quinta-feira, 30 de julho de 2009

Interpretação Constitucional

A hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do Direito. A interpretação é a atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato.

As Constituições não costumam trazer regras sobre a sua própria interpretação ou para a do direito dela derivado. No sistema brasileiro, são escassas as regras de interpretação positivadas em texto legal. As existentes concentram-se na Lei de Introdução ao Código Civil, que, ao lado de normas sobre vigência das leis, direito intertemporal e direto internacional privado, consagrou apenas duas proposições afetas ao tem: uma sobre integração (art. 4º - quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito) e outra de cunho teleológico (art. 5º - na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum). A doutrina converge no sentido de atribuir às normas sobre interpretação cunho materialmente constitucional.

A posição de Konrad Hesse que nega o caráter de interpretação à atividade de revelar o conteúdo da norma constitucional quando não se suscitam dúvidas (in claris cessat interpretatio) há de ter, tão-somente, o sentido de reconhecimento de que a zona de clareza existente na lei enfraquece a atividade do intérprete, porém não o condena a uma acrítica interpretação literal.

O objeto da interpretação constitucional é a determinação dos significados das normas que integram a Constituição (no sentido formal e material), podendo assumir duas modalidades: a) a de aplicação direta da norma constitucional para uma situação jurídica; b) de uma operação de controle de constitucionalidade, em que se verifica a compatibilidade de uma norma infraconstitucional com a Constituição.

Conquanto seja uma lei e como tal deve ser interpretada, a Constituição possui quatro peculiaridades: I) superioridade hierárquica (confere o caráter paradigmático e subordinante de o todo o ordenamento); II) natureza de linguagem (normas com maior grau de abstração e menor densidade jurídica – ex. conceitos de igualdade, moralidade, bem comum); III) conteúdo específico (presença de normas programáticas, que visam estabelecer princípios e orientar programas de ação); IV) caráter político (quanto à origem, ao objeto e aos resultados de sua aplicação).

O poder constituinte é revolucionário em suas raízes históricas e político na sua essência. A despeito disso, a Constituição materializa a tentativa de conversão do poder político em poder jurídico (juridicização do fenômeno político). Dessa forma, não se pode neutralizar inteiramente a interferência de fatores políticos na interpretação constitucional. A racionalidade total, como bem atentou Konrad Hesse, é inatingível no Direito Constitucional, busca-se a “racionalidade possível”.

A interpretação da Constituição é uma tarefa jurídica e não política. Assim, se sujeita aos cânones da racionalidade, objetividade e motivação exigíveis das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Uma Corte Constitucional não deve ser indiferente às conseqüências políticas de duas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum. Entretanto, somente pode agir dentro dos limites e das possibilidades abertas pelo ordenamento. Contra o direito o juiz não deve decidir jamais. Em caso de conflito entre o direito e a política, deve o magistrado ficar ao lado do direito.

A interpretação das normas jurídicas irradia duas correntes, a dos subjetivistas e a dos objetivistas. Pela primeira corrente, busca-se identificar a mens legislatoris, enquanto os objetivistas almejam a mens legis. Atualmente, o debate encontra-se superado, pois há uma convergência quase total para a corrente objetivista, máxime se considerado o entendimento do Tribunal Constitucional alemão. Deveras, uma vez posta em vigor a lei se desprende do complexo de pensamentos e tendências que animaram seus autores e isso tanto é mais verdade quanto mais se distancie no tempo o início de vigência da lei. Para os objetivistas, a vontade do legislador não deve ser inteiramente desconsiderada, contudo, não é determinante e deve concorrer com outros fatores de igual relevância.

Vale registrar o ressurgimento nos Estados Unidos da discussão entre originalistas e não-originalistas. Fundando na tese de que o papel do intérprete da Constituição é buscar a intenção original (the original intent) dos elaboradores da Carta, os originalistas abstêm-se de impor suas próprias crenças ou preferências. Dessa forma, o ativismo judicial, as construções jurídicas para acudir situações não contempladas expressamente pela Constituição, seriam antidemocráticas. Verifica-se, portanto, que a crença originalista reveste-se de caráter eminentemente conservador.

De acordo com os métodos clássicos, a interpretação constitucional, quanto à sua origem, pode ser legislativa, administratiava e judicial. Alguns autores apontam a interpretação doutrinária e a autêntica. Quanto aos resultados ou à extensão, a interpretação pode ser declaratória, extensiva ou restritiva. Quanto aos métodos (elementos de interpretação), ela será gramatical, histórica, sistemática e teleológica.

Nesse particular, merece destacar o fato de que a interpretação judicial é final e vinculante para os outros Poderes. Apesar de citada, a possibilidade de interpretação autêntica é controvertida, devendo ser registrado que a doutrina brasileira e portuguesa a admite, desde que seja feita pelo órgão competente para a reforma constitucional, com observância do mesmo procedimento desta.

A respeito da interpretação constitucional tido como um processo aberto, não se circunscrevendo aos órgãos públicos, merece destaque a lição de Peter Härble:

“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indiretamente ou, até mesmo, diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico Como não são apenas os intérpretes que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição” (in Hermnenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, 1997, p. 42)

Quando exista congruência plena entre as palavras da norma e o sentido que lhes é atribuído pela razão, quando coincidem o elemento gramatical e o elemento lógico, a interpretação será declarativa (cum in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntas quaestio). Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gramatical, caberá ao intérprete operar uma retificação do sentido verbal na conformidade e medida do sentido lógico. A imperfeição linguistica pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer (impõe-se uma interpretação restritiva, lex plus scripsit, minus voluit), ou disse menos quando queria dizer mais (será necessária interpretação extensiva, lex minus scripsit quam voluit).

A doutrina, com certo consenso, entende que se interpretam restritivamente as normas que instituem as regras gerais, as que estabelecem benefícios, as punitivas em geral e as de natureza fiscal. Comportam interpretação extensiva as normas que asseguram direitos, estabelecem garantias e fixam prazos.

A interpretação constitucional é um fenômeno múltiplo sobre o qual exercem influência: a) o contexto cultural, social e institucional; b) a posição do intérprete; c) a metodologia jurídica.

Os métodos clássicos de interpretação surgem com Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, sendo ele o responsável por distinguir os métodos em: gramatical (se faz a partir do texto da norma), sistemático (a partir de sua conexão), histórico (a partir do processo de criação) e, posteriormente, em teleológico (a partir de sua finalidade). Nenhum método será absoluto, os diferentes meios empregados ajudam uns aos outros, combinando-se e controlando-se reciprocamente.

A tradição romano-germânica desenvolveu algumas diretrizes no processo de interpretação da norma. Em primeiro lugar, a atuação do intérprete deve conter-se sempre dentro dos limites e possibilidades do texto legal. A interpretação gramatical não pode ser inteiramente desprezada (interpretação conforme a Constituição). Não é possível distorcer ou ignorar o sentido das palavras para chegar a um resultado que delas esteja inteiramente dissociado. Em segundo lugar, os metidos objetivos, como o sistemático e o teleológico, têm preferência sobre o método tido como subjetivo, que é o histórico. A análise histórica desempenha um papel secundário, suplementar na revelação do sentido da norma.

Uma das singularidades das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do texto constitucional é mais vaga, com o emprego de termos polissêmicos (tributos, servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de interesse local, dignidade da pessoa humana). Todavia, a mesma linguagem que confere abertura ao intérprete há de figurar como limite máximo de sua atividade criadora. As palavras têm sentidos mínimos que devem ser respeitados, sob o risco de se perverter o seu papel de transmissoras de idéias e significados.

É a interpretação gramatical ou literal que delimita o espaço dentro o qual se vai operar, embora isso possa significar zonas hermenêuticas muito extensas. Deve-se partir da premissa de que todas as palavras do texto constitucional têm uma função e um sentido próprios. Não há palavras supérfluas na Constituição, nem se deve partir do pressuposto de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má técnica. Eventuais equívocos devem ser remediados com a busca do espírito da norma e o recurso a outros métodos de interpretação. O intérprete deve fiar-se na premissa segundo a qual quando a nova Constituição mantém em algum dispositivo a mesma linguagem da antiga, presume-se que não desejou modificar a interpretação anterior.

A interpretação histórica consiste na busca do sentido da lei através dos precedentes legislativos, dos trabalhos preparatórios e da ocasio legis. Esse esforço retrospectivo para revelar a vontade histórica do legislador pode incluir não só a revelação de suas intenções quando da edição da norma como também a especulação sobre qual seria a sua vontade se ele estivesse ciente dos fatos e idéias contemporâneos. Apesar de desfrutar de certa reputação em países que adotam o common law, o elemento histórico tem sido o menos prestigiado na moderna interpretação levada e efeito nos sistemas jurídicos da tradição romano-germânica.

Uma norma constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco sentido ou mesmo estar em contradição com outra. Não é possível compreender integralmente alguma coisa sem entender suas partes, assim como não é possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão do todo. A visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente.

A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas. No centro do sistema, irradiando-se para todo o ordenamento, encontra-se a Constituição, porque a ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado. A Constituição em si, em sua dimensão interna, constitui um sistema. A idéia de lei fundamental cunha o princípio da unidade da Constituição. A Carta deve ser interpretada de modo harmônico, onde nenhum dispositivo deve ser considerado isoladamente. A convivência harmônica entre a ordem jurídica infraconstitucional e a Constituição gera o princípio da continuidade da ordem jurídica.

As normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao espírito e à sua finalidade. A interpretação teleológica procura revelar o fim da norma, o valor ou o bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito. A ratio legis é uma “força vivente móvel” que anima a disposição e a acompanha em toda a sua vida e desenvolvimento. A finalidade da norma, portanto, não é perene, e pode evoluir sem modificação de seu texto. A Constituição e as leis visam acudir certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada.

Há alguma controvérsia acerca da existência de lacunas constitucionais. Argumenta-se que onde o constituinte foi omisso é porque não quis cuidar da matéria, relegando-a à legislação infraconstitucional. No entanto, admitida a possibilidade da existência de lacuna constitucional, torna-se necessário recorrer aos dois principais meios de integração da ordem jurídica: a analogia e o costume.

Em matéria constitucional, não será possível buscar a integração analógica na legislação infraconstitucional. A solução do vazio normativo deve ser buscada nos princípios da própria Constituição. A analogia constitucional não cria direito nem coloca o intérprete na posição de legislador constituinte. Através dela se vai buscar no sistema constitucional um direito que já existe, em estado latente. Registre-se que não se admite analogia em matéria de direito penal e tributário, em obediência aos princípios constitucionais.

Não se confundem as lacunas (omissões não previstas) com as omisões legislativas (omissões previstas e dependentes de complementação do legislador ordinário). Por fim, deve ainda ser ressaltada a presença do silêncio eloqüente, conforme leciona o Ministro Barbosa Moreira, in verbis:

“Sucede, porém, que só se aplica a analogia quando, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam ‘silêncio eloquente’ (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia”

O costume, ensina a doutrina clássica, é a primeira fonte subsidiária do direito. Nele se destacam dois elementos: o externo ou objetivo, que é o uso, a repetição habitual de um dado comportamento, e o interno ou subjetivo, que é a opinio necessitatis, que se traduz na convicção de que aquele comportamento é necessário e obrigatório. Nos sistemas constitucionais escritos e rígidos, como o brasileiro, o costume não é fonte originária de qualquer norma constitucional. A doutrina aceita, sem maiores reservas, o costume secundum constitutionem e praeter constitutionem, mas rejeita, por inadmissível, o costume constitucional contra constitutionem.

A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação de seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes.

Essa interpretação evolutiva se caracteriza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade, redução das desigualdades etc., que podem assumir significado variados no tempo.

Existem alguns precedentes interessantes de aplicação da interpretação evolutiva da Constituição, pela intervenção criativa dos tribunais. Dentre elas se destaca a doutrina brasileira do habeas corpus, consubstanciada na extensão do instituto a outras situações de ilegalidade e abuso de poder que não aquelas relativas à liberdade de locomoção. Foi igualmente por construção pretoriana que se criaram regras de proteção à mulher, notadamente a que vivia maritalmente com um homem, sem ser casada.

A interpretação evolutiva, sem reforma da Constituição, há de encontrar limites. O primeiro deles é representado pelo próprio texto, pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutos, devem estancar diante de significados mínimos. Além disso, também os princípios fundamentais do sistema são intangíveis, assim como as alterações informais introduzidas pela interpretação não poderão contravir os programas constitucionais.

Fonte: Interpretação e Aplicação da Constituição. Luís Roberto Barroso.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Ih!? Foi mal... - O erro no Direito Penal

Todos nós já ouvimos ou dissemos a frase: “errar é humano”. De fato, o erro é algo que faz parte da vida, até mesmo contribui para o aprendizado. Contudo, quando o erro ocorre em relação a um fato penalmente relevante, o que diz o ordenamento jurídico? Nesse sentido, o Direito Penal divide o erro em duas vertentes: de tipo e de proibição.

Erro de tipo é o que incide sobre as elementares ou circunstâncias da figura típica, sobre os pressupostos de fato de uma causa de justificação ou dados secundários da norma penal incriminadora. É o que faz o sujeito supor a ausência de elemento ou circunstância da figura típica incriminadora ou a presença de requisitos da norma permissiva. Ex: o indivíduo que dispara sua arma de fogo contra um animal e, no entanto, alveja um homem. Não há consciência da conduta e do resultado, bem como do nexo de causalidade. O erro de tipo também pode recair sobre circunstância qualificadora, agravante genérica ou sobre os pressupostos de fato de uma excludente de ilicitude.

Nos termos do artigo 20 do Código Penal, o erro de tipo sempre exclui o dolo, seja evitável ou inevitável. Como o dolo é elemento do tipo, a sua presença exclui a tipicidade do fato doloso, podendo o sujeito vir a responder por crime culposo.

Há delito putativo por erro de tipo quando o sujeito pretende praticar um crime, mas vem a cometer um indiferente penal em face de supor existente uma elementar do tipo (ex. uma mulher que, pretendendo praticar a aborto, ingere substância para tal fim, contudo, a gravidez é inexistente). Distingue-se do erro de tipo porque, no delito putativo por erro de tipo, o agente quer praticar a conduta, mas não consegue diante do erro.

O erro de tipo essencial ocorre quando a falsa percepção impede o sujeito de compreender a natureza criminosa do fato (ex. matar um homem supondo ser um animal). Há erro invencível (escusável ou inculpável) quando não puder ser evitado pela normal diligência; qualquer pessoa, empregando o cuidado ordinário exigido pelo ordenamento jurídico, nas condições que se viu o agente, incidiria no mesmo erro. Por outro lado, ocorre erro vencível (inescusável ou culpável) quando pode ser evitado pela diligência ordinária, resultando da imprudência ou da negligência.

O erro de tipo essencial invencível exclui o dolo e a culpa, pois quando o sujeito incide nesse tipo de erro, não age dolosa ou culposamente. O erro de tipo essencial vencível exclui o dolo, não a culpa, desde que haja a modalidade culposa prevista em lei para o delito.

Erro de tipo permissivo: as discriminantes putativas ocorrem quando o sujeito, levado a erro pelas circunstâncias do caso concreto, supõe agir em face de uma causa excludente de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal, exercício regular de direito).

Tendo em vista que o Código Penal adotou a teoria limitada da culpabilidade, na presença de discriminantes putativas podem ocorrer as seguintes situações: quando o erro incide sobre os pressupostos de fato excludente, trata-se de erro de tipo, aplicando-se o disposto no artigo 20, § 1º do Código Penal (se inevitável, há exclusão do dolo e da culpa; se evitável, fica excluído o dolo, subsistindo o crime culposo, se previsto em lei). Quando o erro do sujeito recai sobre os limites legais (normativos) da causa de justificação, aplicam-se os princípios do erro de proibição (se inevitável, há exclusão da culpabilidade; se evitável, subsiste o crime doloso, com atenuação da pena).

Admite-se, também, a existência de causas excludentes de culpabilidade (inculpabilidade) putativas, que são, entre outras, a coação moral irresistível putativa e a obediência hierárquica putativa.

Quando o sujeito é induzido a erro por terceiro, estamos diante do erro provocado, cuja determinação pode ser dolosa (se preordenada, caso em que o provocador responde pelo crime a título de dolo) ou culposa (se o terceiro agir com imprudência, negligência ou imperícia, caso em que responde pelo delito a título de culpa). Nesse tipo de erro, quanto ao provocado: em se tratando de erro invencível, não responde pelo crime cometido; tratando-se de erro vencível, subsiste a modalidade culposa, se prevista. Cumpre registrar que não há participação culposa em crime doloso.

Erro de tipo acidental é o que não versa sobre os elementos ou circunstâncias do crime, incidindo sobre dados acidentais do delito ou sobre a conduta de sua execução. Não impede o sujeito de compreender o caráter ilícito de seu comportamento. Mesmo que não existisse, ainda assim a conduta seria antijurídica. O sujeito age com consciência do fato, enganando-se a respeito de um dado não essencial ao delito ou quanto à maneira de sua execução. O erro acidental não exclui o dolo. São casos de erro acidental:

- erro sobre o objeto (errror in objecto): ocorre quando o sujeito supõe que sua conduta recai sobre determinada coisa, sendo que, na realidade, incide sobre outra. O erro é irrelevante, pois a tutela penal abrange a posse e a propriedade de qualquer coisa e não de objetos determinados;

- erro sobre a pessoa (error in persona): aqui há erro de representação, em face do qual o sujeito atinge uma pessoa supondo tratar-se daquela que pretendia ofender. Ocorre um desvio na relação representada pelo agente entre a conduta e o resultado. O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não exclui o crime, logo, não isenta a pena (artigo 20, § 3º do Código Penal). Aqui, não devem ser considerados os dados da vítima efetiva, mas sim aquelas aplicáveis à vítima virtual (a que o agente pretendia ofender). Assim, se o indivíduo pretendia cometer um homicídio contra seu pai, mas atinge a um amigo, a agravante deverá incidir.

- erro na execução (aberratio ictus): significa aberração no ataque ou desvio de golpe. Ocorre quando o sujeito, pretendendo atingir uma pessoa, vem a ofender outra. Há disparidade entre a relação de causalidade prevista pelo agente e o nexo causal realmente produzido. A aberratio ictus não exclui a tipicidade do fato. Difere do erro sobre a pessoa pelo fato de que, neste, não há concordância entre a realidade do fato e a representação ao agente (ele supõe tratar-se de uma pessoa quando se cuida de outra). Na aberratio ictus a pessoa visada pelo agente sofre perigo de dano. Assim, o erro sobre a pessoa e a aberratio ictus podem concorrer. Cabe ressaltar que existem duas formas de aberratio ictus: com unidade simples (com resultado único) ou com unidade complexa (resultado duplo).

Quando há erro na execução com resultado único, duas teorias procurar solucionar a questão (ex. de agente que atira em direção à vítima virtual e atinge outra pessoa):

a) se há morte da vítima efetiva, existem dois crimes: tentativa de homicídio em relação à vítima virtual e homicídio culposo em relação à vítima efetiva;

b) vê na aberratio ictus com unidade de resultado um só delito (tentado ou consumado). É a corrente adotada pelo Código Penal e podem ocorrer duas hipóteses: a vítima efetiva sofre lesão corporal – o agente responde por tentativa de homicídio e a lesão corporal culposa sofrida pela vítima efetiva fica absorvida pela tentativa de homicídio; a vítima efetiva vem a falecer – considera a existência apenas do homicídio doloso, conforme se depreende do artigo 73 do Código Penal.

Por outro lado, quando há duplicidade de resultado, é aplicada a regra do concurso formal de crimes, ou seja, incide a pena do delito mais grave, acrescida de um terço a um sexto. No entanto, se a conduta resulta de desígnios autônomos, é aplicável a segunda parte do artigo 73 do Código Penal, logo, as penas serão somadas.

Vale ressaltar que, de acordo com o caso concreto, pode o sujeito não ter agido com dolo ou culpa em relação ao terceiro. Nesse caso, o resultado produzido na vítima efetiva não pode ser imputado ao agente. Ele responde pelo delito praticado em relação à vítima virtual, pois entender a questão de modo diverso levaria a aplicação da responsabilidade penal objetiva.

- resultado diverso do pretendido (aberratio criminis/aberratio delicti): significa desvio do crime. Há erro de execução do tipo a persona in rem (o agente quer atingir uma pessoa e ofende outra ou ambas) ou a re in personam (o indivíduo quer atingir a um bem jurídico e ofende outro de espécie diversa). Ocorrendo o resultado diverso do pretendido, responde o agente por culpa (se houver previsão legal); caso ocorra igualmente o resultado querido pelo agente, aplica-se a regra do concurso formal. Assim, na aberratio criminis o Código Penal manda que o resultado diverso do pretendido seja punido a título de culpa, se presentes os pressupostos legais. No caso de duplicidade de resultado pode o sujeito ter agido com dolo direto em relação a um e dolo eventual no tocante ao outro e, em face da produção de dois resultados, responderá por dois crimes, uma vez que resultam de desígnios autônomos (aplica-se a segunda parte do artigo 70, caput do Código Penal).

Conhecer a totalidade das leis vigentes em nosso ordenamento jurídico é uma tarefa hercúlea, quiçá impossível. Não obstante a isso, permanece em pleno vigor o artigo 3º da LICC, o qual dispõe que ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece. Assim, é aplicável o dogma ignorantia legis e neminem excusat, conforme preceitua do artigo 21, caput do Código Penal, segundo o qual o desconhecimento da lei é inescusável.

Os dispositivos legais acima citados não se confundem com a falta de consciência da ilicitude do fato. A impossibilidade de o sujeito conhecer a regra de proibição exclui a culpabilidade.

Erro de proibição: incide sobre a ilicitude do fato. O sujeito, diante do erro, supõe lícito o fato por ele cometido. Ele acredita inexistir a regra de proibição.

O erro de proibição escusável ou inevitável ocorre quando nele incidiria qualquer homem prudente e de discernimento. Já o inescusável ou evitável é se faz presente quando o sujeito incide por falta de cuidado objetivo.

O erro de proibição difere do erro de tipo pelo fato de incidir sobre a ilicitude do fato. O dolo subsiste. A culpabilidade, quando o erro é escusável, fica excluída (o agente é absolvido); quando inescusável, atenuada, reduzindo-se a pena de um sexto a um terço, nos termo do artigo 21, caput do Código Penal.

O erro de proibição ocorre: a) na presença de erro ou ignorância de direito (o sujeito não conhece a norma jurídica ou não a conhece bem e a interpreta mal – erro de proibição direto); b) quando da suposição errônea de causa de exclusão de ilicitude não reconhecida juridicamente (erro indireto); c) discriminantes putativas (o sujeito supõe erradamente que ocorre a uma causa excludente de ilicitude – erro indireto).

Não se pode olvidar que a ignorância indica a ausência absoluta de conhecimento a respeito de determinada matéria. O erro implica no conhecimento acerca de certa matéria, que se supõe verdadeiro quando é falso. O erro de direito (ignorância de direito) pode ser inescusável/evitável (atenua responsabilidade, reduzindo a pena) ou escusável/inevitável (exclui a culpabilidade). Há delito putativo por erro de direito quando o sujeito supõe estar praticando um crime, porém não há norma incriminadora definindo o fato.

Se a má interpretação versar sobre norma extrapenal haverá erro de direito. No entanto, se o erro incidir sobre o fato constitutivo da matéria extrapenal, ocorrerá o erro de tipo (primeira parte do artigo 20, caput do Código Penal), excludente do dolo e, em conseqüência, da tipicidade do fato.

A suposição de causa excludente da ilicitude é caso de erro de proibição, excludente da culpabilidade, quando inevitável; atenuador da pena, quando evitável.

Fonte: Direito Penal – Volume I. Damásio Evangelista de Jesus.

sábado, 25 de julho de 2009

Obrigação tributária - considerações

Pagar tributo é algo que ninguém gosta, contudo, é um mal necessário. Sem a participação da sociedade no financiamento da atividade do Poder Público, a vida do próprio Estado estaria comprometida. Quantas vezes não almejamos serviços públicos de qualidade? A irresginação com os sistemas de saúde, educação e segurança ecoam em toda sociedade e, somente através da atividade tributária, o Estado encontra os meios necessários para satisfazer aos anseios da população. O brasileiro suporta uma enorme cara tributária, contudo, a aplicação dos recursos auferidos da atividade tributária é tema de foge a nosso propósito. Limitamo-nos a analisar a obrigação tributária.

A relação tributária, como qualquer relação jurídica, surge da ocorrência de um fato previsto em lei em sentido estrito (salvo no caso de obrigação acessória) como capaz de produzir esse efeito. A lei descreve um fato e atribui a ele o efeito de criar uma relação entre alguém e o Estado. Ocorrido o fato, que em Direito Tributário denomina-se fato gerador (fato imponível), nasce a relação tributária. Esta compreende o dever de alguém (sujeito passivo da obrigação) e o direito do Estado (sujeito ativo). O dever e o direito são efeitos de incidência da norma.

O objeto da obrigação tributária principal é a prestação à qual se obriga o sujeito passivo e possui natureza patrimonial (obrigação de dar). É sempre uma quantia em dinheiro. No caso da obrigação acessória, seu objeto sempre não será de ordem patrimonial e sim uma obrigação de fazer.

A obrigação é um primeiro momento da relação tributária, seu conteúdo ainda não é determinado e o seu sujeito passivo não está formalmente identificado e, por isso, a prestação respectiva ainda não é exigível. O crédito tributário é um segundo momento da relação de tributação, ele decorre da obrigação principal e tem a mesma natureza desta (artigo 139 do CTN); surge com o lançamento, que confere à relação tributária liquidez e certeza.

Obrigação tributária é a relação jurídica em virtude da qual o particular (sujeito passivo) tem o dever de prestar dinheiro ao Estado (sujeito ativo), ou de fazer, não fazer ou tolerar algo no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos, e o Estado tem o direito de constituir contra o particular um crédito.

A obrigação acessória é instituída pela legislação (em sentido amplo), pela simples inobservância, converte-se em obrigação principal relativamente à penalidade pecuniária (artigo 113, § 3º do CTN). O inadimplemento de uma obrigação tributária é uma “não prestação” da qual decorre uma sanção. Em Direito Tributário, as obrigações acessórias só existem em função das principais, embora não haja necessariamente um liame entre ambas. Todo o conjunto de obrigações acessórias existe para viabilizar o cumprimento das principais.

A obrigação tributária é uma obrigação legal por excelência. Surge diretamente da lei, sem que a vontade interfira com o seu nascimento. Suas fontes são a lei (fonte formal) e o fato gerador (fonte material), ambas são indispensáveis. Pode-se dizer que a obrigação principal, oriunda do inadimplemento de outra (principal ou acessória), é obrigação decorrente de ato ilícito.

Nos termos do artigo 114 do CTN, fato gerador da obrigação principal é a situação definida em lei como necessária e suficiente à sua ocorrência. Há de ser sempre considerado como fato, ainda que se trate de um ato jurídico, no sentido dessa expressão cunhada no Direito Civil.

O fato gerador da obrigação acessória é qualquer situação que, na forma da legislação aplicável, impõe a prática ou a abstenção de ato que não configure obrigação principal (artigo 115 do CTN). Registre-se que uma determinada situação de fato pode ser, ao mesmo tempo, fato gerador de uma obrigação tributária principal e de uma acessória (v. g. dever de pagar ICMS e emitir nota fiscal).

É importante fazer uma distinção entre a expressão hipótese de incidência – que designa com maior propriedade a descrição contida na lei, da situação necessária e suficiente ao nascimento da obrigação tributária – do fato gerador, que é a concretização da hipótese.

Podemos assegurar que o Fisco é “muito liberal”, pois a ilicitude do ato praticado nada tem a ver com a relação tributária, logo, é indispensável estabelecer-se uma diferença entre o ato ilícito como elemento da hipótese de incidência do tributo e a ilicitude que eventualmente pode verificar-se na ocorrência do fato gerador. Exemplificando: manter uma casa de prostituição é ilegal, contudo a renda auferida pelo exercício dessa atividade será tributada.

O que não se pode admitir é tributo cuja hipótese de incidência seja algo ilegal. Eventualmente a ilicitude pode estar presente no fato gerador, entretanto, sua presença não é necessária para a concretização da hipótese de incidência. Para fins tributários, a circunstância ilícita é inteiramente relevante. Assim, não se podem aceitar opiniões no sentido de que há incidência de tributo em atos juridicamente inválidos. Ao Direito Tributário não importa a validade jurídica, mas a efetividade e a subsistência dos fatos, de sorte que se o próprio fato, em sua consistência econômica deixa de existir, não subsiste a relação tributária.

Para o contribuinte é importante ter ciência de quando se considera consumado o fato gerador do tributo. Sob este aspecto, o Código Tributário Nacional estabelece regras definidoras do momento, mas deixa livre o legislador ordinário para dispor de modo diferente. A lei não pode estabelecer que o fato gerador considere-se consumado antes de estar realmente presente a situação prevista na hipótese de incidência.

Não dispondo a lei de modo diferente, considera-se ocorrido o fato gerador e existentes os seus feitos: a) em se tratando de situação de fato, desde o momento em que se verifiquem as circunstâncias materiais necessárias que se produzam os efeitos geralmente ou ordinariamente, delas decorrentes; b) em se tratando de situação jurídica, desde o momento em que ela esteja definitivamente constituída, ns termos do direito aplicável. Se a hipótese de incidência do tributo é uma prestação de serviços de qualquer natureza, pode-se dizer eu se tem uma situação de fato. Se for a propriedade de um bem imóvel, pode-se dizer que se tem uma situação jurídica. Repise-se: o tributo somente será devido quando consumado o fato sobre o qual incide a norma de tributação, ou seja, quando concretizada a hipótese de incidência.

Como forma de conferir maior efetividade à atividade tributária, foi incluído o parágrafo único ao artigo 116 do CTN para autorizar à autoridade administrativa a desconsideração de atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza os elementos constitutivos da obrigação tributária, observando-se os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. Consubstanciou-se, portanto, a norma geral antielisão. Verifica-se certa divergência doutrinária em relação à nomenclatura, pois alguns doutrinadores preferem utilizar a expressão “evasão” para designar a forma lícita de fugir ao tributo e a palavra “elisão” para designar a forma ilícita de se praticar a mesma fuga.

A norma geral antielisão nada mais é que um reforço aos poderes da administração tributária. Colocada como está, em texto de lei complementar, pode ter sua constitucionalidade contestada, pois colide com o princípio da legalidade que tem como desdobramentos essenciais a tipicidade. Vale dizer, a exigência de definição, em lei, da situação específica cuja concretização faz nascer o dever de pagar tributo. Em uma posição mais extrema, pode-se argumentar que, mesmo em nível constitucional, a norma geral antielisão pode considerada ampliação da competência tributária, capaz de amofinar o princípio da legalidade, de modo que se chocaria com o disposto no artigo 60, § 4º, inciso IV da Constituição Federal – cláusula pétrea.

Se alguém realizou a hipótese de incidência tributária mediante um fato circunstancialmente ilícito, nasce e subsiste a relação obrigacional tributária da medida que em perdurar aquele fato no mundo econômico. Se o fato não subsistir, não subsistirão os seus efeitos tributários. Exemplificando: se alguém importa mercadoria proibida, mas a operação é consumada, constatado o fato, é devido o imposto de importação, pois na hipótese de incidência não está a ilicitude como elemento. Outrossim, se a importação de mercadoria proibida foi consumada sob o amparo de medida judicial, não se pode falar em conduta ilícita. Se ocorrer a reforma ou reconsideração da medida judicial, não há transmudação para fato ilícito. A insubsistência da medida judicial, com retorno das partes ao status quo ante, impõe à Administração o dever de restituir o imposto, salvo se não ocorrer o desfazimento da importação no prazo concedida, hipótese em que o perdimento é autorizado ante a configuração de fato ilícito.

A insubsistência de fato tributável, com a completa supressão de seus efeitos econômicos, implica na impossibilidade de exigência do tributo, porque leva ao desaparecimento do suporte fático de incidência da norma de tributação, que é o signo presuntivo de capacidade contributiva. Assim, do ponto de vista da lógica jurídica formal, não se pode mais falar de obrigação tributária, à mingua de fato gerador respectivo. Do ponto de vista axiológico não se pode falar de capacidade contributiva, que desaparece com o perdimento da riqueza sobre a qual incidiria o tributo.

A obrigação tributária pressupõe a existência de um sujeito ativo, titular da competência para exigir o adimplemento da obrigação. Insta, por oportuno, distinguir a competência para instituir o tributo, que decorre da Constituição Federal e é indelegável, da competência para exigi-lo na condição de sujeito ativo, atribuição esta que pode decorrer da lei.

É certo que uma pessoa jurídica de direito privado pode receber a atribuição para arrecadar um tributo. Pode até ser destinatária do produto de sua arrecadação. Mesmo assim ela não poderá ser qualificada como sujeito ativo da obrigação tributária, por lhe faltar competência para exigir o seu cumprimento, no sentido em que esse exigir está empregado no artigo 119 do CTN.

Assim, por titular da competência para exigir o cumprimento da obrigação tributária, entendemos a pessoa jurídica que tem condições de constituir o crédito, inscrevê-lo em Dívida Ativa e promover a execução fiscal correspondente. Diante disso, certamente não podemos colocar nessa condição a pessoa jurídica de direito privado, nem a pessoa natural – tais pessoas podem receber a atribuição de arrecadar o tributo.

A Constituição atribui às pessoas jurídicas de direito público competência para instituir tributos (competência tributária própria) e quem a tem pode instituir e arrecadá-lo, praticando todos os atos necessários, desde a edição da lei até os atos materiais de cobrança. É a essa competência tributária a que se refere o Código Tributário Nacional ao estabelecer que ela compreende a competência legislativa plena (artigo 6º do CTN). Só as pessoas jurídicas de direito público, dotadas de Poder Legislativo, são titulares da competência tributária própria.

Pode ocorrer que a lei institua um tributo e atribua uma autarquia a titularidade da competência para a respectiva administração e arrecadação (ex. contribuições especiais). Cuida-se, neste caso, de competência tributária delegada, que não inclui a competência legislativa. Se considerarmos tributos as contribuições de seguridade social, teremos uma espécie de competência tributária própria da qual é titular de pessoa jurídica não dotada de competência legislativa plena. A autarquia previdenciária tem competência para edição de normas complementares, que integram a legislação tributária, mas não normas infralegais. Às pessoas jurídicas de direito privado (ex. bancos) podem apenas ser atribuídas as funções ou encargos de arrecadar, o que não constitui delegação de competência tributária, nos termos do artigo 7º, § 3º do CTN.

Na outra extremidade da obrigação tributária, temos aqueles fadados à observância das normas, ou seja, o sujeito passivo – literalmente, porquanto o poder de império do Fisco, via de regra, exige o cumprimento do dever para depois, se caso, questioná-lo. Conforme a sua relação com um fato gerador da obrigação, pode o sujeito passivo da obrigação ser: a) contribuinte, quando tenha relação direta com a situação que constitua o respectivo fato gerador – sujeito passivo direto; b) responsável, quando, sem ser contribuinte sua obrigação de pagar decorre de dispositivo expresso em lei – sujeito passivo indireto.

A vinculação do sujeito passivo indireto pode dar-se por transferência ou por substituição. Ocorre a transferência quando existe legalmente o sujeito passivo direto e mesmo assim o legislador, sem ignorá-lo, atribui também a outrem o dever de pagar o tributo, tendo em vista eventos posteriores ao surgimento da obrigação tributária. Já a substituição ocorre quando o legislador, ao definir a hipótese de incidência, coloca desde logo como sujeito passivo da relação tributária que surgirá de sua ocorrência alguém que está a ela diretamente relacionado, embora o fato seja indicador de capacidade contributiva de outros, aos quais, em princípio, poderia ser atribuído o dever de pagar, e que, por suportarem o ônus financeiro do tributo, são chamados de contribuintes de fato.

O substituto legal tributário pode ter ou não o direito de transferir ao contribuinte de fato o ônus do tributo. Como o princípio da capacidade contributiva foi adotado pela Constituição Federal (artigo 145, §1º), a outorga desse direito de desembolso é necessária à validade jurídica da substituição, especialmente nos casos em que o substituto não tenha efetiva capacidade contributiva.

Questão que reiteradamente chega ao Poder Judiciário diz respeito às convenções particulares relativas à pagamento de tributos, como, por exemplo aquela à quitação do IPTU pelo locatário. Sem discutir a justiça ou não da medida, tais convenções particulares não podem ser opostas à Fazenda Pública para modificar a definição legal do sujeito passivo.

As convenções são juridicamente válidas entre as partes contratantes, contudo, nenhum efeito produz contra o Fisco, no que diz respeito à responsabilidade tributária. Vale ressaltar aquele que assumiu a responsabilidade pelo pagamento tributo, em virtude de contrato com o sujeito passivo, não tem direito de defesa no processo administrativo de constituição e exigência do crédito tributário. Por outro lado, o responsável contratual, em face do legítimo interesse de que é titular, pode questionar judicialmente a exigência do tributo, seja preventivamente (ação declaratória) ou posteriormente (ação anulatória do lançamento respectivo). A impetração de mandado de segurança depende de prévia notificação do sujeito passivo.

Assim como no Direito Civil, em matéria tributária a lei pode prever a existência de mais de um responsável pelo pagamento do tributo. Dessa forma, respondem solidariamente as pessoas que tenham interesse comum na situação que constitua o fato gerador da obrigação principal e as expressamente designadas por lei (artigo 124, incisos I e II do CTN). O interesse em comum que constitua o fato gerador da obrigação, cuja presença cria a solidariedade, não é um interesse meramente de fato, e sim um interesse jurídico (ex. o existente entre os cônjuges). A solidariedade tributária não comporta o benefício de ordem (artigo 124, parágrafo único do CTN), logo, as dívidas tributárias podem ser cobradas de qualquer dos sujeitos passivos, salvo disposição legal em sentido contrário.

Não dispondo a lei de modo diverso, nas obrigações que existirem obrigados solidários o pagamento de um aproveita aos demais; a isenção ou remissão do crédito tributário respectivo exonera todos os obrigados, a não ser que tenha sido outorgada a um deles em caráter pessoal, subsistindo, entretanto, a solidariedade em relação aos demais, pelo saldo; a interrupção da prescrição, em favor ou contra um dos obrigados, favorece ou prejudica aos demais (artigo 125 do CTN).

Como dito antes, o Direito Tributário é um dos, quiçá o mais, dinâmico ramo da ciência jurídica, pois não está atrelado ao formalismo de outras vertentes. Nesse A capacidade tributária independe da civil. Mesmo sendo juridicamente incapaz, em face do Direito Tributário o indivíduo tem plena capacidade jurídica (artigo 126, inciso I do CTN). Também não afetam a capacidade jurídica do sujeito passivo da obrigação tributária as medidas que importem em privação ou limitação do exercício de atividades civis, comerciais, profissionais ou da administração de bens (artigo 126, inciso II do CTN). Uma sociedade comercial, mesmo de fato ou irregular, desde que configure uma unidade econômica ou profissional pode ser sujeito passivo (artigo 126, inciso III do CTN). A independência da capacidade é explicada existe porque a obrigação tributária prescinde do elemento volitivo em sua gênese. Nasce dos elementos lei e fato objetivamente considerado, fato jurídico em sentido estrito, onde a vontade é inteiramente relevante. Ao revés, nos atos jurídicos em geral, a vontade é elemento essencial e por isso a lei exige para a validade destes atos o agente capaz.

Em princípio o contribuinte pode escolher seu domicílio tributário. Em se tratando de pessoa natural, se não houver escolha, será o local de sua residência habitual ou, sendo esta incerta e desconhecida, o lugar considerando com centro corriqueiro de sua atividade (artigo 127, inciso I do CTN).

Quanto à pessoa jurídica de direito privado, o domicílio tributário será o local da respectiva sede ou, ainda, em relação a atos e fatos que deram origem à obrigação, o lugar de cada estabelecimento (artigo 127, inciso II do CTN). Se a pessoa jurídica tem vários estabelecimentos, devem ser observadas as seguintes regras: a escolha não pode recair em local fora do território da entidade tributante; no que se refere a tributos cujo fato gerador se verifica em relação a cada estabelecimento (ex. ICMS), a legislação específica geralmente exclui a possibilidade de escolha, determinando que o domicílio tributário seja o local da sede de cada estabelecimento, o qual é considerado um contribuinte isolado; quanto aos tributos dos quais o fato gerador é apurado em relação à sociedade comercial em sua totalidade (ex. imposto de renda) prevalece a liberdade de escolha, com as limitações impostas pela norma tributária. O domicílio tributário das pessoas jurídicas de direito público será qualquer de suas repartições no território da entidade tributante (art. 127, inciso III do CTN).

As limitações ao domicílio tributário determinam que a liberdade de escolha não pode ser usada para impedir ou dificultar a arrecadação ou fiscalização do tributo, caso em que poderá ser recusado o domicílio escolhido. Ocorrendo a rejeição, o domicílio será o lugar da situação dos bens ou da ocorrência dos atos ou fatos que deram origem à obrigação.

Fonte: Curso de Direito Tributário. Hugo de Brito Machado.