quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Uma breve introdução ao "Direito das Famílias"

A família é uma construção social organizada através de regras culturalmente elaboradas que conformam modelos de comportamento. Dispõe de estruturação psíquica na qual todos ocupam um lugar, possuem uma função. O intervencionismo estatal levou à instituição do casamento: convenção social para organizar os vínculos interpessoais. A própria organização da sociedade dá-se em torno da estrutura familiar, e não em torno de grupos ou indivíduos em si mesmos.

Em uma sociedade conservadora, os vínculos afetivos, para merecerem aceitação social e reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio. A família tinha uma formação extensiva, verdadeira comunidade rural, integrada por todos os parentes, formando unidade de produção, com amplo incentivo à procriação. Sendo entidade patrimonializada, seus membros eram força de trabalho.

Esse quadro não resistiu à revolução industrial, que fez aumentar a necessidade de mão de obra, principalmente terciárias. Assim a mulher ingressou no mercado de trabalho, deixando o homem de ser a única fonte de subsistência da família, que se tornou nuclear, restrita ao casal e sua prole. Existe uma nova concepção de família, formada por laços afetivos de carinho, de amor. A valorização do afeto nas relações familiares não se cinge apenas ao momento da celebração do casamento, devendo perdurar por toda a relação. Disso resulta que, cessado o afeto, está ruída a base de sustentação da família, e a dissolução do vínculo é o único modo de garantir a dignidade da pessoa humana.

A expressão “Direito das Famílias” melhor atende à necessidade de passar-se, cada vez mais, a enlaçar, no âmbito da proteção às famílias, todas as famílias, sem discriminação, sem preconceitos. A interferência estatal nos elos de afetividade é que leva o legislador a dedicar um ramo do Direito à família.

A família é o primeiro agente socializador do ser humano. De há muito deixou de ser uma célula do Estado, e é hoje encarada como uma célula da sociedade. É cantada e decantada como base da sociedade e, por essa razão, recebe especial proteção do Estado. A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que a família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem como direito a proteção da sociedade e do Estado. A família é tanto uma estrutura pública como relação privada, pois identifica o indivíduo como integrante do vínculo familiar e também como partícipe do contexto social.

O formato hierárquico da família cedeu lugar à sua democratização, e as relações são muito mais de igualdade e de respeito mútuo. O traço fundamental é a lealdade.

No que concerne à natureza, é imperioso reconhecer que o Direito das Famílias, ainda que tenha características peculiares e alguma proximidade com o direito público, tal não lhe retira o caráter privado, não se podendo dizer que se trata de direito público. Aliás, a tendência é reduzir o intervencionismo do Estado nas relações interpessoais.

O Direito das Famílias – por estar voltado à tutela das pessoas – é personalíssimo, adere indelevelmente à personalidade da pessoal em virtude de sua posição na família durante toda a vida. Em sua maioria, é composto de direitos intransmissíveis, irrevogáveis, irrenunciáveis e indisponíveis.

Tradicionalmente, o Direito das Famílias é identificado a partir de três grandes eixos temáticos: a) direito matrimonial – cuida do casamento, sua celebração, efeitos, anulação, regime de bens, além de sua dissolução, pela separação e pelo divórcio; b) direito parental – volta-se para a filiação, adoção e relações de parentesco; c) direito protetivo ou assistencial – inclui poder familiar, alimentos, tutela e curatela.

Os direitos patrimoniais da família, embora não fiquem imunes às características peculiares da matéria familiar, são direitos reais e obrigacionais. O direito pessoal de família traz a noção de poder-função ou direito-dever, na qual ocorre a dissociação entre titularidade do poder e titularidade do interesse. O exemplo clássico do poder familiar, em que o titular do interesse é o filho, sendo o genitor titular do dever. Essa dicotomia é que leva ao conceito de direito subjetivo da família com características funcionalista, ou seja, o titular do direito subjetivo é obrigado a exercê-lo, pelo interesse a que serve, pela função do direito que atende a interesse de outrem. Assim, o direito subjetivo da família não se destina exclusivamente a conceder direitos, mas atribui deveres. No entanto, o direito pessoal de família também serve ao interesse de seu titular. O poder familiar, por exemplo, não é exercido no interesse do filho, mas atende também à necessidade psicológica dos pais.

A vastidão de mudanças de estruturas políticas, econômicas e sociais produziu reflexos nas relações jurídico-familiares. Os ideais de pluralismo, solidarismo, democracia, igualdade, liberdade e humanismo voltarem-se à proteção da pessoa humana. A família adquiriu função instrumental para melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes.

O alargamento conceitual das relações interpessoais acabou deitando reflexos na conformação da família, que não possui mais um significado singular. A mudança da sociedade e a evolução dos costumes levaram a uma verdadeira reconfiguração, quer da conjugalidade, quer da parentalidade. Assim, expressões como ilegítima, espúria, adulterina, informal, impura estão banidas do vocabulário jurídico. Não podem ser utilizadas, nem com referência às relações afetivas, nem aos vínculos parentais. Seja em relação à família, seja no que diz respeito aos filhos, não se admite qualquer adjetivação.

A Constituição Federal, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de reconhecer a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de família e emprestou especial proteção à união estável e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes, que começou a ser chamada de família monoparental.

Agora, o que identifica a família não é nem a celebração do casamento nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns, gerando comprometimento mútuo.

Faz-se necessário ter uma visão pluralista da família, abrigando os mais diversos arranjos familiares, devendo se buscar a identificação dos elementos que permitiam enlaçar no conceito de entidade familiar todos os relacionamentos que têm origem em um elo de afetividade, independentemente de sua conformação. A família é um grupo social fundado essencialmente nos laços de afetividade após o desaparecimento da família patriarcal, que desempenhava funções procriativas, econômicas, religiosas e políticas.

A Lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340/2006), que busca coibir a violência contra a mulher, identifica como família qualquer relação de afeto. O novo modelo de família funda-se sobre os pilares da repersonalização, da afetividade, da pluralidade e do eudonismo, impingindo nova roupagem ao Direito de Família.

- Matrimonial

O Estado solenizou o casamento como uma instituição e o regulamentou exaustivamente. Os vínculos interpessoais passaram a necessitar da chancela estatal. É o Estado que celebra o matrimônio mediante o atendimento de inúmeras formalidades. Reproduziu o legislador de 1916 o perfil da família então existente: matrimonializada, patriarcal, hierarquizada, patrimonializada e heterossexual. Só era reconhecida a família instituída pelo casamento.

Até a entrada em vigor da nova Constituição, o casamento era a única forma admissível de formação da família. Foi o constituinte de 1988 quem emprestou especial proteção a entidades familiares outras. Esse prestígio à família atende aos interesses do Estado, pois delega a ela a formação de seus cidadãos, tarefa que acaba quase sempre onerando exclusivamente a mulher. Há um certo descomprometimento, tanto do homem quanto as entidades públicas e entes governamentais, em assumir o encargo de formar e educar crianças e jovens, único meio de assegurar o futuro da sociedade. Por isso é que a Constituição consagra em seu artigo 226 que a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

Diante da quantidade de exigências para celebração do casamento, de pouco ou quase nada vale a vontade dos nubentes. Os direitos e deveres são impostos para vigorarem durante sua vigência e até depois de sua dissolução, pelo divórcio e até pela morte. Assim, quase se poderia chamar o casamento de verdadeiro contrato de adesão.

- Informal

A lei emprestava juridicidade apenas à família constituída pelo casamento, vedado quaisquer direitos às relações adulterinas ou concubinárias. Apenas a família dita legítima existia juridicamente. Assim, os filhos chamados de ilegítimos, naturais, espúrios, bastardos nenhum direito possuíam, sendo condenados à invisibilidade. Não poderia sequer pleitear o reconhecimento enquanto o genitor fosse casado.

Quando do rompimento dessas uniões, seus partícipes começaram a bater às portas do Judiciário. Viram-se os Juízes forçados a criar alternativas para evitar flagrantes injustiças, tendo sido cunhada a expressão “companheira”, como forma de contornar as proibições para o reconhecimento dos direitos bandidos pela lei à concubina. Porém, tal era a rejeição à idéia de ver essas uniões como família que a jurisprudência, quando ausente patrimônio a ser partilhado, as identificava como relações de trabalho, concedendo à mulher indenização por serviços domésticos prestados, as uniões eram consideradas sociedades de fato.

Essas estruturas familiares, ainda que rejeitadas pela lei, acabaram aceitas pela sociedade, fazendo com que a Constituição albergasse no conceito de entidade familiar o que chamou de união estável, mediante a recomendação de promover sua conversão em casamento, norma que é a mais inútil das inutilidades. A legislação infraconstitucional que veio regular essa nova espécie de família acabou praticamente copiando o modelo oficial do casamento. Igualmente, o Código Civil impõe requisitos para o reconhecimento da união estável, gera deveres e cria direitos aos conviventes. Assegura alimentos, estabelece o regime de bens e garante direitos sucessórios. Aqui também pouco resta à vontade do par, cabendo afirmar que a união estável transformou-se em “casamento por usucapião”, ou seja, o decurso de prazo confere o estado de casado.

- Homoafetiva

Por absoluto preconceito, a Constituição emprestou, de modo expresso, juridicidade somente às uniões estáveis entre um homem e uma mulher, ainda que em nada se diferencie a convivência homossexual da união estável heterossexual. São cada vez mais freqüentes decisões judiciais que atribuem conseqüências jurídicas a essas relações. Como ainda o tema é permeado de preconceitos, predomina a tendência jurisprudencial de visualizar tais vínculos como mera sociedade de fato. Tratados como sócios, aos parceiros somente é assegurada a divisão dos bens amealhados durante o período de convívio de forma proporcional à efetiva participação na aquisição.

Importante destacar que a Lei Maria da Penha ressalva a orientação sexual de quem se sujeita à violência doméstica. Como a lei veio proteger a mulher vítima de violência doméstica e familiar, definiu família e albergou no seu conceito as uniões homoafetivas.

- Monoparental

O enlaçamento dos vínculos familiares constituídos por um dos genitores com seus filhos, no âmbito especial proteção do Estado, atende a uma realidade que precisa ser arrostada. Tais entidades familiares receberam em sede doutrinária o nome de família monoparental, como forma de ressaltar a presença de somente um dos pais na titularidade do vínculo familiar.

- Anaparental

A convivência entre parentes ou entre pessoais, ainda que não parentes, dentro de um estruturação com identidade de propósito, impõe o reconhecimento da existência de entidade familiar batizada com o nome de família anaparental. A convivência sob o mesmo teto, durante longos anos, por exemplo, de duas irmãs que conjugam esforços para a formação do acervo patrimonial constitui uma entidade familiar. Ainda que inexista qualquer conotação de ordem sexual, a convivência identifica comunhão de esforços, cabendo aplicar, por analogia, as disposições que tratam do casamento e da união estável.

- Pluriparental

Agora surge a expressão famílias pluriparentais ou mosaico, que resultam da pluralidade das relações parentais, especialmente fomentadas pelo divórcio, pela separação, pelo recasamento, seguidos das famílias não-matrimoniais e das desuniões. A multiplicidade de vínculos, a ambigüidade dos compromissos e a interdependência caracterizarem a família mosaico, conduzem para melhor compreensão desta modelagem. No entanto, nestas novas famílias, a tendência é considerar, ainda, como monoparental o vínculo do genitor com seu filho, até porque o novo casamento dos pais não importa em restrições aos direitos e deveres com relação aos filhos.

Admite a lei possibilidade da adoção pelo companheiro do cônjuge do genitor, que recebe o nome de adoção unilateral, mas é indispensável a concordância do pai registral o que, praticamente, inviabiliza, esta possibilidade.

Não é reconhecido ao filho do cônjuge ou companheiro o direito a alimentos, ainda que comprovada a existência de vínculo afetivo entre ambos, e mesmo que tenha ele assegurado sua mantença durante o período em que conviveu com seu genitor. O que timidamente vem sendo admitido, em nome do princípio da solidariedade, é o direito de visitas. Também já há decisões reconhecendo a possibilidade de o enteado agregar o nome do padrasto, o que, no entanto, não gera a exclusão do poder familiar do genitor.

- Paralela

A doutrina ainda distingue ligações afetivas livres, eventuais, transitórias e adulterinas com o fim de afastar a identificação da união como estável e, assim, negar-lhe qualquer conseqüência. São consideradas relações desprovidas de efeitos positivos na esfera jurídica. Somente na hipótese de a mulher alegar desconhecimento da duplicidade de vidas do varão é que tais vínculos são alocados no direito obrigacional e lá tratados como sociedades de fato.

Quando finda a relação, comprovada a concomitância com um casamento, impositiva a divisão do patrimônio acrescido durante o período de mantença do dúplice vínculo. É necessária a preservação da meação da esposa, que se transforma em bem reservado, ou seja, torna-se incomunicável. A meação do varão será dividida com a companheira, com referência aos bens adquiridos durante o período de convívio. O mesmo cálculo vale em se tratando de duas ou mais uniões estáveis paralelas, quando uma foi constituída muito antes que a outra. Sendo duas uniões estáveis e não se conseguindo definir a prevalência de uma relação sobre a outra, cabe a divisão do acervo patrimonial amealhado durante o período de convívio em três partes iguais, restado um terço para o varão e um terço para cada uma das companheiras.

Na hipótese de falecimento do varão casado, a depender do regime de bens, é necessário afastar a meação da viúva. Apurado o acervo hereditário, excluída a legítima dos herdeiros, a parte disponível será dividida com a companheira, com referência aos bens adquiridos durante o período de convívio. Os mesmo cálculos são necessários quando ocorre o falecimento da companheira e vêm seus herdeiros a Juízo buscar o reconhecimento da união estável. Entendimento em sentido diverso só viria a beneficiar o varão que foi desleal e mais de uma mulher. Em nenhuma dessas hipóteses se faz necessária a prova efetiva da participação na constituição do acervo amealhado. Inexistindo herdeiros na classe dos descendentes e ascendentes, o acervo hereditário deve ser dividido em partes iguais entre a viúva e a convivente.

O Superior Tribunal de Justiça não reconhece a existência de união estável, somente fictícia sociedade de fato, deferindo à mulher, no máximo, indenização por serviços domésticos prestados. Também já determinou a divisão do seguro de vida e a repartição da pensão com a viúva.

- Eudemonista

Surgiu um novo nome para identificar a família pelo seu envolvimento afetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual vivendo um processo de emancipação de deus membros. O eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade. A absorção do princípio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido de proteção jurídica da família, deslocando-a da instituição para o sujeito, como se infere da primeira parte do § 8º do artigo 226 da Constituição Federal: “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos componentes que a integram”.

Princípios

Os princípios são normas jurídicas que se distinguem das regras não só porque tem alto grau de generalidade, mas também por serem mandatos de otimização e devem ter conteúdos de validade universal. Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema e violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um princípio mandamental obrigatório, mas a todo sistema de comandos.

Se exceções forem admitidas, não se estará a frente de um princípio, mas a uma regra concorrente ou subordinada a outra que lhe é incompatível ou contrária. Um princípio, para ser reconhecido como tal, deve ser subordinante e não subordinado a regras.

A partir do transbordamento dos princípios constitucionais para todos os ramos do Direito, passou-se a enfrentar o problema do conflito de princípios ou colisão de direitos fundamentais. Nessas hipóteses, é mister invocar o princípio da proporcionalidade que prepondera sobre o princípio da estrita legalidade. Há ponderação entre os princípios e não opção por um deles em detrimento do outro.

Os princípios constitucionais dispõem de primazia diante da lei, sendo a primeira regra a ser invocada em qualquer processo hermenêutico. É equivocada a idéia de que os princípios vêm por último no ato integrativo. Os princípios gerais do Direito são preceitos extraídos implicitamente da legislação pelo método indutivo e cabem ser invocados quando se verifica lacunas na lei. A norma constitucional está no vértice do sistema. Os princípios pairam sobre toda a organização jurídica.

A doutrina e a jurisprudência têm reconhecido inúmeros princípios constitucionais implícitos, cabendo destacar que inexiste hierarquia entre os princípios constitucionais explícitos ou implícitos. Há princípios especiais que são próprios das relações familiares e devem sempre servir de norte na hora de se apreciar qualquer relação que envolva questões de família, despontando entre eles os princípios da solidariedade e da afetividade, destacamos também:

- Monogamia

Não se trata de um princípio do direito estatal de família, mas sim uma regra restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas, constituídas sob a chancela do Estado. A monogamia é considerada função ordenadora da família.

Em atenção ao preceito monogâmico, o Estado considera crime a bigamia (artigo 235 do CP). Pessoas casadas são impedidas de casar e a bigamia torna nulo o casamento. É anulável a doação feita pelo adúltero a seu cúmplice. A infidelidade serve de fundamento para a ação de separação, pois importa em grave violação dos deveres do casamento, tornado insuportável a vida em comum, de modo a, por si só, comprovar a impossibilidade de comunhão de vida.

- Dignidade da pessoa humana

É o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo afirmado já no artigo primeiro da Constituição Federal. A preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional. É o mais universal de todos os princípios (macroprincípio).

Não representa apenas um limite para a atuação do Estado, mas constitui também um direcionamento para sua ação positiva. Significa, em última análise, igual dignidade para todas as entidades familiares.

- Liberdade

A liberdade e a igualdade – correlacionadas entre si – foram os primeiros princípios reconhecidos como direitos humanos fundamentais, integrando a primeira geração de direitos a garantir o respeito à dignidade da pessoa humana. A isonomia de tratamento jurídico permite que se considerem iguais marido e mulher em relação ao papel que desempenham na chefia da sociedade conjugal.

- Igualdade e respeito à diferença

A supremacia do princípio da igualdade alcançou também os vínculos de filiação, ao ser proibida qualquer designação discriminatória com relação aos filhos havidos ou não da relação de casamento ou por adoção.

Atendendo à ordem constitucional, o Código Civil consagra o princípio da igualdade no âmbito do direito das famílias. A relação de igualdade nas relações familiares deve ser pautada não pela pura e simples igualdade entre iguais, mas pela solidariedade entre seus membros caracterizada da mesma forma pelo afeto e amor.

- Solidariedade familiar

Solidariedade é o que cada um deve ao outro. Esse princípio, que tem origem nos vínculos afetivos, dispõe de conteúdo ético, pois contém em suas entranhas o próprio significado da expressão solidariedade, que compreende fraternidade é reciprocidade.

- Pluralismo das entidades familiares

Excluir do âmbito da juridicidade entidades familiares que se compõem a partir de um elo de afetividade e que geram comprometimento mútuo e envolvimento pessoal e patrimonial é simplesmente chancelar o enriquecimento injustificado, é ser conivente com a injustiça.

- Proteção integral das crianças, adolescentes e idosos

A maior vulnerabilidade e fragilidade dos cidadãos até os 18 anos, como pessoas em desenvolvimento, os faz destinatários de um tratamento especial. A Carta Constitucional assegura a crianças e adolescentes direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. São colocados a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Também dispõe de assento constitucional a igualdade no âmbito das relações parterno-filiais, de forma a assegurar aos filhos os mesmos direitos e qualificações, vedando designações discrminatórias.

- Proibição de retrocesso social

A consagração constitucional da igualdade, tanto entre homens e mulheres, como entre filhos, e entre as próprias entidades familiares, constitui simultaneamente garantia constitucional e direito subjetivo. Assim, não podem sofrer limitações ou restrições da legislação ordinária.

A partir do momento em que o Estado, em sede constitucional, garante direitos sociais, a realização desses direitos não se constitui somente em uma obrigação positiva para sua satisfação – passa a haver também uma obrigação negativa de não se abster de atuar de modo a assegurar sua realização. Por exemplo, todas as omissões da lei, deixando de nominar a união estável quando se assegura algum privilégio ao casamento, deve ser tidas por inexistentes. Quando a lei fala em união estável, é necessário que o intérprete supra essa lacuna.

- Princípio da afetividade

Ao serem reconhecidas como entidade familiar merecedora da tutela jurídica, as uniões estáveis, que se constituem sem o selo do casamento, tal significa que o afeto, que une e enlaça as duas pessoas, adquiriu reconhecimento e inserção no sistema jurídico. Houve a constitucionalização de um modelo de família eudemonista e igualitário, com maior espaço para o afeto e a realização individual.

Com a consagração do afeito a direito fundamental, resta enfraquecida a resistência dos juristas que não admitem a igualdade entre a filiação biológica e a sociedade afetiva.

O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e solidariedade derivam da convivência familiar, não do sangue. Assim, a posse do estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeito, com o claro objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado.

Fonte: Manual do Direito das Famílias. Maria Berenice Dias.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A Controvérsia entre Rawls e Habermas

A idéia de unir sistemas de Justiça e sistemas de Direitos, pensando os primeiros como fundamento dos segundos é o motor daquilo que foi apropriadamente denominado de Filosofia Constitucional.

Aqueles que se dedicam à moderna teoria da Justiça não podem dispensar a reflexão sobre qual o modelo institucional que estaria mais apto a consolidar a democracia constitucional numa sociedade notoriamente pluralista e profundamente dividida em inúmeras concepções de bem e de vida boa. Assim, o primeiro movimento para este enlace foi dado pela filosofia política contemporânea.

Um segundo movimento de construção da filosofia constitucional foi parte da teoria do direito pelos debates em torno da Constituição. Sem dúvida, foi a tão falada e proclamada crise do positivismo jurídico que abriu caminho para se repensar que direito poderia (estaria apto a) regular uma sociedade que já não cabia mais nos seus contornos normativos e que, portanto, precisava de revisão.

A superação do positivismo implicava, contudo, (re)pensar a fundamentação das normas de um determinado ordenamento jurídico e, desta forma, vinculá-lo a questões de política, moral e direito sem, entretanto, desprezar uma análise racional do problema.

No que toca especificamente à teoria constitucional, trata-se de perceber que a prática constitucional é notoriamente marcada por um déficit em torno da aplicação da Constituição. Essa carência é, antes de mais nada, uma carência da teoria que sustenta a prática.

É a teoria constitucional que vai buscar a filosofia política, especialmente o que se chama a moderna teoria da Justiça.

Há três eixos de análise possível: a) aproximação conceitual: existência de um arcabouço teórico comum entre os fundamentos da teoria constitucional e os pressupostos epistemológicos da teoria da Justiça; b) objetivos e finalidades: centralidade da Constituição, preocupação com a limitação do poder político e com os direitos fundamentais e, acima de tudo, a busca constante pela construção de uma democracia constitucional; c) liberalismo renovado: irá permitir uma continuidade do discurso liberal e, ao mesmo tempo, a sua renovação devido às características singulares do tema.

Em relação ao primeiro eixo, pode-se afirmar tanto uma quanto a outra tem início já na antiguidade quando filósofos como Platão, Aristóteles ou ainda o jurista romano Cícero preocuparam-se em determinar qual a forma mais adequada, por justa, de regular um Estado.

Neste período, as reflexões sobre a Constituição e a Justiça encontravam-se estreitamente ligadas, formando um corpo teórico que costuma denominar-se de pensamento constitucional. Algo semelhante ocorre durante a Idade Média e o início da moderna, porém, é com o contratualismo que se pode afirmar que o vínculo entre as duas torna-se inexorável. É justamente no contratualismo que Rawls vai buscar a fundamentação de uma moderna teoria da Justiça.

Além de uma estrutura teórica coincidente, a teoria da Justiça e a teoria constitucional têm objetivos e preocupações comuns. A primeira centra-se no pluralismo como ponto de partida e levanta a possibilidade que instituições políticas e jurídicas têm de enfrentá-lo publicamente. É nesta questão que se fundam as mais importantes disputas teóricas, ou seja, quando se discute que modelo de pautas normativas – concepção de Justiça – enfrenta e responde melhor às demandas de uma sociedade plural. Independentemente de que concepção se esteja tratando, é necessário acoplar-lhe um sistema de direitos que viabilize esse modelo de distribuição de bens e direitos.

Estabelecer qual a melhor forma de assegurar esse sistema de direitos fundamentais na Constituição de um Estado é tarefa da filosofia constitucional. Ao ser compreendida como uma instância de análise e reflexão sobre as relações entre Constituição, Estado e Sistemas de Justiça, traz para seu epicentro a procura da consolidação de uma democracia constitucional, considerando-a a única forma de garantir a igualdade na diversidade.

Há que se esclarecer que a filosofia constitucional é resultado de um liberalismo renovado. Trata-se de um liberalismo que se centra, principalmente, na diferença entre a construção da moralidade privada e da moralidade pública, dando grande ênfase a última. Sem abandonar a idéia que move o pensamento liberal, a prioridade da escolha individual, o liberalismo contemporâneo preocupa-se com as regras que norteiam as ações coletivas. Estas devem primar pela igual consideração e respeito a cada indivíduo, este sendo entendido como um ser particular e distinto dos outros em suas crenças, valores, moral, enfim, entre as inúmeras questões que separam um dos outros.

É neste ponto, ou seja, a partir das demandas da igualdade que aparece a exigência de neutralidade do Estado, pressuposto tão caro à estrutura do pensamento liberal.

A neutralidade procedimental encontra-se vinculada à tese kantiana da prioridade do justo sobre o bem, um dos principais temas da filosofia política ocidental. Seu significado é bastante conhecido e expressa que os princípios da Justiça limitam-se às concepções de bem que os indivíduos podem eleger e colocar em prática, pois quando os valores escolhidos entram em conflito com os princípios da Justiça, são estes que se devem respeitar.

A prioridade da Justiça significa também que os princípios que vão reger a esfera pública não podem ser determinados com base numa concepção específica do bem, pelo contrário, escolher princípios de Justiça universais e universalizantes e, conforme o liberalismo, neutros, é condição sine qua non para a liberdade de optar por uma outra concepção de bem.

E mais, pode-se dizer que do ponto de vista moral essa prioridade do justo sobre o bem significa que a escolha da esfera da primazia da Justiça leva-nos inevitavelmente a uma proximidade que poderia chamar-se de metodológica: a concepção compartilhada do procedimentalismo como princípio normativo que permite uma neutralidade de justificação do ideal de Justiça sem comprometê-la com qualquer concepção particular de vida boa.

A disputa pela melhor interpretação possível desse princípio e suas consequências para a teoria da Justiça e para a teoria dos direitos é a tônica da polêmica travada entre o autor americano John Rawls e seu opositor e grande admirador, o alemão Jürgem Habermas e constitui-se um dos temas mais importantes da filosofia constitucional. A principal divergência entre os dois reside sobre a melhor justificação do ideal kantiano que confere, como já dito, prioridade à Justiça. Contudo, deve-se deixar anotado que esta divergência somente é possível, visto que ambos compartilham o mesmo postulado epistemológico: a prioridade do justo sobre o bem e a sua conseqüência necessária, o ideal da neutralidade exigido pelo liberalismo político.

É este ideal de neutralidade que leva Rawls e Habermas a uma importante ruptura com as teses comunitárias, pois ambos sustentam a impossibilidade de adotar-se uma concepção de Justiça apoiada em algum o objetivo comum.

Segundo Habermas, Rawls não conseguiria na sua Justiça como equidade, estabelecer a relação entre as instituições que dizem respeito à implementação do direito positivo e a teoria política para assim estabelecer um direito legítimo. Para o autor americano, esta crítica é improcedente. Ao assegurar a prioridade da liberdade e conceber uma estrutura básica para resguardá-la, ele acredita ter obtido a melhor fundamentação dos direitos como a melhor estruturação de um sistema de liberdades que seria fonte de legitimidade posterior.

Rawls dedica as suas principais obras (Teoria da Justiça e Liberalismo Político) ao problema do pluralismo. Partindo do pressuposto que este é um fato inexorável nas sociedades contemporâneas, o autor vai propor uma concepção de Justiça que, quando aplicada à estrutura básica da sociedade, ter-se-ia o que ele denomina de sociedade bem ordenada.

A idéia de concepção pública de Justiça encerra a idéia de que todos conhecem e aceitam determinados princípios da Justiça válidos para toda a estrutura básica da sociedade. Desta forma e ao mesmo tempo, os que constituem a sociedade são constituídos por ela, pois, se ao ser justa, leva os homens a agir com Justiça. Isto pressupõe, entretanto, que todos reconheçam e compartilhem os mesmos princípios. Daqui, então, chega-se rapidamente à questão da neutralidade procedimental para a formulação dos princípios da Justiça.

A idéia de prioridade do justo é um elemento essencial daquilo que se chama de “Liberalismo Político” e desempenha papel central na Justiça como equidade, como uma das formas desse ponto de vista. Ralws define a concepção pública de Justiça a partir de três elementos centrais. O primeiro deles é o seu sujeito, a sua estrutura básica de sociedade de uma democracia constitucional moderna. O segundo é a sua formulação, que se faz por meio de um ponto de vista livre (freestanding view).

Isso quer dizer que, mesmo que possa ser referendada por qualquer teoria abrangente, não se coaduna com ela e, menos ainda, dela emana. O terceiro ponto é que seu conteúdo se expressa em termos e idéias fundamentais que se consideram implícitas na cultura política de uma sociedade democrática.

A concepção política de Justiça está fundada nas idéias latentes de uma cultura política democrática que tendem, por isso, a ser consensuais. São basicamente três: a) a idéia de que a sociedade é um sistema justo de cooperação social através dos temos e da troca de gerações que se define a partir dos seguintes termos: trata-se de uma atividade distinta da atividade meramente coordenada socialmente, pois é guiada por normas e procedimentos publicamente reconhecidos; b) implica condições justas de cooperação, ou seja, aceitar os termos desta cooperação desde que os outros também o façam; c) requer uma idéia da vantagem racional de cada participante.

Resta a questão de saber qual é a forma mais apropriada de Justiça capaz de fornecer princípios da Justiça mais adequados ao sistema. Na resposta, o autor recorre ao já conhecido conceito de posição original e (re)introduz os termos do contrato, agora, porém, com um significado mais modesto.

A manutenção do projeto contratualista no Liberalismo Político tem como função assegurar a neutralidade liberal por meio do construtivismo. Para isso, Rawls vai propor a construção procedimental de que ele denomina overlappng consensus. Este seria um consenso em torno do qual os indivíduos poderiam associar-se, pois permitiria uma convivência pacífica numa sociedade plural. São três suas características essenciais: a) seu objeto é uma concepção política (princípios da Justiça); b) não é realizado por indivíduos, mas por doutrinas compreensivas razoáveis (aquelas que não comprometem o poder moral dos indivíduos); c) é subscrito por várias e diversas concepções razoáveis e cada uma delas pode aderir por meio de suas próprias razões.

O liberalismo político de Ralws continua a ser uma versão do liberalismo enquanto sublinha a importância da tolerância e argumenta a favor de um sistema de governo orientado por princípios que não pressupõem uma determinada forma de vida como a melhor. A atitude do Liberalismo Político em relação às concepções liberais é, portanto, uma atitude de tolerância, visto que permite a todos os ideais morais em conflito uma competição pacífica.

O overlapping consesus teria então a função de assegurar a estabilidade de uma sociedade onde o pluralismo é o resultado inevitável do funcionamento das instituições livres e do uso pleno da razão, pois representa uma concepção de legitimidade política. Na medida em que reconhece que os cidadãos são livres e iguais, toda concepção liberal deve examinar sua própria estabilidade de tal modo que cada cidadão possa afirmá-la livremente.

Precisamente é este o motivo pelo qual o autor acredita ser impossível a qualquer doutrina abrangente servir de base à configuração das instituições sociais, o que equivale a dizer que, em matéria de Justiça, há que se esquecer de tentar fundamentá-la em argumentos gerais, para baseá-la em idéias que possam ser reconhecidas pela totalidade das teorias abrangentes. As características necessárias para compor tal pauta de estabilidade seriam, segundo Rawls, os traços políticos comuns presentes numa sociedade democrática que, por estarem associados a uma tradição democrática, devem ser desconhecidos por todos os seus membros como fundamentais e fundantes.

Analisando a posição Habermas, verifica-se que, inicialmente, o autor sustenta que a teoria Ralwsiana estrutura-se em níveis diversos: a) fundamentação: Ralws estabelece a justificação normativa de uma sociedade bem ordenada, objetivando a “auto-estabilização de uma sociedade justa através da força socializadora de uma vida sob instituições justas”; b) esclarecimento: o de como estabelecer, em circunstâncias determinadas, instituições justas; c) propaganda: demonstrar que sua teoria é a mais adequada às nossas práticas cotodianas e representa as melhores tradições da cultura política.

A existência necessária desses três níveis na teoria de Rawls não deixa claro, segundo Habermas, quais são as relações entre a construção de uma fundamentação teórica de princípios de Justiça e a recepção e aplicação desses mesmos princípios pela comunidade jurídica concreta, a qual teria a tarefa de estabelecer suas próprias bases normativas de convivência por meio desses princípios. A questão radical no fato de que Rawls não explicita se a estabilidade de uma sociedade justa se dá por intermédio do overlapping consensus ou por meio da aceitação democrática do pluralismo político, o que torna o consenso sobreposto apenas uma forma de buscar a reestruturação teórica da idéia de sociedade justa para a reforma prática das instituições sociais existentes.

Rawls concentra-se em questões da legitimidade do direito, sem tematizar a forma do direito enquanto tal, e, com isto, a dimensão institucional do direito. A preocupação de Rawls, segundo Habermas, seria limitada, dessa forma, somente ao grau de aceitação e plausibilidade dos princípios da Justiça como equidade em relação às tradições políticas e ao contexto cultural de sociedades contemporâneas pluralista, deixando de fora a tensão entre faticidade e validade. Ou seja, não haveria na Justiça como equidade a descrição crítica dos processos políticos identificáveis na realidade social, capazes de promover uma reconstrução do desenvolvimento do Estado de direito de sociedades concretas, isto é, faltou a Uma Teoria da Justiça de Rawls, enquanto uma teoria de direito, uma reconstrução normativa do Estado de direito e de sua base social.
O estabelecimento de um nexo entre essas duas realidades, entre a eficácia (faticidade) dos processos políticos e o arranjo comunicativo dos processos democráticos de autocompreensão do Estado de direito (validade) é a tarefa que, então, Habermas propõe para si mesmo. A crítica seria, assim, uma crítica familiar, de alguém que compartilha com sua intenção e considera seus resultados essenciais como corretos.

Nesse sentido, Habermas centra sua análise em três aspectos distintos da realização do projeto de implementação de uma autonomia de raízes kantianas. Inicialmente, aponta o fato de que tem dúvidas sobre se o conceito de posição original assegura e explicita adequadamente a idéia de um juízo imparcial de princípios de Justiça entendidos deontologicamente. Aduz, assim, a questão de que a posição original constitui-se a partir de um desenho teórico que atribui aos partidos a tomada de decisões representativas de uma ordem moral individual, a qual se encontra anteriormente eliminada nos próprios indivíduos, já que estes estão vinculados a uma posição original na qual são despidos do sentido próprio de Justiça e da concepção pessoal do bem.

Em segundo lugar, considera que Ralws deveria separar as questões de fundamentação das de aceitação. Com isso, a neutralidade de sua concepção de Justiça não deve se sobrepor à validez congnitiva de sua teoria como um todo. Pelo contrário, deve conviver com as variadas doutrinas interpretativas e as diferentes concepções de mundo, sem que perca sua capacidade de gerar resultados práticos, proporcionando o overlapping consensus. O problema é que a aceitação do consenso deve ser anterior a ele mesmo e não posterior, o que leva a pensar na existência de cosmovisões verdadeiras por si mesmas, produzindo uma espécie de ontologia, e não no sentido semântico discursivo, mas normativamente vinculante.

Em terceiro e último lugar, Habermas considera inadequada a colocação dos direitos básicos liberais sobre o princípio democrático de legitimação, o que seria uma conseqüência indesejada, mas previsível, especialmente por conta da divisão rígida entre identidade política e identidade não publica dos cidadãos.

Para o filósofo alemão, Rawls não consegue alcançar o intento de harmonizar a liberdade dos modernos com a liberdade dos antigos pelo fato de restringir a idéia de autonomia de Rousseau e Kant. Para estes últimos, a raiz da autonomia moral e da autonomia política é maior só, já que os direitos liberais (liberdade de crença, de consciência, de proteção à vida e à propriedade – liberdade dos modernos) não podem limitar o exercício público da razão, isto é, a realização da prática de autodeterminação, estabelecida pela construção constante do processo democrático de questionamento político da realização efetiva dos direitos (liberdade dos antigos).

Por fim, Habermas acusa Rawls de constituir uma teoria em termos bastante modestos, limitados meramente a aspectos procedimentais do uso público da razão, ou seja, ao processo que poderia formar racionalmente uma opinião e uma vontade, desenvolvendo a idéia de direitos a partir de sua institucionalização jurídica.

O professor alemão vê, portanto, a necessidade de se assumir, no campo da filosofia política, a imodéstia diletante capaz de abandonar o “método de evitação” de questões disciplinares de fundo. Esse “método” possibilita a constituição de um sistema fechado, digno de admiração, mas absoluta e continuamente dependente das disputas dos conceitos de racionalidade e verdade.

Além da fundamentação do sistema de direitos, Rawls e Habermas são separados pela estabilidade desse sistema, especificamente, em uma sociedade em contínua transformação e que, portanto, na opinião de Habermas, não poderia cristalizar direitos, conseqüência que obviamente teria a obra de Rawls.

Habermas vale-se de um recurso de linguagem para explicar a diferença entre a sua concepção e a concepção do sistema de direitos de Rawls. Para ele, na obra do autor americano, os direitos seriam distribuídos e consistiriam, basicamente, em propriedade dos indivíduos. Já para o filósofo alemão, os direitos são o resultado do exercício constante da razão pública e, desta forma, a revisão do sistema de direitos é sempre possível, facultando mudanças em sua estrutura se a soberania popular assim o desejar, não encontrado, por outro lado, barreiras nos direitos individuais.

A concentração de esforços, especialmente nos direitos individuais, é onde de fato reside a capacidade de cidadania da liberdade, demonstrará que o modelo de Rawls está mais apto a atender às demandas da democracia constitucional. Uma das grandes contribuições do autor seria afastar o problema da intangibilidade de algumas cláusulas da Constituição, sem precisar recorrer a quaisquer dos princípios outros que não possam ser justificados racionalmente por meio da ética e da superioridade dos direitos fundamentais, mas também sem resvalar para um naturalismo.

Sem dúvida, a obra de Rawls, que encarna um individualismo dos direitos pessoais, parece ser a melhor configuração para a validade dos direitos fundamentais e resulta muito mais segura e compatível com a democracia constitucional, pois atinge uma possibilidade de consolidação dos direitos e liberdades que outras teorias não conseguem atingir.

Não se pode negar que a obra de Rawls é uma possibilidade lícita e eficaz de dar voz a um elemento externo ao discurso sobre a Lei Fundamental (a filosofia política), sem levar, entretanto, a um completo desvirtuamento dos pressupostos teóricos e epistemológicos da própria Teoria da Constituição, mas que, permitisse, concomitantemente, a sua continuidade e renovação.

Assim, da reunião destes dois elementos é que parece a necessidade de caracterizar a filosofia constitucional como uma fonte de renovação do discurso sobre o direito, pois lhe coloca demandas de fundamentação e justificação incompatíveis como o positivismo dominante até aqui. A obra de Rawls aparece como uma alternativa relevante para concretizar este objetivo. Entretanto, seu opositor, Jürgen Habermas, lança algumas críticas relevantes e propõe em questão a possibilidade de Rawls de fato oferecer uma justificação adequada em termos de legitimidade para o sistema de direitos. Tal como foi dito, embora ambos compartilhem os mesmos pressupostos epistemológicos – a máxima kantiana da prioridade do justo sobre o bem –, é a melhor interpretação desta que está em xeque.

Ao propor significados distintos para a primazia da Justiça, os dois vão sustentar maneiras distintas de justificação dos sistemas de direitos. E, ainda que não se possa dar por esgotado o debate, pelo menos por enquanto, a idéia de intangibilidade dos direitos, sustentada pela Justiça como equidade, parece mais apropriada a atender às demandas da democracia constitucional.

Fonte: A Filosofia Constitucional de John Eawls e Jürgem Habermas: Um Debate sobre as Relações entre Sistemas de Justiça e Sistemas de Direitos. Cecília Caballero Lois.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Interpretação e Administração Tributária

O intérprete determina o significado da norma, tendo em vista, especialmente, o sistema em que se encarta. Já a integração ocorre na ausência de norma expressa e específica para o caso e, por isso mesmo, utiliza-se um dos meios indicados pela legislação tributária.

O Código Tributário Nacional, em seu artigo 108, acolheu a teoria das lacunas, dando à autoridade competência para deixar de aplicar as normais mais gerais, afirmando, em face da inexistência de norma específica, a presença de lacuna e resolvendo o caso pela analogia, pelos princípios gerais do direito e pela equidade.

A interpretação, em sentido amplo, é a atividade de conhecimento do sistema jurídico, desenvolvida com o objetivo de resolver o caso concreto, seja pela aplicação de uma norma específica, seja pela aplicação de uma norma mais geral, seja pelo uso de um dos meios de integração. Interpretação, em sentido restrito, é a busca do significado de uma norma. Integração é a identificação de uma norma que, não tendo sido elaborada para casos do tipo daquele que se tem a resolver, a ele se ajusta, em face de um critério utilizado pelo legislador.

Interpretação jurídica é o conhecimento da norma impregnado de inevitável conteúdo axiológico e que nenhum dos métodos, processos ou elementos de interpretação é capaz de oferecer um resultado seguro, objetivo, capaz de evitar fundadas controvérsias.

São métodos de interpretação:

- gramatical: sugere que o intérprete investigue antes de tudo o significado das palavras usadas no texto legal em exame. O elemento literal, embora indispensável, quando utilizado isoladamente pode levar a verdadeiros absurdos.

- histórico: o sentido da norma é buscado com o exame da situação a que se refere a tempos.

- sistemático: o intérprete procura o sentido da regra jurídica, verificando a posição em que ele encarta no diploma legal e as relações desta com as demais regras contidas no mesmo texto legal. O método sistemático afirma o princípio hermenêutico pelo qual nenhum dispositivo legal deve ser interpretado isoladamente, mas no contexto em que se insere. Assim, o significado da palavra depende do contexto em que está empregada, e o da própria frase muita vez depende do contexto maior em que se encarta e também o significado da norma, pela mesma razão, no meio em que se insere. O método sistemático é também conhecido como lógico.

- teleológico: o intérprete empresta maior relevância ao elemento finalístico. Busca o sentido da regra jurídica tendo em vista o fim para o qual ela foi elaborada.

Dispõe o artigo 108 do Código Tributário Nacional que, “na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará, sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais do Direito Tributário; III – os princípios gerais do Direito Público; IV – a equidade”.

O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de um tributo não previsto em lei, enquanto o uso da equidade não redundará na dispensa de um tributo devido.

Analogia: é o meio de integração pelo qual o aplicador da lei, diante da lacuna desta, busca solução para o caso em norma pertinente a semelhantes, análogos. A analogia presta-se em favor do fisco e do contribuinte. Valendo-se de tal meio, o Supremo Tribunal Federal tem considerado devida a correção monetária na restituição de tributos pagos indevidamente.

Princípios gerais do Direito Tributário: não se conseguindo solução pela analogia, recorre-se a eles, que se encontram na Constituição Federal (princípio da capacidade contributiva, da legalidade, da isonomia, da anterioridade da lei em relação ao exercício financeiro, da proibição de tributo com efeito de confisco, da proibição de barreiras tributárias interestaduais e intermunicipais, das imunidades, das competências privativas, da finalidade extrafiscal dos tributos, além de outros implícitos).

Princípios gerais do Direito Público: são idéias comuns a várias regras da Ciência Jurídica. A fonte mais importante é a Constituição, podendo ser mencionados os princípios da isonomia, da irretroatividade das leis, da pessoalidade da pena, da ampla defesa dos litigantes e dos acusados em geral, da liberdade profissional, entre outros. A doutrina cita o princípio conhecido como “quem pode o mais pode o menos”.

Equidade: é a justiça no caso concreto. Por ela corrige-se a insuficiência decorrente da generalidade da norma. A falta de uma norma específica para cada caso é que enseja a integração por equidade. Busca-se uma solução para o caso concreto a partir da norma genérica, adaptando-a, inspirado no sentimento da benevolência.

O interesse público não se presta para fundamentar uma posição apriorística do intérprete da lei tributária em favor do Fisco. O verdadeiro intérprete público, aliás, reside na adequada interpretação da Constituição e das leis, de sorte que os ditames de seus dispositivos não restem amesquinhados.

Se determinado conceito legal de Direito Privado não for adequado aos fins do Direito Tributário, o legislador pode adaptá-lo. Dirá que, para os efeitos tributários, ou para os efeitos deste ou daquele tributo, tal conceito deve ser entendido desta ou daquela forma, com esta ou aquela modificação. Essa interpretação é obra do legislador e não do intérprete, pois este não pode, a qualquer pretexto, modificar a lei. Se o conceito não é legal, mas apenas doutrinário, pode o intérprete adaptá-lo aos fins do Direito Tributário.

Se um conceito jurídico, seja legal ou doutrinário, é utilizado pela Constituição, não poderá ser alterado pelo legislador ou pelo intérprete. O artigo 110 do Código Tributário Nacional determina que “a lei tributária não pode alterar definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de Direito Privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições Estaduais, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.

De acordo com a denominada interpretação econômica, admitida por alguns juristas no Brasil, deve o intérprete considerar, acima de tudo, os efeitos econômicos dos fatos disciplinados pelas normas em questão. Na relação jurídica tributária há uma relação econômica subjacente e esta é que deve ditar o significado da norma.

A natureza econômica da relação de tributação é importante para o intérprete da lei tributária, porque faz parte integrante do próprio conteúdo de vontade da norma, sendo elemento seguro de indicação do fim ou objetivo visado pela regra jurídica. Por outro lado, inspira um princípio prevalente no Direito Tributário, que é o da capacidade econômica, em função do qual se devem tanto o legislador como o intérprete orientar.

O intérprete da lei tributária, portanto, deve entender a referência a um compra e venda, não como uma referência a um contrato, e sim como a referência apenas aos efeitos econômicos que esse contrato geralmente produz, sendo irrelevante, portanto, a perquirição a respeito da validade ou invalidade deste. Se ocorrer a nulidade e desta decorrer ou não a execução ou o desfazimento do contrato, com o retorno das coisas ao estado anterior, tal fato tem relevância para o Direito Tributário. É assim, exatamente, porque ao Direito Tributário importa a realidade econômica, que há de prevalecer sobre a simples forma jurídica.

A denominada interpretação econômica, na verdade, não é mais do que uma forma de manifestação de preferência pelo substancial, em detrimento do formal.

De acordo com o artigo 111 do Código Tributário Nacional, “interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: I – suspensão ou exclusão do crédito tributário; II – dispensa ao cumprimento de obrigações tributárias acessórias”.

Interpretação literal significa interpretação segundo o significado gramatical, ou melhor, etimológico das palavras que integram o texto. Quer o Código que se atribua prevalência ao elemento gramatical das leis pertinentes à matéria do artigo 111, que é excepcional, justificando a regra de hermenêutica.

Ocorre que o elemento literal é insuficiente. Assim, a regra do artigo 111 do Código Tributário Nacional há de ser entendida no sentido de que as normas regulamentadoras das matérias ali mencionadas não comportam integração por equidade. Sendo possível mais de uma interpretação, todas razoáveis, ajustadas aos elementos sistemático e teleológico, deve prevalecer aquela que melhor realize os princípios constitucionais e permita solução que mais se aproxime dos valores essenciais que ao Direito cumpre realizar, a saber, a segurança e a justiça. Alguns doutrinadores sustentam que a interpretação literal deve ser entendida como interpretação restritiva.

De acordo com o artigo 112 do Código Tributário Nacional, “a lei tributária que define infrações ou lhes comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: I – à capitulação legal do fato; II – à natureza ou circunstâncias materiais do fato, ou à natureza e extensão dos seus efeitos; III – à autoria, imputabilidade ou punibilidade; IV – à natureza da penalidade aplicável ou à sua gradação”. Prevalece o princípio originário do Direito Penal de que na dúvida se deve interpretar a favor do réu.

Classifica-se a interpretação, segundo a fonte de onde promana, em autêntica (também chamada de legislativa, é aquela feita pelo próprio legislador, mediante a elaboração de outra lei, dita interpretativa), jurisprudencial (é a interpretação feita pelos órgãos do Poder Judiciário, a propósito de resolver as questões e eles submetidas) e doutrinária (é a interpretação feita pelos estudiosos da Ciência Jurídica). A lei interpretativa é aquela que não inova, limitando-se a esclarecer dúvida existente em face do texto da lei anterior e, a rigor, é inócua, no sentido de que não constitui regra jurídica nova.

Interpretação não se confunde com aplicação do Direito, uma vez que, na aplicação do Direito pelos Tribunais a interpretação é tarefa antecedente e distinta. Enquanto na atividade de interpretação pode-se apontar mais de um significado para a norma, na aplicação tem-se que escolher um dos significados possíveis. O aplicador da norma, portanto, não exerce atividade científica, mas de política jurídica, na medida em que a aplicação é também criação da norma.

Quando a autoridade da Administração Tributária faz um lançamento de tributo, está observando a norma que determina o procedimento de lançamento, e aplica-se a norma de Direito Tributário material, que incidiu e, por isso, gerou a obrigação tributária.

Administração Tributária

É indispensável que a fiscalização tributária seja feita por pessoas às quais a legislação (em sentido amplo, englobando portarias, instruções, ordens de serviço, dentre outros) atribua competência para tanto, em caráter geral ou especificamente, em função do tributo que se tratar.

Com exceção da lei, a legislação deve tratar apenas de aspectos procedimentais, ou de simples obrigações acessórias. Não pode impor deveres que não tenham tal natureza, em face do dispositivo constitucional pelo qual ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Para efeitos de legislação tributária, não se aplicam quaisquer dispositivos legais que limitem ou excluam o direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais e fiscais, dos comerciantes, industriais ou produtores ou a obrigação destes de exibi-los (artigo 195 do CTN).

Com o advento do Código Tributário Nacional, ficou afastada a possibilidade de invocação das regras do Código Comercial ou de qualquer outra lei que exclua/limite o direito de examinar mercadorias, livros, arquivos, documentos, papéis e efeitos comerciais ou fiscais. As normas que preservam o sigilo comercial prevalecem entre os particulares, mas não contra a Fazenda Pública.

Ao constatar a existência de livro ou documento não obrigatório, deve o fiscal fazer imediatamente a respectiva apreensão. Se não o faz, depois não terá como obrigar o contribuinte a exibi-lo, a menos que este confesse a existência do livro ou documento questionado.

Os livros obrigatórios de escrituração comercial e fiscal e os comprovantes dos lançamentos neles efetuados serão conservados até que ocorra a prescrição dos créditos tributários decorrentes das operações que se refiram. Essa regra somente se aplica se tiver havido lançamento e ainda não estiver extinto o respectivo crédito tributário, que por isto mesmo poderá ser cobrado, ensejando discussão judicial a seu respeito.

A pessoa sujeita à fiscalização deve apor nos termos respectivos o seu “ciente”. Assim também nos autos de infração acaso lavrados. Isto não significa que concordou com o procedimento fiscal, mas, apenas, que a pessoa autuada foi notificada, isto é teve conhecimento da autuação.

O dever de prestar informações ao Fisco não é apenas do sujeito passivo de obrigações tributárias ou, mais praticamente, não é apenas de contribuintes e responsáveis tributários. Abrange também terceiros, como estabelece o artigo 197 do Código Tributário Nacional.

O dever de informar encontra limite no denominado sigilo profissional. Dessa forma, não abrange a prestação de informações quanto a fatos sobre os quais o informante esteja legalmente obrigado a guardar segredo em razão de cargo, ofício, função, magistério, atividade ou profissão.

O segredo profissional é garantia de ordem pública. Decorre de disposição expressa de lei e, segundo o Código Tributário Nacional, prevalece sobre o dever de prestar informações ao Fisco.

A Lei Complementar n.º 105/2001 estabelece que não constitui violação do sigilo a que estão obrigadas as instituições financeiras, entre outras hipóteses, a prestação de informações nos termos e condições que estabelece.

O Código Tributário Nacional proíbe a divulgação, para qualquer fim, por parte da Fazenda Pública ou de seus funcionários, de qualquer informação obtida em razão atividade de administração e fiscalização tributária sobre a situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros, e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

Violada a proibição, a Fazenda Pública responde civilmente. É obrigada a indenizar os danos que porventura a divulgação venha a causar e pode agir regressivamente contra o servidor, se houver culpa deste que responde civil, administrativa e penalmente perante da Fazenda Pública.

Dependendo das circunstâncias do caso, a divulgação, pelas autoridades ou servidores do Fisco, de fatos relativos à situação econômica ou financeira dos sujeitos passivos ou de terceiros e à natureza e ao estado de seus negócios pode configurar o crime de excesso de exação, previsto no artigo 316, § 1º do Código Penal. O dever de sigilo funcional, todavia, não impede a Fazenda Pública de prestar informações requisitadas por autoridades judiciárias ou que a União, Estados, Distrito Federal e Municípios prestem uns aos outros informações, na forma da lei ou convênio.

As autoridades administrativas federais poderão requisitar o auxílio da força pública quando vítimas de embaraço ou desacato no exercício de suas funções ou quando necessário à efetivação de medida prevista na legislação tributária, ainda que não configure o fato definido como crime ou contravenção (artigo 200 do CTN). Embaraço é qualquer forma de resistência à atividade fiscal e desacato é o crime previsto no artigo 331 do Código Penal.

O crime de excesso de exação é definido pelo artigo 316, § 1º do Código Penal: se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou, quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza.

Constitui dívida ativa tributária a proveniente de crédito dessa natureza, regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão judicial final proferida em processo regular (artigo 201 do CTN).

O crédito é lavado à inscrição como dívida ativa depois de definitivamente constituído. A aplicação regular de multa é pressuposto para a inscrição do respectivo crédito. A dívida, para ser inscrita, deve ser autenticada pela autoridade competente, cujo termo indicará: a) o nome do devedor, sendo o caso, dos co-responsáveis, bem como, sempre que possível, o domicílio e a residência destes; b) a quantia devida e a maneira de calcular os juros de mora acrescidos; c) a origem e a natureza do crédito, mencionando especificamente a disposição da lei que seja fundado; d) a data em que foi inscrita; e) sendo o caso, o número do processo administrativo de que se originar o crédito.

A omissão de qualquer um dos requisitos da certidão, ou o erro relativo a eles, causa a nulidade da inscrição e do processo de cobrança dela decorrente, mas a nulidade pode ser sanada, desde que ainda não tenha havido julgamento de primeira instância, mediante a substituição da certidão nula. Neste caso é devolvido ao executado o prazo para a defesa no que se refere à parte modificada (artigo 203 do CTN).

A dívida ativa regularmente inscrita goza de presunção de certeza e liquidez. A certidão de inscrição tem o efeito de prova pré-constituída. As citadas características decorrem da circunstância de ser a inscrição em dívida ativa precedida de apuração em regular processo administrativo, no qual é assegurada ampla defesa junto ao sujeito passivo da obrigação tributária.

Segundo o artigo 205 do Código Tributário Nacional, a lei poderá exigir que a prova da quitação de determinado tributo, quando exigível, seja feita por certidão negativa, expedida à vista de requerimento do interessado que contenha todas as informações necessárias à identificação da pessoa, domicílio fiscal e ramo ou negócio de atividade, e que indique o período a que se refere o pedido. A certidão negativa só pode ser validamente recusada se houver crédito constituído contra o interessado.

Não sendo possível o fornecimento de certidão negativa, em face da existência de débito, pode a autoridade administrativa fornecer certidão positiva, que em certos casos pode ter o mesmo valor da negativa, ou seja, quando conste a existência de crédito: a) não vencido; b) em curso de cobrança executiva que tenha sido efetivada a penhora; c) cuja exigibilidade esteja suspensa.

Não é exigível certidão negativa para a prática de ato que tenha por fim evitar a caducidade de direito, porquanto o Código Tributário Nacional exige a prova de quitação de tributos em três hipóteses: a) como condição para o deferimento de concordata ou para declaração de extinção das obrigações do falido; b) como condição de sentença de julgamento de partilha ou de adjudicação; c) como condição para celebração de contrato com entidade pública ou participação de licitação. Lei ordinária que amplie os casos de exigência da certidão negativa padece de inconstitucionalidade formal ou substancial.

Se, mesmo havendo débito, for expedida certidão negativa, há erro contra a Fazenda Pública. Se o servidor que expediu a certidão sabia da existência do débito e agiu dolosamente, torna-se ele pessoalmente responsável pelo crédito tributário e juros de mora acrescidos, respondendo, ainda, administrativa e criminalmente.

A recusa de certidão negativa somente se justifica quando existe crédito vencido. Tendo ocorrido o parcelamento da dívida e estando o contribuinte em dia com as prestações, também não se admite a recusa. Com o parcelamento, dá-se a prorrogação do prazo para pagamento e, por isto, não se pode dizer que existe crédito tributário vencido. Ter sido prestada ou não garantia de qualquer natureza para a obtenção do parcelamento e irrelevante. A rigor, a certidão negativa do débito significa apenas que o contribuinte não se encontra em mora, em estado de inadimplência para com o Fisco.

A propositura de ação de consignação em pagamento não assegura desde logo o direito à certidão negativa. Se existe lançamento e o contribuinte oferece valor menor, por entender que o lançamento está incorreto, somente com o trânsito em julgado da sentença que julgar procedente estará extinto o crédito e, em conseqüência, terá o contribuinte direito à certidão negativa. O mero ajuizamento da ação, ainda que ofertado o valor efetivamente devido, como o conhecimento deste só ao final acontece, não faz nascer o direito à certidão.

A exigência de quitação dos tributos fora dos casos arrolados pelo Código Tributário Nacional é inconstitucional, na medida em que implica cerceamento da liberdade de exercício da atividade econômica ou proporciona ao Fisco a cobrança de tributo sem o devido processo legal, vale dizer, sem a apuração em regular processo administrativo e sem ou sua da via própria, que é a execução fiscal.


Fonte: Curso de Direito Tributário. Hugo de Brito Machado.