terça-feira, 29 de junho de 2010

Posse – Considerações Iniciais

O Código Civil não conceitua a posse, mas, em seu artigo 1196, define o possuidor, fornecendo, indiretamente, uma definição de posse, nos seguintes termos: “considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

De acordo com o dispositivo legal mencionado, verifica-se que a posse é o fato que consiste no exercício, total ou parcial, com autonomia, de algum dos poderes inerentes à propriedade. Assim, para ser possuidor, não é preciso título, que se constitui em mero aspecto documental.

A posse é protegida independentemente do domínio e constitui um direito. Isto significa dizer que o direito de propriedade e o exercício do direito de propriedade são duas realidades distintas.

Por outro lado, o exercício do direito de propriedade, que é um fato, consiste na adoção de um comportamento que se traduza no exercício dos poderes inerentes à propriedade, previstos no artigo 1228 do Código Civil, como o uso, o gozo ou fruição, a disposição, a defesa ou reivindicação. No direito de propriedade há um poder jurídico sobre a coisa, enquanto no exercício do direito de propriedade há um poder de fato sobre a coisa.

Em vez de definir a posse como sendo o exercício do direito de propriedade, deve-se, para saber se há posse, verificar se existe o fato do exercício de algum dos poderes inerentes à propriedade.

O artigo 1198 do Código Civil, ao conceituar a figura do detentor, também chamado de fâmulo da posse – mesmo que criado, serviçal – igualmente fornece, ainda que de forma indireta, o conceito de detenção. A detenção está a serviço da posse porque é um estado de fato, sem autonomia, subordinado à posse e dependente dela, exercido sob as ordens ou instruções do possuidor, pois o detentor nada mais é do que um criado, um serviçal. O possuidor é o senhor da posse, ao passo que o detentor é o servidor da posse.

Para Rudolf Von Ihering, toda detenção material sobre a coisa faz presumir a posse e só será um estado de detenção quando a lei assim o disser. Deve-se, portanto, perquirir a respeito da causa da detenção material para saber se a pessoa exerce posse ou detenção sobre a coisa. É a chamada causa detentionis.

Ao detentor, na condição de servidor da posse, é reconhecida a capacidade de praticar determinados atos de defesa da posse em proveito único e exclusivo do possuidor. A detenção faz surgir a posse quando o detentor, sabendo das ordens do possuidor, passa a exercer um poder de fato por conta própria, em seu interesse pessoal.

No século XIX, duas teorias surgiram com o objetivo de estabelecer um conceito de posse: a teoria subjetiva, defendida por Friedrich Carl Von Savgny e a teoria objetiva, desenvolvida por Rudolf Von Ihering.

De acordo com a primeira teoria, a posse seria o poder de disposição física de uma pessoa sobre a coisa, com a intenção de tê-la para si e de defendê-la de toda e qualquer intervenção alheia. Para Savgny, dois elementos conjugados entre si dariam vida à posse: o corpus e o animus.

O corpus é o elemento material da posse, representado pelo poder físico exercido sobre a coisa, dispondo o possuidor da coisa. Já o animus é o elemento subjetivo, representado pela intenção de ter a coisa como sua, pois é a vontade de possuir. Sem o corpus, não existirá relação de fato entre a pessoa e a coisa, e sem o animus, não haverá posse e sim detenção do bem.

Savigny entende que só haverá posse quando o possuidor detiver a coisa com animus domini, ou seja, com a intenção de ter a coisa como sua. Logo, quem detiver a coisa in nomine alieno, ou seja, em nome alheio, como ocorre com o locatário, será detentor e não possuidor.

A teoria subjetiva considera a posse uma exteriorização do domínio. É o modo como o proprietário usa de fato a sua propriedade, dando-lhe uma destinação econômica. Logo, o elemento corpus não é uma simples relação material, pois consiste na manifestação da vontade de fazer servir a coisa às suas necessidades, por meio do exercício dos poderes inerentes à propriedade, quais sejam: uso, gozo, disposição e defesa.

Para Ihering, enquanto a propriedade é o poder de direito, jurídico, exercido sobre a coisa, a posse é o poder de fato exercido sobre a coisa, traduzido na exteriorização de um direito real, importando a utilização econômica da coisa, ainda que exercida in nomine alieno. Portanto, possuidor será aquele que exercer, em proveito próprio, qualquer dos poderes inerentes do domínio ou à propriedade.

Vistas as duas teorias, é preciso fazer distinção entre o animus domini e a opinio domini. O primeiro está ligado à posse e à vontade, a intenção, o desejo. O segundo está vinculado à propriedade e a fé, a convicção que tem o proprietário de que seja verdadeiramente dono da coisa.

Na conceituação de posse, o Código Civil adotou a teoria objetiva, tendo em vista que, com base no artigo 1196, constata-se que a posse vem tratada como sendo exteriorização da propriedade; embora fazendo concessão à teoria subjetiva, conforme se pose depreender da leitura do artigo 1238, que prescreve como um dos requisitos da usucapião a necessidade de possuir um imóvel como seu, de modo que a posse necessita ser exercida com animus domini.

No que concerne à natureza jurídica da posse, a melhor corrente é a que a considera como um direito, até mesmo porque o próprio Código Civil reservou o Título I para disciplina da posse, fornecendo o conceito de possuidor, a classificação, os modos de aquisição e perda, os efeitos e, por fim, a proteção possessória.

Na lição de Ihering, a posse é um direito real, não só porque é instituo que tem por finalidade proteger o direito de propriedade, como também porque o objeto da posse é a coisa; o sujeito passivo é indeterminado, uma vez que toda a coletividade, indistintamente, é titular da chamada obrigação passiva universal, o que faz com que a posse seja exercida erga omnes; há um poder direto do titular sobre a coisa e há também a seqüela. Por outro lado, é a posse a condição de utilização econômica da propriedade e, portanto, o direito a protege. Savigny considera a posse um direito pessoal. O Código Civil, ao tratar a posse no Livro III, referente ao “Direito das Coisas”, deu à posse tratamento autêntico de direito real.

Classificação da Posse

A primeira classificação legal da posse está contida no artigo 1197 do Código Civil, que a desdobra em posse direita e indireta.

Quanto ao campo de seu exercício, a posse direta é aquela em que o possuidor tem a coisa consigo, exercendo contato físico, direto, imediato, aparente. Indireta é a posse em que o possuidor exerce um contato indireto, mediato, não-aparente sobre a coisa.

A expressão “direito pessoal” ou “real”, contida no artigo 1197 do Código Civil, evidencia quer a classificação da posse em direta e indireta somente poderá ser feita quando existir, além do direito de propriedade, um direito real sobre a coisa alheia ou um direito obrigacional. Isto significa dizer que, para haver tal tipo de classificação, é necessária a existência de um ato jurídico através do qual se constitua um direito real sobre coisa alheia ou um direito obrigacional. Portanto, a prática de um ato ilícito não tem o condão de desdobrar em posse direta e indireta, ainda que, por força do mencionado ato ilícito, o possuidor perca o poder material que, até então, vinha exercendo sobre a coisa.

Seguindo sua classificação, o Código Civil, em seu artigo 1200, ao definir o que seja posse justa, fornece mais dois tipos de posse: a justa e a injusta.

Segundo a própria definição da lei, posse justa é aquela constituída com base em uma causa legítima, perfeita, lícita. Ao contrário, posse injusta é aquela que contém vício possessório (todo ato ilícito ou defeito que for encontrado na origem da posse).

A violência, a clandestinidade e a precariedade são os três vícios possessórios existentes. A violência se traduz no apossamento da coisa por meio da força física ou moral, consistente essa na ameaça. A clandestinidade, por sua vez, caracteriza no apossamento às escondidas, enganoso, fraudulento, sem que o autor do vício, para alcançar o seu intento, se utilize da violência.

A precariedade consistirá no apossamento fundado no abuso de confiança, eis que a coisa se encontrará em poder do possuidor precário, e por tal razão, se identificará com o crime de apropriação indébita. Considera-se precário aquele possuidor que, inicialmente, possuía a coisa com base em título que legitimava a posse, mas que, a partir de um determinado momento (quando deve restituir a coisa), não tem mais a intenção de devolver o bem, uma vez que deseja permanecer na posse. Tal circunstância se caracterizará como verdadeira inversão no título da posse.

As posses viciosas são designadas como sendo posse vi, posse clam e posse precario. Merece destaque o artigo 1208 do Código Civil que prevê expressamente que os atos violentos ou clandestinos não autorizam a aquisição da posse, senão depois de cessada a violência ou clandestinidade. Repare-se que mencionado dispositivo legal não faz qualquer alusão ao vício da precariedade, o que significa dizer que a este é o único vício possessório que jamais irá convalescer.

Cumpre esclarecer que a violência e a clandestinidade são vícios temporários e somente desaparecem após ano e dia, contado da data em que o ato violento ou clandestino tiver sido praticado. O prazo é considerado com um ponto de referência, não só para classificara posse em nova e velha, como também para considerar a ação possessória como sendo de força nova ou de força velha. Portanto, o mesmo marco será utilizado para determinar o momento em que o vício da violência ou clandestinidade desaparecerá.

Atos violentos, clandestinos ou precários não autorizam seu autor a adquirir a posse em relação à pessoa que figura com vítima do ato praticado.

Para fins de ajuizamento de ação reivindicatória, não será considerada injusta tão somente a posse violenta, clandestina ou precária, nos exatos termos do artigo 1200 do Código Civil. Posse injusta em sentido estrito é aquela que contém um dos três vícios possessórios. Já a posse injusta em sentido amplo é aquela que repugna o Direito, ou seja, é a exercida por quem se coloca em antagonismo ao exercício do direito de propriedade.

No artigo 1201, caput, do Código Civil, é disciplinada a posse de boa-fé e a posse de má-fé. Naquela, o possuidor ignora a existência de um vício possessório que impeça, do ponto de vista legal, a sua aquisição regular, enquanto nesta o possuidor sabe da existência do vício possessório.

Os vícios podem ser materiais ou formais. Estes, acrescidos do erro e da incapacidade do agente, constituem obstáculos à aquisição do direito, por serem defeitos que maculam a posse, e o possuidor que os tiver será titular de uma posse injusta. Aqueles são a violência, a clandestinidade e a precariedade.

A posse de boa-fé e a de má-fé têm importância prática em matéria de direito aos frutos e produtos, à indenização pelos danos causados à coisa, à indenização pelo valor das benfeitorias realizadas na coisa, direito de retenção e à usucapião.

O parágrafo único do artigo 1201 do Código Civil trata da posse com jus título e da posse sem justo título, devendo-se ressaltar que tal classificação só tem aplicação em relação à posse injusta.

Posse com justo título é aquela que se origina de um título que, abstratamente considerado, seria o título a ser utilizado, tendo em vista que seria adequado para produzir o efeito jurídico desejado. No entanto, o título, concretamente considerado, apresenta um defeito que impede o legítimo apossamento da coisa.

Em sentido contrário, a posse sem justo título não está ligada, concreta ou abstratamente, a qualquer coisa e, portanto, ressente-se de fundamento ou está ligada a um título que, ainda que considerado em tese, não é o adequado para produzir o efeito desejado, como ocorre com quem adquire imóvel com mero recibo ou com o possuidor de coisa legada por meio de simples carta.

O justo título influi na posse de boa-fé, no sentido de que sua presença sempre enseja uma presunção (relativa) de boa-fé, não obstante exista um defeito original.

O título putativo pode aproveita à boa-fé, pois é aquele que, embora inadequado ou inexistente, o possuidor acredita que existe ou é o título próprio para conferir-lhe a posse desejada. É o que ocorre com o herdeiro e o legatário aparente, os quais, instituídos em testamento que veio a ser anulado sem que o soubessem, acabaram por exercer atos possessórios sobre os bens componentes da herança ou legado. Portanto, não há como lhes recusar a posição de possuidores de boa-fé.

No que tange ao fenômeno da interversão da posse, previsto no artigo 1203 do Código Civil, Orlando Gomes ensina que consiste na transformação do que pode ocorrer em um título ou em uma posse, for força da qual o detentor passa a ser reputado verdadeiro possuidor e a posse precária se transforma em posse legítima. Interversão é o mesmo que inversão. Salvo prova em contrário, entender-se manter a posse o mesmo caráter com que foi adquirida. Portanto, toda vez que ocorrer uma alteração no tratamento da posse, interversão na posse haverá.

Se uma posse começou violenta, clandestina ou precária, presume-se permanecer com os mesmos vícios, que irão acompanhá-la nas mãos dos sucessores do adquirente.

O prazo de ano e dia – marco divisório da posse nova e da posse velha – é importante porque contra a posse nova pode o titular do direito lançar mão do desforço pessoal e imediato, previsto no artigo 1210, § 1º do Código Civil, ou obter reintegração liminar da posse em ação própria (artigo 926 do CPC). Entretanto, se a posse for velha, isso não será possível.

A posse injusta, apesar de se revestir de algum dos vícios anteriormente apontados, pode ser defendida pelos interditos possessórios, não contra aquele de quem se tirou, pela violência, clandestinidade ou precariedade, mas contra terceiros que eventualmente desejarem arrebatar a posse para si.

Causa possessionis é o fato que dá surgimento à relação possessória estabelecida entre possuidor e a coisa. É a maneira pela qual o sistema jurídico preestabelece que se crie a posse.

A violência, a clandestinidade e a precariedade, como vícios possessórios que são, consistem em verdadeira causa possessoinis, fundamento da posse injusta a ser constituída.

Quando o legislador se refere à posse precária, ele está, na verdade, afirmando uma posse que já existia em relação à situação estabelecida entre a pessoa e o possuidor.

Se a mudança na causa da posse resultar de um acordo entre possuidor precedente ou mediato, e o que se faz possuidor pleno, ou de outra causa, ou de ato unilateral, através do qual aquele que emprestou, com permissão de uso, possa reclamar o bem de volta, haverá a chamada mudança da causa possessionis ou substituição da causa possessionis à causa detentionis.

Se o possuidor direto (ex. comodatário) passa a possuir a como seu o bem dado em comodato ou, a seu talante, se transforma em locatário, ocorrerá a chamada mudança da causa possessionis, resultando na interversão na posse.

Quanto à simultaneidade do exercício da posse, também pode ser identificado o fenômeno da composse, que, para restar caracterizado, necessita de dois pressupostos: a pluralidade de sujeitos e a existência de uma coisa indivisa ou que se encontre em estado de indivisão.

Apesar de a composse se aproximar do condomínio, ela não o pressupõe necessariamente, podendo existir com ou sem ele, razão pela qual não se pode vincular a composse ao condomínio. Logo, pode haver condomínio e posse exclusiva; domínio exclusivo e posse comum.

Geralmente, o condomínio pressupõe a composse, no regime do condomínio geral do Código Civil. Regra geral, sempre que uma coisa for possuída ao mesmo tempo por diversas pessoas, haverá composse, haja ou não condomínio.

A composse reflete uma só posse, assim como o condomínio implica um só direito de propriedade, com a peculiaridade de uma titularidade plural, sendo esta única posse exclusiva dos compossuidores.

Tomando-se por base o disposto no artigo 1199 do Código Civil, que prevê, na composse, a possibilidade de cada possuidor exercer sobra a coisa indivisa atos possessórios, sem exclusão dos demais, conclui-se que o compossuidor exerce todos os poderes inerentes à posse, sem a exclusão dos outros compossuidores, podendo recorrer, inclusive, aos interditos possessórios para o regular exercício de seus poderes, uma vez que cada compossuidor deve exercer os atos possessórios sobre a coisa se prejudicar idêntico direito dos demais compossuidores.

Se, no caso concreto, a situação fática não puder ser resolvida com base no princípio do artigo 1199 do Código Civil, deverá o Juiz, por analogia, aplicar os princípios que regem o condomínio geral.

Na composse é necessário diferenciar a posse pro diviso da posse pro indiviso. Na primeira, a composse subsiste como direito, mas não de fato. porque o compossuidor exerce sobre posse sobre coisa certa, lugar determinado. Já na posse pro indiviso, o compossuidor não exerce posse sobre qualquer trecho do imóvel, razão pela qual a composse existe tanto de direito como de fato. Cuidando-se de posse pro diviso, o possuir tem o direito de ser respeitado na porção que ocupa, inclusive pelos demais compossuidores. Caso a posse seja pro indiviso, poderá o compossuidor permanecer no trecho não utilizado pelos demais compossuidores, desde que não os exclua de seus direitos possessórios.

Toda e qualquer divergência existente entre os compossuidores a respeito do modo de utilizar a coisa comum ou da pretensão de assentar posse exclusiva sobre partes determinadas da coisa objeto da comunhão não será resolvida tão-somente por meio dos interditos possessórios, na medida em que, dependendo de cada situação que surja, o compossuidor poderá utilizar-se da medida judicial cabível para tutelar o seu direito violado, que poderá não ser de natureza exclusivamente possessória.

Segundo classificação doutrinária, a posse pode ser originária e derivada. Originária é a que resulta suficiente de um ato de investidura do próprio possuidor, o qual, por sua exclusiva força, apossa-se da coisa. É o que ocorre com o pescador em relação à sua pesca. Derivada é a posse que provém de um ato de transferência, que pressupõe a existência de posse anterior de quem o possuidor derivado houve a coisa possuída.

É importante traçar essa distinção porque na posse originária não há qualquer vício, enquanto na posse derivada, os vícios acaso existentes anteriormente, transmitem-se ao possuidor derivado.

Natural é a posse que requer a efetiva detenção material da coisa para se caracterizar. Civil é a posse que se apresenta automaticamente, como mero efeito da lei.

Merece destaque a classificação que a doutrina faz da posse ao distinguir o que seja ad interdictae e posse ad usucapionem. Enquanto a primeira comporta uma defesa por meio dos chamados interditos possessórios, a segunda é aquela posse que admite a usucapião, uma vez satisfeitos todos os requisitos legais.

O Código Civil de 2002 acabou com a classificação legal da posse em nova e velha, contudo, deve-se considerar tal distinção em termos doutrinários, uma vez que o artigo 924 do Código de Processo Civil refere-se a prazo de ano e dia, quanto trata do procedimento a ser adotado nas ações possessórias, sejam de força nova, sejam de força velha. Assim, posse nova é aquela que data de mais de ano e dia. O prazo é contado a partir do momento em que é praticada a lesão possessória. Se a posse litigiosa estiver em poder do autor da lesão possessória há mais de ano e dia, nela será mantido até que outra ação (reivindicatória, usucapião) de determine a quem deva tocar a coisa.

Se a posse for realmente indefinida em relação aos litigantes, se todos disserem que a exercem há menos de ano e dia, se todos exibirem títulos, se nenhum tiver título, se todos os títulos exibidos forem iguais, aplica-se o critério de preferência baseado na “melhor posse” (previsto no artigo 507 do Código Civil de 1916).

Embora o atual Código Civil não se refira expressamente à “melhor posse”, trata-se de conceito que deve ainda ser considerado pela doutrina e que se baseia nos seguintes critérios:

- se os litigantes apresentarem títulos, a melhor posse será baseada no justo título, entendido como sendo aquele adequado para conferir o jus possidendi, apenas excluído o de domínio, já alcançado pelo artigo 1210, § 2º do Código Civil;

- se forem apresentados títulos iguais ou não havendo a exibição de título algum, melhor posse será a mais antiga; e

- caso não seja possível identificar a presença do justo título, nem de qual seja a posse mais antiga, então melhor posse será a atual.

Se, após utilizados os critérios de preferência, a posse dos litigantes continuar duvidosa, deverá o magistrado seqüestrar a coisa, deixando-a com um depositário judicial, até que, em ação adequada (petitória ou possessória), se determine a qual litigante o bem deva tocar.

Fonte: A Posse e seus Efeitos. Álvaro Antônio Sagulo Borges de Aquino.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Processo Penal: Conceitos Iniciais e Princípios

Leis e Processo Penal no Tempo e no Espaço

Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, quando aprovados em dois turnos, por ambas as Casas do Congresso, passarão a ter o tratamento de emendas constitucionais. Permanecerá a antiga jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação às outras modalidades de tratados internacionais, isto é, que não tenham por objeto matéria acerca de direitos humanos.

No campo da interpretação, importa lembrar que a adesão às normas internacionais firmadas em tratados e convenções internacionais, subscritas, ratificadas e promulgadas pelo Brasil implicará a adoção de regras processuais penais eventualmente ali previstas.

Nos termos do artigo 5º, § 4º do Código de Processo Penal, o Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.

Embora expressa a admissão da jurisdição do Tribunal Penal Internacional de Roma, impende observar que a aludida sujeição é subsidiária, tanto no que se refere a processos já julgados no Brasil quanto a processos em andamento. E, mesmo se instaurado perante o Tribunal Penal Internacional, o Brasil não estará impedido de adotar as mesma providências.

Nos termos do artigo 20 do Estatuto de Roma, norma que rege a Corte Internacional, e segundo a boa doutrina, quando o julgamento local tiver sido realizado com o objetivo de assegurar a impunidade dos autores de crimes contra os direitos humanos, ou mesmo quando a investigação e o processamento destes acusados estiver sendo feito com delongas inaceitáveis, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional se fará positiva.

No que concerne à obrigação de entrega de brasileiros natos ao Tribunal Penal Internacional, André de Carvalho Ramos, observa que não haveria óbice constitucional, na medida em que a extradição implica a entrega de nacionais a Estados soberanos, enquanto a medida prevista no artigo 89 do Estatuto determina a entrega a um organismo internacional, cuja normatização é aceita pelo país e de quem se espera o efetivo cumprimento do devido processo legal.

De se acentuar, mais, que, no caso da extradição, não há aceitação prévia das normas jurídicas do Estado solicitante pelo Estado concedente, em face da soberania de ambos. Na entrega, ao contrário, além de não se cuidar de outro Estado – mas de um organismo internacional –, a normatividade a ser aplicada ao caso concreto há de ser previamente admitida e aceita pelo Estado que a realiza. A diferença entre as situações é sensível.

O processo penal brasileiro estrutura-se a partir da Constituição Federal, adotando também as normas previstas em tratados e convenções internacionais, bem como, ao lado destas, as normas de origem interna, isto é, a legislação infraconstitucional.

No que diz respeito às leis no espaço, trata-se de matéria constitucional, ligada à soberania dos Estados.

Especificamente em relação às leis processuais, nenhuma dificuldade: aplica-se, por óbvio, o princípio da territorialidade. As hipóteses de extraterritorialidade constituem matéria de Direito Penal, conforme previsto no artigo 7º do Código Penal. Nele são previstos os casos em que a lei penal ultrapassará os limites de nosso território para atingir determinadas pessoas e condutas praticadas no estrangeiro. Mas, do ponto de vista do processo penal, não há qualquer complexidade. Processo é instrumento de jurisdição. Assim, somente se aplica o nosso processo penal em sede de jurisdição brasileira.

Já no que se refere às leis processuais no tempo, segue-se a regra de toda a legislação processual: aplicam-se de imediato, desde a sua vigência, respeitando, porém, a validade de atos realizados sob o império da legislação anterior.

Por atos já praticados deve-se entender também os respectivos efeitos e/ou consequências jurídicas. Por exemplo: sentenciado o processo e em curso o prazo recursal, a nova lei processual que alterar o aludido prazo não será aplicada, respeitando-se efeitos preclusivos da sentença tal como previstos na época de sua prolação.

As normas processuais não regulam matéria de fato, mas regras de procedimento, daí porque não têm como pressuposto de aplicação o conhecimento de suas disposições, ressalvadas, é claro, as garantias constitucionais do devido processo legal. E a ressalva das citadas garantias não se faz pela constitucionalização de seus propósitos, mas em razão dos respectivos conteúdos. Assim, a ampla defesa e o contraditório, por exemplo, são exigências do próprio conhecimento do objeto do processo, impondo-se como pressuposto de legitimação de qualquer provimento judicial. Sem eles, ou melhor, sem a sua observância, o conhecimento judicial estará irremediavelmente comprometido. Tal não se dá, porém, como regras exclusivamente procedimentais.

De outro lado, tratando-se de normas de conteúdo misto, contendo disposições de Direito Penal e de Direito Processual Penal, deve-se seguir o conteúdo normativo das primeiras. É que a regra da irretroatividade da norma penal desfavorável ao acusado deve prevalecer sobre os comandos de natureza processual. Se, porém, for mais favorável, pode-se aplicar a lei desde logo.

Nos casos de lei de conteúdo misto, o que não poderá ocorrer é a separação entre uma e outra, do que resultaria, na verdade, como que uma terceira legislação.

Se houver dúvidas quanto ao alcance da legislação processual penal, no que se refere à sua benignidade em face do acusado, deve-se rejeitar a sua aplicação imediata. Isso porque nem sempre a lei é inteiramente ou integralmente favorável, contendo disposições que beneficiam e outras que desfavorecem o réu. Assim, impõe-se ao intérprete cautelas redobradas. A regra, no entanto, é a impossibilidade de fragmentação normativa, isto é, do aproveitamento da regra mais favorável da lei posterior e de parte da legislação anterior. A exceção ficaria por conta de normas atinentes às chamadas causas extintivas da punibilidade – por exemplo, a prescrição. Essas, porque portadoras de mensagens – juízes legislativos – de ausência de interesse punitivo, devem ser sempre aplicadas.

Princípios do Processo Penal

O princípio do juiz natural tem origem no Direito Anglo-Saxão, construído inicialmente com base na idéia da vedação do tribunal de exceção, isto é, a proibição de se instituir ou de se constituir um órgão Judiciário exclusiva ou casuisticamente para o processo e julgamento de determinada infração penal.

O Direito brasileiro, adotando o juiz natural em suas vertentes fundamentais, a da vedação do tribunal de exceção e a do Juiz cuja competência seja definida anteriormente à prática do fato, reconhece como juiz natural o órgão do Poder Judiciário cuja competência, previamente estabelecida, derive de fontes constitucionais.

Em razão das opções feitas pelo constituinte na tarefa de distribuição da jurisdição, fala-se em competência ratione materiae, especializada por matéria e em competência ratione personae ou, mais corretamente, em razão das funções. A competência ratione loci (em razão do lugar) foi delegada para a legislação ordinária, não se impondo como exigência do juiz natural.

Com referência à fixação da competência em razão da matéria, institui-se o juiz natural para o processo e julgamento dos crimes de competência da Justiça Federal, Justiça Militar – Estadual e Federal – e da Justiça Eleitoral. Também a garantia do Tribunal do Júri para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Em relação à competência ratione personae, são previstos os foros privativos do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, para o processo e julgamento de determinadas autoridades em razão da prática de crimes comuns e/ou de responsabilidade.

Se a convocação de Juízes de primeiro grau for feita para fins exclusivos de substituição regular e regimental de membro do Tribunal, nos termos da legislação orgânica aplicável, nada há que se falar em nulidade e muito menos em violação do juiz natural.

O dogma da verdade real, o direito ao silêncio e à não auto-incriminação permite que o acusado ou aprisionado permaneça em silêncio durante toda e investigação e mesmo em Juízo, e também impede que ele seja compelido a produzir ou a contribuir com a formação da prova contrária ao seu interesse.

A Lei n.º 10.792/2003, que alterou vários dispositivos do Código de Processo Penal, consolidou o que já era uma realidade, ao menos em âmbito doutrinário: o tratamento do interrogatório como meio de defesa, assegurando-se ao acusado o direito de entrevistar-se com seu advogado antes do referido ato processual; o direito de permanecer calado e não responder perguntas a ele endereçadas, sem que possa extrair do silêncio qualquer valoração em prejuízo para a defesa.

A não-exigibilidade de participação compulsória do acusado na formação da prova a ele contrária decorre, além do próprio sistema de garantias e franquias públicas instituído pelo constituinte, de norma expressa prevista no artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José).

A garantia do direito ao silêncio e da não auto-incriminação, bem como aquelas constituídas para a tutela da intimidade, privacidade e dignidade e, ainda, a garantia do estado de inocência, autorizam o inculpado a recusar-se, também, a participar da reconstituição do crime, sobretudo pelo constrangimento que é submetido o investigado, muitas vezes exposto à execração pública, como se efetiva e antecipadamente culpado fosse.

O contraditório, junto com o princípio da ampla defesa, institui-se como a pedra fundamental de todo o processo e, particularmente, do processo penal. É assim porque, como cláusula de garantia instituída para a proteção do cidadão diante do aparato persecutório penal, encontra-se solidamente encastelado no interesse público da realização de um processo justo e equitativo, único caminho para a imposição da sanção de natureza penal.

De outro lado, e para além do interesse específico das partes e, de modo especial, do acusado, é bem ver que o contraditório põe-se também como método de conhecimento do caso penal. Com efeito, uma estrutura dialética de afirmações e negações pode se revelar extremamente proveitosa na formação do conhecimento judicial, permitindo uma análise mais ampla de toda a argumentação pertinente à matéria de fato e de direito.

Da perspectiva da teoria do processo, o contraditório não pode ir além da garantia de participação, isto é, a garantia de a parte poder impugnar – no processo penal, sobretudo a defesa – toda e qualquer alegação contrária a seu interesse, sem, todavia, maiores indagações acerca da concreta efetividade com que se exerce aludida impugnação.

O direito à participação da defesa técnica – do advogado – de co-réu durante o interrogatório de todos os acusados está incluído no princípio da ampla defesa.

Enquanto o contraditório exige a garantia de participação, o princípio da ampla defesa vai além, impondo-se a realização efetiva desta participação, sob pena de nulidade, se e quando prejudicial ao acusado.

Pode-se afirmar que a ampla defesa realiza-se por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado.

A compreensível preocupação com o exercício efetivo da ampla defesa levou a Suprema Corte a elaborar novas súmulas de sua jurisprudência, entre elas, o Enunciado n.º 705, a dispor que “a renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta”. Já o Enunciado n.º 707 preceitua que “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”.

De registrar a nova redação do artigo 306 do Código de Processo Penal dada pela Lei n.º 11.449/07, que exige a comunicação imediata de toda prisão (prazo máximo de vinte e quatro horas) ao Juiz e familiares do preso, e agora, no contexto da amplitude da defesa, também da Defensoria Pública, quando o aprisionado não tiver advogado.

O princípio de inocência ou do estado ou situação jurídica de inocência, impõe ao Poder Público a observância de duas regras específicas em relação ao acusado: uma de tratamento, segundo a qual o réu, em nenhum momento do iter persecutório, pode sofrer restrições pessoais fundadas exclusivamente na possibilidade de condenação, e outra de fundo probatório, a estabelecer que todos os ônus da prova relativa à existência do fato e à sua autoria devem recair exclusivamente sobre a acusação. À defesa restaria apenas demonstrar a eventual presença de fato caracterizador de excludente de ilicitude e culpabilidade, cuja presença fosse por ela alegada.

O estado de inocência (e não a presunção) proíbe a antecipação dos resultados finais do processo, isto é, a prisão, quando não fundada em razões de extrema necessidade, ligadas à tutela da efetividade do processo e/ou da própria realização da jurisdição penal.

Com olhos postos na necessidade de segurança jurídica e no adequado e regular funcionamento das instituições públicas responsáveis pela administração da Justiça, a vedação da revisão para a sociedade impede que alguém possa ser julgado mais de uma vez por fato do qual já tenha sido absolvido, por decisão passada em julgado.

Isso ocorrerá quando a aludida absolvição tenha ocorrido em razão de erro judiciário no julgamento, decorrente de equívoco na apreciação das provas e dos fatos, por injustiça ou qualquer outro vício possível.

A razão de ser da vedação da revisão pro societate fundamenta-se na necessidade de se preservar o cidadão sob acusação de possíveis desacertos – escusáveis ou não –, encontráveis na atividade persecutória penal, atuando o princípio, também, como garantia de maior acuidade e zelo dos órgãos estatais no desempenho de suas funções (administrativas, investigatórias, judiciárias e acusatórias).

Nesse campo, o que deve orientar a aplicação do direito é a proteção do jurisdicionado contra a ineficiência e o abuso da atividade estatal. O princípio atua, pois, como norma de controle das atividades do Poder Público, de modo a garantir que somente uma persecução penal fundada em provas seguras possa ser instaurada. Na dúvida ou na insuficiência do material probatório, o caminho deve ser sempre o arquivamento do inquérito ou das peças de informação.

Diferentemente, não se poderá argumentar com aplicação do princípio da vedação de revisão pro societate quando se tratar de decisão de arquivamento de inquérito, acaso determinado por autoridade judiciária absolutamente incompetente.

Tratando-se de questão ligada tanto à definição do órgão com atribuições constitucionais para a persecução – portanto, da parte legítima para a causa – quanto da competência material, absoluta, do juiz natural, somente a prolação de sentença absolutória poderia justificar o afastamento de tais princípios, para, aí sim, reclamar-se a aplicação de outro: o da vedação de revisão pro societate.

E nem mesmo se poderia falar na extensão de possíveis efeitos de coisa julgada material, inexistente em tema de decisão de arquivamento de inquérito, ressalvada a hipótese do arquivamento por atipicidade da conduta.

Exatamente por essa razão, é que a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal entendeu que a decisão de arquivamento (por atipicidade) proferida por Juiz absolutamente incompetente não poderia ser objeto de novo questionamento, ao argumento de possível violação ao princípio de vedação da reformatio in pejus indireta (HC n.º 83.536/SP).

Em uma ordem jurídica fundada no reconhecimento, na afirmação e proteção dos direitos fundamentais, não há como recusar a estatura fundante do princípio da inadmissibilidade das provas ilícitas, sobretudo porque destinado a proteger os jurisdicionados contra investidas arbitrárias do Poder Público.

Fonte: Curso de Processo Penal. Eugênio Pacelli de Oliveira.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Poderes e Deveres dos Administradores Públicos

Uso do poder é a utilização normal, pelos agentes públicos, das prerrogativas que a lei lhes confere.

Os poderes administrativos são outorgados aos agentes do Poder Público para lhes permitir atuação voltada aos interesses da coletividade. Sendo assim, eles emanam duas ordens de conseqüência: são eles irrenunciáveis e devem ser obrigatoriamente exercidos pelos titulares.

Esse aspecto dúplice do poder administrativo é que se denomina “poder-dever de agir”. E aqui, vale a lição de Hely Lopes Meirelles: “se para o particular o poder de adir é uma faculdade, para o administrador público é uma obrigação de atuar, desde que se apresente o ensejo de exercitá-lo em benefício da comunidade”.

Corolário importante do poder-dever de agir é a situação de ilegitimidade de que se reveste a inércia do administrador: na medida em que lhe incumbe conduta comissiva, a omissão haverá de configurar-se como ilegal.

Ressalve-se, no entanto, que nem toda omissão administrativa se qualifica como ilegal: estão nesse caso as omissões genéricas, em relação às quais cabe ao administrador avaliar a oportunidade para adotar as providências positivas.

Incide aqui a que a moderna doutrina denomina de reserva do possível, para indicar que, por vários motivos, nem todas as metas governamentais podem ser alcançadas, principalmente pela costumeira escassez de recursos financeiros.

Ilegais, desse modo, serão as omissões específicas, ou seja, aquelas que estiverem ocorrendo mesmo diante de expressa imposição legal no sentido do facere administrativo em prazo determinado, ou ainda quando, mesmo sem prazo fixado, a Administração permanece omissa em período superior ao aceitável dentro de padrões normais de tolerância e razoabilidade.

A omissão da Administração podem também ser objeto de reclamação a ser proposta junto ao Supremo Tribunal Federal, quando houver contrariedade, negativa de vigência ou aplicação indevida de enunciado de Súmula Vinculante. Exige-se, entretanto, que o interessado tenha esgotado anteriormente as instâncias administrativas.

Quanto ao agente omisso, poderá ele ser responsabilizado civil, penal ou administrativamente, conforme o tipo de inércia a ele atribuído.

Abuso de poder é a conduta ilegítima do administrador, quando atua fora dos objetivos expressa ou implicitamente traçados na lei.

A conduta abusiva dos administradores pode decorrer de duas causas: o agente atua fora dos limites de sua competência; o agente, embora dentro de sua competência, afasta-se do interesse público que deve nortear todo o desempenho administrativo. No primeiro caso, diz-se que o agente atuou com excesso de poder e, no segundo, com desvio de poder.

O desvio de poder é a modalidade de abuso em que o agente busca alcançar fim diverso daquele que a lei lhe permitiu. Por isso, tal vício também é denominado de desvio de finalidade.

Agindo com abuso de poder, por qualquer de suas formas, o agente submete sua conduta à revisão, judicial ou administrativa.

Pela própria natureza do fato em si, todo abuso de poder se configura como ilegalidade. José dos Santos Carvalho Filho sustenta que nem toda ilegalidade decorre de conduta abusiva, mas todo abuso se reveste de ilegalidade.

Os poderes administrativos são o conjunto de prerrogativas de direito público que a ordem jurídica confere aos agentes administrativos para o fim de permitir que o Estado alcance seus fins.

O poder discricionário é a prerrogativa concedida aos agentes administrativos de elegerem, dentre várias condutas possíveis, a que traduz maior conveniência e oportunidade para o interesse público.

Conveniência e oportunidade são os elementos nucleares do poder discricionário. A primeira indica em que condições vai se conduzir o agente; a segunda diz respeito ao momento em que a atividade deve ser produzida. O exercício da discricionariedade tanto pode concretizar-se no momento em que o ato é praticado, quanto, a posteriori, ao momento em que a Administração decide por sua revogação.

Um dos fatores exigidos para a legalidade do exercício do poder discricionário consiste na adequação da conduta escolhida pelo agente à finalidade que a lei expressa. Outro fator é a verificação dos motivos inspiradores da conduta.

Enquanto atua nos limites da lei, que admite a escolha segundo aqueles critérios, o agente exerce a sua função com discricionariedade e sua conduta se caracteriza como inteiramente legítima. Ocorre que algumas vezes o agente, a pretexto de agir discricionariamente, se conduz fora dos limites da lei ou em direta ofensa a esta. Aqui comete arbitrariedade, conduta ilegítima e suscetível de controle de legalidade.

Há atividades administrativa cuja execução fica inteiramente definida na lei. O desempenho de tal tipo de atividade é feito através da prática de atos vinculados. O que se distingue é a liberdade de ação. Ao praticar atos vinculados, o agente limita-se a reproduzir os elementos da lei que os compõem, sem qualquer avaliação sobre a conveniência e a oportunidade da conduta. O mesmo já não ocorre quando pratica atos discricionários.

Alguns doutrinadores incluem, entre os poderes administrativos, o denominado “poder vinculado”, situando-o em antagonismo com o poder discricionário. Há que se ponderar, entretanto, que a atuação vinculada reflete uma imposição ao administrador, obrigando-o a conduzir-se rigorosamente em conformidade com os parâmetros legais. Por conseguinte, esse tipo de atuação mais se caracteriza como restrição e seu sentido está bem distante do que sinaliza o verdadeiro poder administrativo.

Todos os atos administrativos podem submeter-se à apreciação judicial de sua legalidade, e esse é o natural corolário do princípio da legalidade. No que se refere aos atos discricionários, todavia, é mister distinguir dois aspectos. Podem eles sofrer controle judicial em relação a todos os elementos vinculados, ou seja, aqueles sobre os quais não tem o agente liberdade quanto à decisão a tomar. Assim, se o ato é praticado por agente incompetente; ou com forma diversa da que a lei exige; ou com desvio de finalidade; ou com o objeto dissonante do motivo etc.

O controle judicial alcançará todos os aspectos de legalidade dos atos administrativos, não podendo, todavia, estender-se à valoração da conduta que a lei conferiu ao administrador.

Conceitos jurídicos indeterminados são termos ou expressões contidos em normas jurídicas que, por não terem exatidão em seu sentido, permitem que o intérprete ou o aplicador possam atribuir certo significado, mutável em função da valoração que se proceda diante dos pressupostos da norma. É o que sucede com expressões do tipo “ordem pública”, “bons costumes” etc.

A fisionomia jurídica da discricionariedade comporta três elementos: 1) norma de previsão aberta que exija complemento de aplicação; 2) margem livre de decisão, quanto à conveniência e à oportunidade da conduta administrativa; 3) ponderação valorativa de interesses concorrentes, com prevalência do que melhor atender ao fim da norma.

Enquanto o conceito jurídico indeterminado situa-se no plano de previsão da norma (antecedente), porque a lei já estabelece os efeitos que devem emanar do fato correspondente ao pressuposto nela contido, a discricionariedade aloja-se na estatuição da norma (conseqüente), visto que o legislador deixa ao órgão administrativo o poder de ele mesmo configurar esses efeitos.

Levando-se em conta justamente a ausência de standards de objetividade tanto na discricionariedade quanto na aplicação dos conceitos jurídicos indeterminados, surgem como mecanismos de controle os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, pelos quais se poderá evitar excesso de poder e adequação da conduta ao fim a que a norma se destina.

Poder regulamentar é a prerrogativa conferida à Administração de editar atos gerais para complementar leis e permitir sua efetiva aplicação. A prerrogativa, registre-se, é apenas para complementar a lei; não pode, pois, a Administração alterá-la a pretexto de estar regulamentando. Se o fizer, cometerá abuso de poder regulamenta, invadindo competência do Legislativo. Por essa razão, o artigo 49, inciso V da Constituição Federal autoriza o Congresso Nacional a sustar atos normativos que extrapolem os limites do poder de regulamentação.

Registre-se, por oportuno, que, ao desempenhar o poder regulamentar, a Administração exerce inegavelmente função normativa, porquanto expede normas de caráter geral e com grau de abstração e impessoalidade, malgrado tenham elas fundamento de validade na lei.

Sob o enfoque de que os atos podem ser originários e derivados, o poder regulamentar é de natureza derivada (ou secundária): somente é exercido à luz de lei pré-existente. Já as leis constituem atos de natureza originária (ou primária), emanando diretamente da Constituição. Serve como exemplo o artigo 103-B da Constituição Federal que, instituindo o Conselho Nacional de Justiça, conferiu a esse órgão atribuição para “expedir atos regulamentares no âmbito de sua competência, ou recomendar providências”. A despeito da expressão (atos regulamentares), tais atos não se enquadram no âmbito do verdadeiro poder regulamentar; como terão por escopo regulamentar a própria Constituição, serão eles atos autônomos e de natureza primária, situando-se no mesmo patamar em que se alojam as leis dentro do sistema de hierarquia normativa.

A formalização do poder regulamentar se processa, basicamente, por decretos e regulamentos. Há também atos normativos que, editados por outras autoridades administrativas, podem caracterizar-se como inseridos no poder regulamentar. É o caso de instruções normativa, portarias, resoluções etc.

Os decretos e regulamentos podem ser considerados como atos de regulamentação de primeiro grau; outros atos que a eles se subordinem e que, por sua vez, os regulamentem, evidentemente com maior grau de detalhamento, podem ser qualificados como atos de regulamentação de segundo grau, e assim por diante.

A regulamentação técnica é o modelo atual do exercício do poder regulamentar, cuja característica básica não é simplesmente a de complementar a lei através de normas de conteúdo organizacional, mas sim de criar normas técnicas não contidas na lei, proporcionando, em conseqüência, inovação no ordenamento jurídico. Por esse motivo, já doutrinadores que o denominam de “poder regulador” para distingui-lo do poder regulamentar. A delegação só pode conter a discricionariedade técnica. Exemplos dessa forma especial do poder regulamentar têm sido encontrados na instituição de algumas agências reguladoras, entidades autárquicas às quais o legislador tem delegado a função de criar normas técnicas relativas a seus objetivos institucionais.

O poder regulamentar é subjacente à lei e pressupõe a existência desta. Seu exercício somente pode dar-se secundum legem. É legítima, porém, a fixação de obrigações subsidiárias (ou derivadas) – diversas das obrigações primárias (ou orignárias) contidas na lei – nas quais também se encontra a imposição de certa conduta dirigida ao magistrado. Constitui, no entanto, requisito de validade de tais obrigações sua necessária adequação às obrigações legais.

Por via de conseqüência, não podem considerar-se legítimos os atos de mera regulamentação, seja qual for o nível da autoridade de onde se tenha originado, que, a pretexto de estabelecerem normas de complementação de lei, criam direitos e impõem obrigações aos indivíduos.

O controle legislativo dos atos de regulamentação é feito pelo Congresso Nacional, a teor do artigo 49, inciso V da Constituição Federal, pois é de sua competência sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem o poder regulamentar ou os limites da delegação legislativa.

No que se refere ao controle judicial, é preciso distinguir a natureza do conteúdo estampado no ato regulamentar. Tratando-se de ato regulamentar contra legem, ou seja, aquele que extrapole os limites da lei, viável será apenas o controle de legalidade resultante do confronto do ato com a lei, ainda que tenha caráter normativo. O Supremo Tribunal Federal decidiu que, se a interpretação administrativa da lei que vier a consubstanciar-se em decreto executivo divergir do sentido e do conteúdo da norma legal, que o ato secundário pretendeu regulamentar, quer porque tenha se projetado ultra legem, quer porque tenha permanecido citra legem, quer, ainda, porque tenha investido contra legem, a questão caracterizará, sempre, típica crise de legalidade, e não de inconstitucionalidade.

Se o ato regulamentar, todavia, ofender diretamente a Constituição, sem que haja lei a que deva subordinar-se, terá a qualificação de ato autônomo e, nessa hipótese, poderá sofrer controle de constitucionalidade pela via direta, ou seja, através da ação direta de inconstitucionalidade, medida que permite a impugnação de leis ou atos normativos que contrariem a Constituição. Sendo assim, para que seja viável o controle de constitucionalidade de decreto, regulamento ou outro tipo de ato administrativo de cunho normativo editado pelo Poder Executivo (o que, na verdade, não seria propriamente forma de exercício do poder regulamentar), dois serão os aspectos de que deva revestir-se o ato: além de normativo, deverá ele ser autônomo.

É cabível a impugnação direta pela argüição de descumprimento de preceito fundamental, porque aqui o controle concentrado é mais amplo, abrangendo a inconstitucionalidade direta e indireta, atos normativos autônomos e subordinados e até mesmo atos concretos.

Outra relação entre a lei e o poder regulamentar se encontra no mandado de injunção, neste caso, o vício consiste na ausência da norma regulamentadora. Em processo evolutivo, a Corte Suprema tem admitido proceder à imediata regulamentação para o caso concreto, tornando mais eficaz a medida injuncional.

A regra geral que autoriza o Chefe do Executivo a regulamentar a lei deve necessariamente apontar o prazo para ser expedido o ato. Nesse prazo, a lei ainda não se torna exeqüível enquanto não editado o respectivo decreto ou regulamento, e isso porque o ato regulamentar, nessa hipótese, figura como verdadeira condição suspensiva de exeqüibilidade da lei. Significa que os efeitos da lei ficam pendentes, e somente quando implementada a condição com o advento do referido ato é que a lei se torna, então, passível de aplicabilidade.

A omissão regulamentadora é inconstitucional, visto que, em última análise, seria o mesmo que atribuir ao Executivo o poder de legislação negativa em contrário, ou seja, permitir que sua inércia tivesse o condão de estacar a aplicabilidade da lei, o que, obviamente, ofenderia a estrutura de Poderes da República.

Está à mostra em nosso sistema político que ao Poder Executivo foi apenas conferido poder regulamentar derivado, ou seja, aquele que pressupõe a edição de lei anteriormente promulgada, que necessite do seu exercício para viabilizar efetiva aplicação de suas normas.

A Emenda Constitucional n.º 32 atribuiu ao Presidente da República competência para dispor, mediante decreto, sobre organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos. Decretos e regulamentos autônomos que estampem poder legiferante indireto e simulado não encontram suporte constitucional.

Os atos de organização e funcionamento da Administração Federal, ainda que tenham conteúdo normativo, são meros atos ordinatórios, ou seja, atos que se preordenam basicamente ao setor interno da Administração para dispor sobre seus serviços e órgãos, de modo que só reflexamente afetam a esfera jurídica de terceiros, e assim mesmo mediante imposições derivadas e subsidiárias, mas nunca originariamente. Esse aspecto não é suficiente para converter os atos em decretos ou regulamentos autônomos.

É mister, todavia, diferenciar os decretos como atos administrativos e os decretos oriundos do exercício da função política da competência do Presidente da República. É o caso, por exemplo, dos decretos de intervenção, de estado de defesa e de estado de sítio. Ao contrário dos atos administrativos, cuidam-se de atos políticos e de natureza primariam nesta caso porque emanam diretamente da Constituição, como ocorre com os regimentos de Tribunais e resoluções de órgãos legislativos.

Além dos poderes discricionário e regulamentar, dispõem os agentes da Administração poder de polícia, que completa o rol das reais prerrogativas administrativas.

O dever de probidade é o primeiro e talvez o mais importante dos deveres do administrador público. Sua atuação deve, em qualquer hipótese, pautar-se pelos princípios da honestidade e moralidade, quer em face dos administrados, quer em face da própria Administração. Regulamentando esse mandamento constitucional, foi editada a Lei n.º 8.429/92, que dispõe sobre os atos de improbidade administrativa, os quais podem ser caracterizados de três formas: i) os que dão ensejo a enriquecimento ilícito; ii) os que geram prejuízo ao erário; iii) os que ofendem a princípios da Administração.

No que concerne à hipótese em que o ato de improbidade provoque danos ao erário, é competente a pessoa jurídica interessada ou o Ministério Público para ajuizar ação cautelar de seqüestro (em verdade, arresto) dos bens do agente ou do terceiro para garantir o ressarcimento aos cofres públicos, como também para promover a ação principal, de rito ordinário, com o objetivo de recompor o erário lesado pela conduta ímproba. Trata-se, portanto, de legislação específica que bem demonstra a necessidade de ser observado o dever de probidade na Administração.

De tal relevo é esse dever que a conduta do Presidente da República, quando o afronta, configura crime de responsabilidade.

Como é encargo dos gestores públicos a gestão de bens e interesses da coletividade, decorre daí o natural dever, a eles cometido, de prestar contras de sua atividade.

A prestação de contas dos administradores pode ser realizada internamente, através dos órgãos escalonados em graus hierárquicos, ou externamente. Neste caso, o controle de contas é feito pelo Poder Legislativo por ele ser o órgão de representação popular. No Legislativo se situa, organicamente, o Tribunal de Contas, que, por sua especialização, auxilia o Congresso Nacional na verificação das contas dos administradores.

O dever de eficiência dos administradores públicos reside na necessidade de tornar cada vez mais qualitativa a atividade administrativa. Perfeição, celeridade, coordenação, técnica, todos esses são fatores que qualificam a atividade pública e produzem maior eficiência no seu desempenho.

Do sistema hierárquico da Administração decorrem alguns efeitos específicos. O primeiro consiste no poder de comando de agentes superiores sobre outros hierarquicamente inferiores. Estes, a seu turno, têm o dever de obediência para com aqueles, cabendo-lhes executar as tarefas em conformidade com as determinações superiores.

Outro efeito da hierarquia é o de fiscalização das atividades desempenhadas por agentes de plano hierárquico inferior para verificação das atividades desempenhadas em relação às normas legais e regulamentares, como ainda no que disser respeito às diretrizes fixadas por agentes superiores.

Decorre também da hierarquia o poder de revisão dos atos praticados por agentes de nível hierárquico mais baixo.

Por fim, derivam do escalonamento hierárquico a delegação e a avocação. Na definição de Cretella Júnior, delegação é a transferência de atribuições de um órgão a outro no aparelho administrativo. Avocação é o fato inverso, pois através dela o chefe superior pode substituir-se ao subalterno, chamando a si (ou avocando) as questões afetas a este, salvo quando a lei só lhe permita intervir nelas após a decisão dada pelo subalterno.

A subordinação e a vinculação constituem relações jurídicas peculiares ao sistema administrativo. Não se confundem, porém. A primeira tem caráter interno e se estabelece entre órgãos de uma mesma pessoa administrativa como fator decorrente da hierarquia. A vinculação, ao contrário, possui caráter externo e resulta do controle que pessoas federativas exercem sobre as pessoas pertencentes à Administração Indireta.

Inexiste hierarquia entre agentes que exercem função jurisdicional e legislativa, visto que inaplicável o regime de comando que a caracteriza. Na função legislativa vigora o princípio da partilha de competências constitucionais, peculiar às federações como a nossa, em função do qual o poder legiferante já se encontra delineado na Constituição.

A disciplina funcional resulta do sistema hierárquico. Com efeito, se aos agentes superiores é dado o poder de fiscalizar as atividades de nível inferior, deflui daí o efeito de poderem eles exigir que a conduta destes seja adequada aos mandamentos legais, sob pena de, se tal não ocorrer, serem os atos inferiores sujeitos às respectivas sanções.

No campo disciplinar, a lei, como regra, limita-se a enumerar os deveres e as obrigações funcionais e, ainda, as sanções, sem, contudo, uni-los de forma discriminada, o que afasta o sistema da rígida tipicidade.

No Direito disciplinar, de acordo com a gravidade da conduta, a autoridade escolherá, entre as penas legais, a que consulte ao interesse do serviço e a que mais reprima a falta cometida, o que lhe confere certo poder de avaliação dos elementos que provocaram a infração para aplicar a sanção apropriada ao fato. Em virtude dessa competência, não cabe ao Poder Judiciário alterar ou majorar sanções aplicadas pelo administrador, porque decisão desse tipo ofenderia o princípio da separação dos Poderes consagrados constitucionalmente; ao Juiz cabe tão-somente invalidá-las se constatar hipótese de ilegalidade.

A correta aplicação da sanção deve obedecer ao princípio da adequação punitiva (ou princípio da proporcionalidade), vale dizer, o agente aplicador da penalidade deve impor a sanção perfeitamente adequada à conduta infratora. Por essa razão, a observância do referido princípio há de ser verificada caso a caso, de modo a serem analisados todos os elementos que cercaram o cometimento do ilícito funcional.

Como regra geral, a apuração de infrações funcionais é formalizada por meio de processo disciplinar, cuja tramitação é previstas em leis e outras normas regulamentares, geralmente de caráter estatutário.

Fonte: Manual de Direito Administrativo. José dos Santos Carvalho Filho.