem da ordem jurídica, apenas de posteriormente reconhecê-la. Para que ocorra a institucionalização da realidade social, é necessário que ocorram manifestações de comunhão entre os membros do grupo, mediante um tríplice movimento de interiorização, incorporação e personificação, em torno da idéia de determinada obra. A instituição se define como a idéia de obra que se realiza e alcança duração jurídica num meio social, e que possui uma existência objetiva. Considerada como realidade social, a instituição, que consiste num ordenação de um estado de coisas com vistas a assegurar, de maneira durável, o cumprimento de certo fim com o auxílio de certos meios, é um fenômeno social em estado bruto e espontâneo, com uma personalidade moral, e não jurídica, que surge quando a instituição adquire uma existência objetiva e independente dos indivíduos que se sucedem no grupo. Enquanto outras instituições se limitam a enquadrar e disciplinar um setor das relações humanas, o Estado ultrapassa o estreito limite dos interesses materiais e se direciona para o desenvolvimento da idéia social com vistas à realização do bem comum, mediante o exercício de uma vontade também comum.
Há teorias sociológicas que reduzem a realidade do Estado a um dos seus elementos, conferindo-lhe supremacia sobre os demais. As principais são as que consideram o Estado como o povo, governo, território e poder.
Há uma teoria que confunde o Estado com o povo, vindo então a ser a totalidade dos homens que o compõem. No Estado como governo o poder político faz que com que se observe inicialmente a figura da autoridade, traduzida na expressão física do poder, ou seja, na pessoa de quem manda no governante (o Estado é considerado, nessa perspectiva, como o governo, o monarca). Para a teoria que considera o Estado o território como fundamental, relega-se o indivíduo a um plano secundário; o Estado passa a ser considerado como um modo territorial de organização de convivência. No Estado como poder sustenta-se que este constitui o epicentro do Estado, o ponto de gravidade da política, sedo que as relações de poder se acham incorporadas em instituições políticas; Burdeau afirma que o Estado é a institucionalização do poder, ou seja, um poder que, fundado no direito e organizado segundo normas jurídicas, alcança uma espécie de objetividade e se despersonifica, o que o coloca acima de outros poderes.
As teorias deontológicas propõem uma idéia da natureza do Estado, segundo um fim, que constitui parte integrante de sua essência. A corrente aristotélico-tomista considera que a finalidade do Estado é o bem comum.
As teorias jurídicas caracterizam-se por conceber o Estado como um sistema de direito. A este grupo de teorias corresponde a segunda definição de Estado formulada por Jellinek, ou seja, a corporação territorial dotada originariamente de poder de dominação.
O Estado equivale-se ao direito e constitui a unidade personificada da ordem jurídica. O direito, por sua vez, tem um âmbito espacial e pessoal de validade: a esfera espacial corresponde ao território, e a pessoal, ao elemento humano ou povo. O Estado, como pessoa jurídica, é a totalidade da ordem jurídica.
Compreende-se ainda o Estado como relação jurídica, tendo por base a teoria sociológica que o trata como dualidade de governante e governandos.
Integrante da teoria jurídica do Estado aquela que o concebe como sujeito de direito ou pessoa jurídica, que, desprezando a sua realidade sociológica, acolhe a idéia de que a ela se superpõe a dimensão especial da personalidade de direito, independentemente da existência de um substrato que lhe dá suporte. Assim, a personalidade do Estado não é uma formação natural, que preexiste a toda organização constitucional, mas conseqüência da ordem jurídica.
As teorias políticas consideram o Estado como uma forma de vida política, caracterizada por seu poder de dominação, destacando-se as teorias do Estado como soberania, regime, decisão e personificação da nação.
No Estado como soberania, a especificidade estatal é o seu poder político supremo e soberano. O Estado é o poder por antonomásia.
O Estado também pode ser considerado empresa política, traduzida na cooperação planificada, num fazer comum que os homens se propõem empreender para alcançar um fim. A empresa é constituída pelas condutas dos governantes, que formulam o programa que irão seguir, pela conduta dos governados que a cumprem, pela luta pelo poder, entre outras. O Estado é, desse modo, a empresa política em ação, a sucessão de atos políticos, a dinâmica de uma operação coletiva na qual intervêm governantes e governados. O Estado só tem realidade porque se integra de modo duradouro nas vontades harmônicas se seus membros. Sua realidade nasce da união constantemente renovada de tais vontades.
Formulada por Carl Schmitt, a teoria do decisionismo surgiu como reação ao racionalismo, que pretendia reduzir o Estado a seu dinamismo político em categorias fixas e antecipadas em um complexo normativo. Há uma vontade política preexistente, que decide acerca da forma e do modo da unidade política do Estado. Mediante a decisão política fundamental, que expressa uma vontade soberana, o povo adota uma atitude política unitária, essência do Estado. A decisão, entretanto, não se reduz ao momento de se constituir o Estado, mas sobrevive em qualquer tipo de etapa política da vida estatal, em cada ocasião que se deva adotar uma decisão de conjunto. O Estado não é, pois, algo estático, mas dinâmico, um poder político que, mediante decisões, impõe uma ordem.
Deve-se registrar a teoria jurídica que considera o Estado como personificação da nação organizada. A nação não tem existência jurídica distinta. O Estado é a nação juridicamente organizada. A nação é considerada sujeito de direitos. Desse modo, o Estado não pode adquirir existência, como pessoa, fora da nação. Nesse sentido, a nação não constitui apenas um dos elementos do Estado, mas é o elemento constitutivo do Estado enquanto com ele se identifica.
Para as teorias religiosas, o Estado foi fundado por Deus. Referem-se essas teorias mais à origem e à legitimidade do governo do que propriamente à justificação do Estado.
Costuma-se dividir as teorias teleológicas em teoria do direito divino sobrenatural e teoria do direito divino providencial. A primeira sustenta que o governante recebeu o poder diretamente de Deus. Já a segunda assevera que o Estado, obra de Deus, existe pela graça da providência divina. Todo o poder e toda a autoridade emanam de Deus, não por uma manifestação sobrenatural de sua vontade, mas pela direção providencial dos acontecimentos e da vontade dos homens aos quais cabe a organização dos governos e o estabelecimento das leis.
As teorias contratuais consideram que o Estado é uma organização nascida de um aspecto inicial realizado, livre e espontaneamente, pelos indivíduos que abandonam o estado de natureza. O Estado é assim construído e não dado, inexistindo tendência da natureza do homem para a vida em sociedade. O Estado converte-se em pura sociedade; não é comunidade.
As teorias da violência ou da força sustentam ser o Estado um grupo humano situado sobre um território, onde os mais fortes dominam os mais fracos, ou seja, força material, dualismo de governantes e governados; o grupo mais forte encontra apenas como limite a solidariedade social, regra de direito ou direito objetivo.
O Estado aparece com a fixação da tribo sobre determinado território, nele dominando uma minoria sobre uma maioria, a qual acaba renunciado a uma resistência inútil; surge a paz e a ordem social duradoura (teoria do fato consumado).
Contudo, os dois meios pelos quais o homem satisfaz suas necessidades são o meio econômico e o meio político.
Chama-se meio econômico o trabalho pessoal ou a troca equitativa do próprio trabalho pelo de outrem, e meio político a apropriação, sem compensação, do trabalho alheio. O Estado é a organização do meio político, ou seja, o domínio da classe dominante sobre a classe oprimida.
Seria possível mencionar ainda, no elenco das teorias da origem violenta do Estado, a teoria marxista. O Estado seria, assim, o poder organizado de uma classe para oprimir a outra classe. Ocorre que, ao invés de justificar a legitimidade do Estado, o marxismo veio para considerar apenas sua origem histórica, pois o que postula é a extinção do Estado.
A teoria familiar ensina que o Estado tem origem na família. É a família ampliada. A família é, portanto, o primeiro agrupamento que fez as vezes do Estado.
Relacionada com a teoria familiar, mencione-se a origem do Estado decorrente da tradição de um legislador primitivo, cuja personalidade teria dado as leis e criado as instituições do paíse de quem o povo seria descendente.
A teoria natural justifica o Estado pela sua própria existência. Esta teoria baseia-se na simples constatação empírica da existência do Estado. Sempre que haja uma associação de homens que não tenha nenhuma outra superior a ele, ou seja, associação que se baste em si mesma, que não derive de outra e que vise a fins gerais, aí existe o Estado que se legitima pela sua continuidade histórica e permanência do fenômeno em si mesmo.
É, contudo, a teoria natural insuficiente para justificar a existência do Estado, que deve ser buscada pela razão humana ao indagar o porquê do Estado na vida do homem, sendo então necessárias as teorias antes apontadas: da origem divina, contratual e da violência.
As teorias negatórias são aqueles que, ao invés de justificar a existência do Estado, o negam e postulam sua extinção. O anarquismo, que é uma delas, podem ser entendido como doutrina que supõe a vida comunitária liberada de qualquer regulação jurídica; situação irregular e anormal dentro de uma comunidade desordenada: é que incomoda o homem moderno toda a forma de submissão – a rebeldia constitui uma posição inerente ao seu espírito. Daí o anarquismo contra a autoridade exterior.
Há, ainda, o anarquismo individualista, que se dirige à liberdade individual do homem e se reveste de caráter predominantemente filosófico e literário. Já o anarquismo coletivista se acha relacionado com os movimentos sociais que visam à extinção do Estado.
No que tange ao processo de formação do Estado, pode-se mencionar alguns modos propostos por consagrados autores.
Bluntschli, em sua Teoria Geral do Estado, distingue três modos de nascimento dos Estados: a) modos originários, em que a formação e inteiramente nova, partindo diretamente da nação ou do país; b) modos secundários, em que a formação é produzida do interior, emanada do meio nacional, por meio da união de vários Estados, que passam a formar um todo, ou do desmembramento, da divisão, da desagregação das partes de um só Estado, que se fraciona para formar diversos Estados. Como união de Estados, mencione-se a Confederação, a Federação, a União Pessoal e a União Real; c) modos derivados, em que o Estado forma-se de fora, do exterior, como pela colonização.
Alexandre Groppali, menciona dois grandes ramos de formação do Estado: a) formas imediatas ou diretas; b) formas indiretas ou derivadas.
Na doutrina nacional destaca-se Queiroz de Lima, que fala em três modos de formação do Estado: a) pela cisão de um Estado em duas ou mais seções, passando cada uma delas a constituir um Estado distinto; b) pela secessão de uma parte da população e território de um Estado, para a formação de um novo; c) pena independência de colônias, que se desligam da metrópole.
Já Dalmo de Abreu Dallari classifica o modo de formação do Estado em: a) formação originária, partindo de agrupamentos humanos ainda não integrados a qualquer Estado; b) formação derivada, partindo de Estados preexistentes, compreendendo o fracionamento e a união de Estados; c) formas atípicas, não usuais, em que a criação de novos Estados é absolutamente imprevisível, como ocorreu, por exemplo, com a formação do Estado do Vaticano e do Estado de Israel.

Fonte: Direito Constitucional. Kildare Gonçalves Carvalho.