quinta-feira, 30 de junho de 2011

Jurisdição e Competência no Processo Penal II


Competência em razão da matéria
- competência da Justiça Federal
Para definição de crimes da competência federal, o critério utilizado pelo constituinte pode ser explicado a partir da busca de um dimensionamento mais ou menos preciso das questões que poderiam afetar, direta ou indiretamente, os interesses federais e/ou nacionais.
No campo da definição dos interesses federais, a opção manifestou-se na proteção da Administração Pública Federal, estabelecendo a Constituição que compete à Justiça Federal o julgamento das infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviço ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral.
Todas as infrações penais, à exceção das contravenções, que atingirem o patrimônio da União, suas autarquias (inclusive as chamadas autarquias especiais) e empresas públicas serão da competência federal.
O que deve ser avaliado, como regra, é o resultado final da conduta, ou seja, o crime efetivamente consumado.
Assim, quando, por exemplo, o falso (documental, ideológico) é praticado como meio para a consumação de um crime de estelionato, e este se dirige ao patrimônio de um particular, a competência será da Justiça Estadual (Súmula 107 do STJ). O mais relevante, aqui, é observar a possível ocorrência de concurso de delitos. Assim, se, por exemplo, com uma única ação, o agente atinge bens jurídicos distintos e um deles pertence à União, autarquias e empresas públicas, a competência será da Justiça Federal. Tal seria a hipótese de concurso formal de crimes. Do mesmo modo, por óbvio, aplica-se a mesma regra quando se tratar de concurso material.
No concurso entre a competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, prevalecerá a competência da primeira, não porque ela seja especial ou mais graduada, mas porque sua jurisdição recebeu tratamento expresso, enquanto a da Justiça Estadual definiu-se pela regra da exclusão, sendo, portanto, no ponto, residual.
O critério mais ou menos seguro que poderá orientar em direção à identificação de interesse federal há de ser buscado, antes de tudo, na própria lei. É o que ocorre em relação à Lei n.º 7.492/86 (crime do colarinho-branco) e em algumas hipóteses previstas na Lei n.º 9.613/98, que cuida dos crimes de lavagem de bens e valores. Mas, sobretudo, pode ser encontrado no dispositivo do artigo 21 da Constituição Federal, no qual se arrola uma série de competências atribuídas à União.
Sempre que houver uma norma autorizando a gestão, administração ou fiscalização de qualquer atividade ou serviço, por órgão da Administração Pública Federal, estará caracterizado o interesse público federal. Por exemplo, a destinação de verbas públicas federais a Municípios ou Estados, mediante convênio, para determinada e específica finalidade, indica a existência de interesse público federal na fiscalização ou destinação dada à aludida verba. Note-se que a existência de fiscalização por convênio já afasta a hipótese de se tratar de verba federal repassada e já incorporada ao patrimônio do Município, quando então a competência seria estadual, diante da ausência de interesse federal.
Incluem-se entre as questões ligadas ao interesse federal a arrecadação tributária federal. Assim, são evidentemente da competência federal os crimes contra a ordem tributária federal (Lei n.º 8.137/90) e também contra a ordem previdenciária, já que o INSS é uma autarquia federal. No mesmo sentido, os crimes de contrabando e descaminho.
Se o interesse federal está mais intimamente ligado aos interesses da Administração Pública Federal, o interesse nacional manifesta-se em outra dimensão, prescindindo até da presença de qualquer entidade federal na questão. Tais são os exemplos dos crimes previstos em tratados e convenções internacionais, que estabeleceriam em relação entre o Estado estrangeiro e o nacional, bem como dos crimes contra o sistema financeiro nacional. Nessas situações, somente a referência expressa na lei é que determinará a presença do interesse de dimensões nacionais.
Os crimes políticos são de competência federal. A Lei n.º 7.170/83 prevê os crimes contra a segurança nacional e contra a ordem política e social, ainda parcialmente em vigor. Naquela lei se constata a presença de diversos tipos penais definidores de ações praticadas contra a soberania do Estado, bem como da proteção da pessoa dos Chefes dos Poderes da União.
Para que se afirme a competência federal para o processo e julgamento de crimes previstos em tratados e convenções internacionais, não basta apenas a previsão do crime. Além disso, é preciso que sua execução tenha se iniciado no país e o resultado ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. Em outras palavras, é preciso a presença de uma relação de internacionalidade, em que a conduta e resultado (jurídico, daí a inclusão do crime tentado) realizem-se entre dois ou mais Estados.
A Emenda n.º 45 trouxe significativa alteração na competência federal relativa a crimes previstos em tratados internacionais. Com efeito, o atual inciso V-A do artigo 109 da Constituição Federal prevê a competência do Juiz Federal para julgamento de “causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º - nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações de decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento para a Justiça Federal”.
De imediato, uma conclusão: não se estabeleceu competência exclusiva da Justiça Federal para o julgamento de crimes contra os direitos humanos; ao contrário, reafirmou-se a regra da competência estadual, ficando a competência federal a depender do atendimento de requisitos específicos.
O que se poderá submeter à competência federal é o julgamento de crime de competência originária da Justiça Estadual. O primeiro requisito a ser exigido para a intervenção do Procurador-Geral da República é a afirmação da existência de grave violação a direitos humanos. O exame da matéria deverá incluir a apreciação acerca do grau de repercussão da conduta, em relação à efetiva possibilidade de intervenção da Administração e das autoridades federais para repressão e prevenção de tais delitos.
Ressalte-se que o incidente de deslocamento ou modificação de competência jurisdicional há de ser suscitado pelo Procurador-Geral da República, e não resolvido por este. É dizer: entendendo presentes os requisitos constitucionais, aquela autoridade submeterá a questão ao Superior Tribunal de Justiça, ao qual caberá decidir pela alteração ou não da jurisdição. E, mais: em qualquer fase do inquérito ou processo, o que inclui o deslocamento da ação penal até mesmo em fase de recurso.
A competência é do Superior Tribunal de Justiça pelo fato de que, quando se tratar de graves violações a direitos humanos, e quando necessária a intervenção de instituições federais para cumprir suas obrigações firmadas com Estados e organizações internacionais, a competência será, originariamente, da Justiça Federal em razão da matéria. Do mesmo modo ocorre em relação aos tratados e convenções internacionais, com a diferença de que, quanto aos demais (tratados) exige-se a internacionalização da conduta; em relação aos crimes contra os direitos humanos, assim tipificados em tratados internacionais não se exigirá a internacionalização da conduta.
Com o reconhecimento da instituição, pela Emenda n.º 45, de mais uma hipótese de competência federal em razão da matéria, preserva-se o tratamento igualitário das instituições envolvidas (Ministério Público e Poder Judiciário, federal e estadual), sem a afirmação de nenhuma supremacia; de resto, alinha-se a nova regra do deslocamento à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, relativa tanto ao conflito de atribuições entre membros do parquet (federal e estadual) quanto ao conflito de jurisdição entre Justiça Estadual e Federal.
No tocante aos crimes contra a organização do trabalho, sistema financeiro e a ordem econômico-financeira, o Superior Tribunal de Justiça, em engenhosa construção hermenêutica, consolidou a sua jurisprudência – e a ela fez coro a Suprema Corte – que somente competirão à Justiça Federal aquelas infrações que tenham sido afetadas as instituições do trabalho ou ao direito dos trabalhadores coletivamente considerados.
Em relação aos crimes contra o sistema financeiro nacional, em que se busca proteger a higidez do sistema, eleito assim como interesse nacional, bem como aqueles contra a ordem econômico-financeira, dependerão de previsão expressa em lei. Não havendo lei definindo a presença de um interesse nacional na matéria, não se tratará de crime da competência federal.
No que se refere a crimes cometidos em aeronaves, a nossa jurisprudência apresenta certa tendência e incluir na competência federal quaisquer infrações penais praticadas a bordo de qualquer aeronave. A interpretação mais adequada à matéria é no sentido de limitar a competência federal em relação aos delitos praticados no interior de aeronaves que estejam realizando transporte aéreo entre aeroportos administrados pela Administração Pública Federal.
Para que seja atraída a competência da Justiça Federal em delitos envolvendo indígenas, seja como vítimas, seja como autores, o que deve ser posto em relevo é a existência ou não de disputa sobre direitos indígenas. Por isso, tanto o assassinato de um índio quanto o homicídio praticado por um índio, não serão, em regra, da competência do Tribunal do Júri Federal.
O julgamento do crime de ingresso ou permanência irregular no país é de competência federal.
O artigo 109, § 3º da Constituição Federal prevê que a lei poderá permitir que causas originariamente da competência da Justiça Federal sejam julgadas em primeira instância, isto é, com recurso para o Tribunal Regional Federal, na Justiça Estadual, sempre que o local da infração não for sede de Vara do Juízo Federal.
O processo e julgamento dos crimes previstos nos artigos 33 a 37 da Lei n.º 11.343/2006 (crimes de guarda, transporte, depósito e fabrico de instrumentos para o tráfico, bem como condutas atinentes à associação e organização criminosa ligadas ao tráfico) se caracterizado ilícito transnacional, são da competência da Justiça Federal. Os crimes praticados nos municípios que não sejam sede de vara federal serão processados e julgados na vara federal da circunscrição respectiva.
- competência da Justiça Militar e Eleitoral
São de competência da Justiça Eleitoral os crimes definidos em lei como crimes eleitorais, assim como pertencem à jurisdição militar os crimes qualificados como tal na legislação.
Nos termos da Emenda n.º 45, lei estadual deverá adequar a atual estrutura da Justiça Militar nos Estados, que deverá ser constituída, em primeiro grau, pelos Juízes de Direito e peles Conselhos de Justiça (órgão colegiado, presidido por Juiz de Direito), e, em segundo, pelo Tribunal de Justiça, ou Tribunal de Justiça Militar, nos Estados em que o efetivo militar seja superior a 20 mil integrantes.
Aos Juízes de Direito da Justiça Militar (órgãos singular) competirá o julgamento dos crimes militares cometidos contra civil, cabendo ao Conselho de Justiça (órgão colegiado) o processo e julgamento dos demais crimes militares, ressalvada a competência do Tribunal do Júri, quando a vítima for civil.
A Justiça Militar Federal, ao contrário, julga tanto civis como militares. Compete à Justiça Comum (estadual ou federal) o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por militar contra civil, estando ou não em serviço.
A competência da Justiça Eleitoral estende-se ao julgamento de outras infrações penais, na hipótese de concurso de crimes entre delitos comuns e crimes eleitorais.
A competência da Justiça Militar somente aprecia delitos militares, impondo-se a separação obrigatória dos processos em caso de concurso de crimes (comuns e militares), diante da absoluta especialização desta jurisdição.
Competência Territorial
Uma competência é absoluta quando ela não puder ser flexibilizada, é dizer, quando estiver em risco a própria jurisdição como Poder Público, como constitucionalmente responsável pela tutela da questão penal. Aqui, o interesse é eminentemente público, indisponível e inafastável por qualquer decisão dos interessados que concretamente estejam integrando determinada relação processual, sejam eles partes (acusado, Ministério Público, assistentes de acusação), seja o próprio órgão julgador. Trata-se, pois, de interesse metraprocessual, aqui identificado como aquele que ultrapassa a fronteira do interesse dos envolvidos em determinado e específico processo para atingir todo e qualquer outro processo, já passado, em curso ou, ainda, potencialmente existente.
Já a competência relativa, ou territorial, é aquela que pode ser flexbilizada ou, de modo mais simples, relativizada, dependendo do exame concreto de determinada relação processual e do interesse das partes envolvidas.
Quem deve aferir a qualidade da instrução e a suficiência do conjunto probatório levado a Juízo é, precisamente, e em regra, a quem puder interessar a sua produção: o acusado e o órgão de acusação. É por essa razão que o Código Penal abre ensejo a que as partes processuais excepcionem a incompetência relativa de Juízo, por meio do incidente denominado exceção de incompetência, o que deverá ser feito a tempo e modo oportunos, sob pena de preclusão.
No processo penal, ao contrário do processo civil, permite-se também ao Juiz, ex officio, a declinação da incompetência relativa, conforme se observa no artigo 109 do Código de Processo Penal.
A aplicação do citado artigo deverá ser limitada ao início da audiência de instrução e julgamento, em face do princípio da identidade física do Juiz, a impor que o magistrado que tiver instruído o processo deverá sentenciá-lo. Assim, não se aplicará aos atos instrutórios a regra do artigo 567 do Código de Processo Penal (ratificação em caso de incompetência), de tal maneira que a declinatória, ex officio, deve ser feita até aquele momento processual, sob pena de preclusão.
A primeira regra de fixação da competência no Código de Processo Penal é a do lugar da infração, em razão das maiores facilidades na coleta do material probatório disponível, bem como de sua produção em Juízo.
Impõe-se agora saber o que o Código de Processo Penal entende por lugar da infração penal.
Enquanto nosso Código de Penal e também a Lei n.º 9.099/95 consideram lugar da infração tanto o lugar onde se praticou a conduta quanto onde se produziu ou deveria se produzir o resultado, adotando a teoria da ubiqüidade (que reúne a teoria da atividade – lugar da conduta – e do resultado), o Código de Processo Penal adotou a teoria do resultado, que considera lugar da infração o local onde se consumou o crime ou deve ter se consumado, na hipótese de crime tentado (artigo 70 do CPP).
Ao legislador do estatuto processual penal pareceu inoportuna a adoção da teoria da ubiqüidade, em razão da possibilidade da maior incidência da dupla territorialidade (ou lugar do crime) nas ações penais, o que reclamaria a existência de um critério objetivo para resolver acerca da maior utilidade de um (lugar da ação) ou outro (lugar do resultado) foro.
A jurisprudência vem abrandando, excepcionalmente, o rigor da teoria do resultado, para admitir a competência do Juízo onde se praticou a ação delituosa, ainda que outro tenha sido o local da consumação, diante da necessidade de se preservar o máximo possível o conjunto probatório disponível.
Dificuldade alguma oferece a hipótese dos chamados crimes à distância, em que o início da execução ocorre em território nacional e a consumação fora dele ou vice-versa: a competência será do Juiz do local onde tiver sido praticado o último ato de execução (no primeiro caso), ou onde se consumou ou deveria se consumar a infração penal (segundo caso).
E por crimes plurilocais deve-se entender aqueles delitos em que parte do iter criminoso seja realizado em mais de um lugar. Nessas situações, a regra a ser observada, primeiro, é a do local do resultado, isto é, do local onde se consumou a infração.
Embora as questões atinentes à consumação do delito exijam reflexões do Direito Penal, pode-se deixar consignado que se considera consumado o delito quando nele se reúnem todos os elementos do tipo penal. Como se sabe, todo delito apresenta um resultado, no âmbito da lesividade a um determinado bem juridicamente protegido, daí falar-se em resultado normativo, quando não houver alteração naturalística da realidade pela ação delituosa. Na hipótese de não ter sido atingido efetivamente o bem jurídico, tendo sido ele apenas exposto a risco de lesão pela conduta tipificada penalmente, caso da tentativa, a competência será do local onde se realizaram os últimos atos de execução.
Assim, também nos crimes plurilocais em que a conduta tenha se realizado em mais de um lugar, será considerado o local dos últimos atos de execução, para a definição da competência no caso de delito tentado.
O segundo critério para se apontar a competência para julgamento de determinada ação penal é o da natureza da infração.
Ressalve-se, todavia, que a competência do Tribunal do Júri e a do Juizado Especial Criminal não são reguladas pelas leis de organização judiciária e configuram competência de jurisdição, sendo a competência do primeiro firmada em razão da matéria – o que implica a impossibilidade de se reconhecer validade às decisões proferidas por outros órgãos jurisdicionais – e a do segundo (Juizados Especiais), em razão do rito ou procedimento, cuja violação poderá significar infringência ao devido processo legal.
O que define a exigência dos Juizados Especiais é muito mais o seu conteúdo de direito material (penal) que propriamente procedimental. O que não pode, absolutamente, ser afastado do acusado não é a competência dos Juizados Especiais, mas a possibilidade e a oportunidade de aplicação do chamado processo consensual, consubstanciado no instituto da transação penal e da atribuição de efeitos penais à composição civil dos danos causados pela infração de menor potencial ofensivo. Como se observa, a competência dos Juizados Especiais é muito mais territorial (latu sensu) que propriamente de jurisdição, embora não se apresente com todas as características inerentes àquela modalidade de competência.
É possível a aplicação da Lei n.º 9.099/95 à Justiça Eleitoral, porque o que realmente importa em tema de jurisdição penal é, pelo menos, a realização da igualdade de tratamento entre os jurisdicionados.
No concurso (conexão/continência) entre crimes de competência dos Juizados e de outros (Juiz singular comum ou Tribunal do Júri), prevalecerá a competência destes últimos. Por óbvio, daí não se poderá concluir que estaria também afastada a transação penal e/ou as regras previstas para a hipótese de composição civil, independentemente da modificação de competência. Assim, tratando-se de crimes de menor potencial ofensivo, a violação às citadas regras (transação, principalmente) determinaria a nulidade absoluta do processo.
O domicílio e a residência do réu somente determinará a competência quando não for conhecido o lugar da infração, ou, sendo ele conhecido, trata-se de ação penal privada, quando, então, poderá o querelante (autor da ação) escolher entre um e outro. Se o acusado tiver mais de uma residência ou ela não for conhecida, ou ignorado o seu paradeiro, aplicar-se-á a regra da prevenção.
A prevenção constitui critério subsidiário de determinação de competência, no sentido de ser aplicado apenas diante da insuficiência dos demais. E, tratando-se de competência territorial, é também critério de competência relativa, como relativa é a nulidade decorrente de sua não-observância (Súmula n.º 706 do STF). A existência de dois ou mais Juízes competentes enseja a determinação da competência pela antecedência da prática de qualquer ato de conteúdo decisório (artigo 83 do CPP).
Percebe-se a preocupação do legislador em se referir às duas fases da persecução penal, quais sejam, a fase pré-processual – anterior à ação penal – e a fase processual propriamente dita.
Só o recebimento da denúncia ou queixa já constitui ato impregnado de conteúdo decisório, na medida em que, em tese, pressupõe o exame e o afastamento de algumas questões relativas às condições da ação, dos pressupostos processuais e da própria afirmação de competência.
Já no que respeita à fase pré-processual, a palavra “medida” ali impregnada não pode estar se referindo a quaisquer atos investigatórios praticados no curso do inquérito policial ou no procedimento administrativo, mas unicamente à atuação jurisdicional, isto é, ato do Juiz, no exercício da tutela penal.
Tornará prevento o Juiz o ato praticado por aquele que, igualmente competente, anteceder a outro ou a outros na decretação da prisão preventiva ou mesmo da prisão temporária, uma vez que tais medidas ostentam nítido caráter cautelar.
Também a expedição de mandado de busca e apreensão configura ato de prevenção do Juízo, tendo em vista o conteúdo inegavelmente decisório do ato judicial que excepciona a norma constitucional da inviolabilidade do domicílio.
Não constituirão atos de prevenção, porém, a simples antecedência de distribuição de inquérito policial ou mesmo de ação penal ainda não despachada, pela simples razão de não conterem, ambos, nenhuma atuação jurisdicional, rigorosamente falando.
Nesse sentido, a apreciação de pedido de habeas corpus, que constitui modalidade de ação autônoma, e não recurso, igualmente tornará prevento o Juízo, na medida em que tanto a rejeição da ordem quanto a sua concessão, implicam, em regra, o conhecimento prévio da questão penal, com apreciação, ainda que sumária, da viabilidade da persecução penal.
A antecedência na distribuição do inquérito ou qualquer diligência anterior à denúncia ou queixa (pedido de fiança, decretação de prisão preventiva) fixará a competência quando houver, na mesma circunscrição judiciária, mais de um Juiz igualmente competente.


Fonte: Curso de Processo Penal. Eugênio Pacelli de Oliveira.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Elementos Acidentais dos Negócios Jurídicos

O negócio jurídico apresenta elementos essenciais, obrigatórios para sua constituição, entretanto, outros elementos, porém, podem estar presentes e modificá-los. Embora facultativos, esses elementos, uma vez apostos ao negócio pela vontade das partes, tornam-se, para os atos ou negócios a que se agregam, inarredavelmente essenciais. São facultativos no sentido de que, em tese, o negócio jurídico poderia sobreviver sem eles. No caso concreto, porém, uma vez presentes no negócio, ficam indiscutivelmente ligados a ele. Esses elementos integram o chamado plano de eficácia dos negócios jurídicos.
O Código Civil apresenta três tipos de elementos acidentais: condição, termo e encargo. Essa enumeração não é taxativa.
- condição
O Código Civil define condição como a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto (artigo 121). São elementos essenciais do instituto: a futuridade e a incerteza do evento.
Enquanto não realizada a condição, o ato não pode ser exigido. A condição atinge os efeitos dos negócios jurídicos se assim desejarem os agentes. Uma vez que o ato sob condição apresenta-se como um todo unitário, não deve a condição ser encarada como cláusula acessória. A condição agrega-se inarredavelmente ao negócio, por vontade exclusiva das partes, como acentua o vigente Código, e não pode ser preterida. Apesar de a condição não ser tratada como elemento essencial, quando aposta a negócio torna-se essencial para ele.
A palavra condição tem várias acepções no Direito. Sob o prisma ora enfocado, trata-se de determinação da vontade dos manifestantes em subordinar o efeito do negócio a evento futuro e incerto. Pode o termo, também, ser tomado no sentido de requisito do ato, daí as expressões condição de validade ou condição de capacidade. Numa terceira acepção, a condição é considerada pressuposto do ato, sendo chamada por alguns de condição legal (conditio iuris), que também se denomina condição imprópria. É o caso, por exemplo, de se exigir em negócio translativo de imóveis escritura pública com valor superior ao legal.
Fique assente que a condição deve-se referir a evento incerto. Essa incerteza deve ser objetiva e não subjetiva. Não há condição se o agente estiver em dúvida sobre a ocorrência ou não de determinado fato.
Há certos atos que não comportam condição como exceção dentro do ordenamento. São os direitos de família puros e os direitos personalíssimos. Assim, o casamento, o reconhecimento de filho, a adoção e a emancipação não a admitem. Assim também, por sua natureza, a aceitação ou a renúncia da herança.
Dispõe o artigo 122 do Código Civil que são lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes. Devem ser consideradas ilícitas as condições imorais e as ilegais.
A segunda parte do artigo 122 estipula que entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo o efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. A primeira hipótese do artigo trata das chamadas condições perplexas; a segunda, das condições potestativas.
A condição potestativa é a que depende de um dos contratantes. Uma das partes pode provocar ou impedir a sua ocorrência. A ela contrapõe-se a condição causal, a que depende do acaso, não estando, de qualquer modo, no poder de decisão dos contraentes.
Nem todas as condições potestativas são ilícitas. Só aquelas onde a eficácia do negócio fica exclusivamente ao arbítrio de uma das partes, sem a interferência de qualquer fator externo.
Distinguem-se, então, as condições potestativas simples das condições puramente potestativas. Nas primeiras, não há apenas vontade do interessado, mas também interferência de fato exterior. Assim serão, por exemplo, a condição “se eu me casar”. Por outro lado, a condição puramente potestativa depende apenas e exclusivamente da vontade do interessado: “se eu quiser”. A proibição do artigo 122 refere-se tão-só às condições puramente potestativas.
As condições simplesmente potestativas exigem também a ocorrência de fato estranho ao mero arbítrio da parte. Exemplo: “dar-te-ei uma quantia se fores à Europa”. Nossa jurisprudência tem entendido, sem discrepância, que essa cláusula não configura condição puramente potestativa, mas potestativa simples. Isso porque a manifestação depende de circunstâncias externas a sua exclusiva vontade, não de mero capricho. Simplesmente potestativa é a condição que extravasa o mero arbítrio do agente.
A condição potestativa simples pode perder esse caráter depois de feita a avença. Considere-se o caso: “dar-te-ei uma importância se fores a determinado local”. Se o agente vier a sofrer um acidente que o impeça de se locomover, a condição, de potestativa que era, torna-se promíscua, e passa a ser regida pelo caso. Não se confunde esta, no entanto, com as condições mistas, estas ao mesmo tempo dependendo da vontade das partes e do acaso ou de terceiro: “se ele for eleito deputado”, por exemplo.
Nos termos do artigo 123 do Código Civil invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados: as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas; as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita; as condições incompreensíveis ou contraditórias.
As condições juridicamente impossíveis invalidam os negócios a ela subordinados. O Código Civil, contudo, especifica que essa nulidade ocorre apenas se a condição for suspensiva. Se resolutiva for, o ato ou negócio jurídico já possui, de início, plena eficácia, que não será tolhida pela condição ilegal. No tocante às condições fisicamente impossíveis, o Código adota idêntica solução: se for suspensiva, o negócio será inválido.
O artigo 124 acrescenta que têm-se por inexistentes as condições impossíveis, quando resolutivas, e as de não fazer coisa impossível. Inexistentes as condições desse jaez, o negócio terá, pois, plena eficácia e validade.
Quanto à ilicitude da condição ou a de fazer coisa ilícita, de forma peremptória, o Código aponta que essas condições invalidam, em qualquer circunstância, os negócios jurídicos que lhes são subordinados. As condições incompreensíveis ou contraditórias invalidam os negócios jurídicos respectivos.
As condições são elementos acidentais do negócio até que se materializem em um negócio jurídico. Nesse sentido, se a condição não puder ser entendida com clareza, se for contraditória dentro do contexto do negócio jurídico, o vigente sistema pune com a invalidade de todo o negócio jurídico a ela subordinado. De qualquer forma, a incompreensibilidade da condição deve ser apurada no caso concreto e tem a ver com as regras de interpretação do negócio jurídico.
Prescreve o artigo 125 do Código Civil que, subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta não se verificar, não se terá adquirido o direito a que ele visa. Sob essa forma de condição, portanto, o nascimento do direito fica em suspenso, a obrigação não existe durante o período de pendência da condição. O titular tem apenas situação jurídica condicional, mera expectativa.
Resolutiva é a condição cujo implemento faz cessar os efeitos do ato ou negócio jurídico.
Se for resolutiva a condição, enquanto esta não se realizar, vigorará o negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido (artigo 127 do CC).
Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o direito a que ela se opõe, mas se aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, salvo disposição em contrário, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme os ditames da boa-fé (artigo 128 do CC).
Na condição suspensiva, seu implemento faz com que o negócio tenha vida, enquanto na condição resolutiva, seu implemento faz com que o negócio cesse sua eficácia.
A condição suspensiva pode ser examinada em três estágios possíveis: o estado de pendência (situação em que ainda não se verificou o evento futuro e incerto); o estado de implemento da condição (quando o evento efetivamente ocorre); e o estado de frustração (quando o evento definitivamente não tem mais possibilidade de ocorrer).
Pendente a condição, a eficácia do ato fica suspensa. Se se trata de crédito, enquanto não ocorrer o implemento da condição, é ele inexigível, não há curso da prescrição e, se houver pagamento por erro, há direito à repetição. Ao titular de direito eventual, nos casos de condição resolutiva ou suspensiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo. Nessa hipótese, pode o titular desse direito, sob condição suspensiva geralmente, lançar mão de medidas processuais cautelares para fazer valê-lo no futuro. A medida cautelar deve sobreviver até o implemento da condição, ou melhor, até 30 dias após o implemento da condição ou até a data de sua frustração.
Quando ocorre o implemento da condição, o direito passa de eventual a adquirido, obtendo eficácia o ato ou negócio, como se desde o princípio fosse puro e simples e não eventual. Trata-se do chamado efeito retroativo das condições.
Se a condição se frustra, é como se nunca houvesse existido a estipulação.
O ato sob condição suspensiva está formado, perfeito. Já não podem as partes retratar-se, porque o vínculo derivado da manifestação de vontade está estabelecido. Desse modo, o direito condicional é transmissível, inter vivos ou causa mortis, mas é transmissível com a característica de direito condicional, pois ninguém pode transferir mais direitos do que tem.
No caso de condição resolutiva, dá-se, de plano, desde logo, a aquisição do direito. A situação é inversa à condição suspensiva. O implemento da condição resolutiva “resolve” o direito em questão, isto é, faz cessar seus efeitos, extingue-se. A obrigação é desde logo exigível, mas o implemento restitui as partes ao estado anterior. A retroatividade das condições é aqui mais patente porque o direito sob condição resolutiva é limitado, podendo-se até dizer, ainda que impropriamente, que se trata de um direito “temporário”. Com o implemento, apagam-se os traços do direito. A cláusula resolutiva, por ser limitação ao direito, deve constar do Registro Público porque, se assim não for, terceiros não serão obrigados a respeitá-la, não sendo atingidos, de qualquer forma, os atos de administração.
Nos termos do artigo 474 do Código Civil, a condição resolutiva pode ser expressa ou tácita. Se for expressa, opera de pleno direito, independentemente de notificação ou interpelação. Se for tácita, há necessidade desse procedimento.
No tocante à condição suspensiva há de se levar em conta o disposto no artigo 126: se alguém dispuser de uma coisa sob condição suspensiva e, pendente esta, fizer quanto àquelas novas disposições, estas não terão valor, realizada a condição, se com ela forem incompatíveis.
No caso de resolutória expressa, quando essa modalidade de pactua no contrato, a parte pode pedir desde logo ao Juiz aplicação dos efeitos do inadimplemento das obrigações contratuais, independentemente de qualquer interpelação judicial, considerando-se o contrato rescindido pelo simples fato do não-cumprimento da obrigação, no tempo, lugar e forma devidos.
Em conformidade com o artigo 129 do Código Civil, reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição, cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte, a quem desfavorecer, considerando-se, ao contrário, verificada a condição maliciosamente levada por aquele a quem aproveita seu implemento. O Código pune, em ambas situações, quem impede e quem força, respectivamente, a realização do evento em proveito próprio.
A malícia, ou seja, o dolo, é requisito expressamente exigido pelo artigo 129 para verificação da hipótese, não bastando, pois, por vontade do legislador, a simples culpa. Presentes os pressupostos do dispositivo, o dano é ressarcido de modo específico, considerando-se verificada a condição obstada e não verificada aquela cujo implemento foi maliciosamente causado pela parte interessada.
Se o fato for levado a efeito por terceiro, sem participação da parte interessada, o caso não é de se considerar como implemento ou não da condição, mas tão-só de pedir indenização a esse terceiro.
Se a parte não age com dolo (malícia, como diz a lei), mas por negligência ou imperícia, e tem-se a condição por verificada ou não, conforme o caso, nem por isso deixa de ser aplicável e regra da responsabilidade decorrente da violação das obrigações, contratuais ou não, responsabilidade que se traduz no dever de ressarcimento das perdas e danos causados.
A regra do artigo 129 é baseada no princípio da responsabilidade, pois, convocando ou frustrando a condição, um dos contratantes causa prejuízo ao outro, e a melhor maneira de repará-lo é considerar a condição como não ocorria ou realizada.
O estado de pendência de uma condição cessa por seu implemento ou por sua falta, isto é, quando a condição falha, não se realiza ou se realiza fora do tempo estipulado.
Ocorrendo o implemento da condição, isto é, realizada ou verificada a condição, muitos entendem que tudo se passa como se o ato fosse puro e simples, como se o tempo medeado entre a manifestação de vontade e o implemento da condição não houvesse. É o que se denomina efeito retroativo da condição.
Como nosso Código Civil não possui dispositivo específico a respeito da retroatividade, não se pode dizer que ocorra retroação. O efeito retroativo só operará se expressamente convencionado pelas partes, pois não decorre da lei.
- termo
A eficácia de um negócio jurídico pode ser fixada no tempo. Determinam as partes ou fixa o agente quando a eficácia do ato começará e terminará. Esse dia do início e do fim da eficácia do negócio jurídico chama-se termo, que pode ser inicial ou final.
Denomina-se termo inicial (suspensivo, ou dies a quo) aquele a partir do qual se pode exercer o direito; é termo final (extintivo ou dies ad quem) aquele no qual termina a produção dos efeitos do negócio jurídico.
O termo inicial suspende a eficácia de um negócio até sua ocorrência, enquanto o termo final resolve seus efeitos.
Ao termo inicial e final aplicam-se, no que couber, as disposições relativas às condições suspensiva e resolutiva. O termo, porém, é modalidade do negócio jurídico que tem por finalidade suspender a execução ou efeito de uma obrigação, até um momento determinado, ou o advento de um evento futuro e certo. Aí reside a diferença entre o termo e a condição.
Na condição, tem-se em mira evento futuro e incerto; no termo, considera-se evento futuro e certo. Tanto que, na condição, o implemento desta foi falhar e o direito nunca vir a se consubstanciar; o termo é inexorável e sempre ocorrerá. No termo, o direito é futuro, mas deferido, porque não impede sua aquisição, cuja eficácia é apenas suspensa.
Como a compreensão de condição é muito próxima à compreensão do termo, a partir do direito a termo, a exemplo do direito condicional, permite-se a prática de atos conservatórios.
Embora o termo seja sempre certo, o momento de sua ocorrência pode ser indeterminado. Assim, é certo e determinado o vencimento da dívida no dia 30 de outubro. É indeterminado, porém certo, o termo fixado para o falecimento de uma pessoa. A doutrina, ainda que impropriamente, denomina, no caso, termo certo e termo incerto. É de capital importância saber se o termo é certo (determinado) ou incerto (indeterminado) porque a obrigação a termo certo constitui o devedor em mora, enquanto a de termo incerto necessita de interpelação do devedor.
O termo pode derivar da vontade das partes (termo propriamente dito ou termo convencional), decorrer de disposição legal (termo de direito) ou de decisão judicial (termo judicial).
Há atos, contudo, que não admitem a aposição de termo. Tal não é possível quando o direito for incompatível com o termo, dada sua natureza, bem como nos casos expressos em lei. Há incompatibilidade nos direitos de personalidade puros, nas relações de família e nos direitos que por sua própria natureza requerem execução imediata. Ninguém pode fazer adoção ou reconhecimento de filho subordinado a tais atos a termo, por exemplo.
É regra geral a interpretação que a aposição de termo seja feita em benefício da pessoa obrigada, salvo prescrição legal ou estipulação em contrário (artigo 133 do CC).
Diz-se que o prazo é certo se o ato é a termo certo, e prazo incerto se o ato é a termo incerto. Nos termos do artigo 132 do Código Civil, salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se os prazos, excluindo o dia do começo, e incluindo o dia do vencimento. Se o dia do vencimento cair em feriado, considerar-se-á prorrogado o prazo até o seguinte dia útil. Meado considera-se, em qualquer mês, o seu décimo quinto dia. Os prazos de meses e anos expiram no dia de igual número do início, ou no imediato, se faltar exata correspondência. Os prazos fixados por hora contar-se-ão de minuto a minuto.
Nos testamentos, o herdeiro tem a contagem de prazo a seu favor, preferindo ao legatário. A preferência do prazo em favor do devedor é que, no silêncio do contrato e na dúvida, deve ser beneficiado, em detrimento do credor, pois o primeiro deve cumprir a obrigação e está geralmente em situação de inferioridade.
Estabelece o artigo 134 do Código Civil que os negócios jurídicos entre vivos, sem prazo, são exeqüíveis desde logo, salvo se a execução tiver de ser feita em lugar diverso ou depender de tempo.
- encargo
O encargo ou modo é restrição imposta ao beneficiário de liberalidade. Trata-se de ônus que diminui a extensão da liberalidade.
Geralmente o encargo é aposto à doações;porém, a restrição é possível em qualquer ato de índole gratuita, como nos testamentos, na cessão não onerosa, na promessa de recompensa, na renúncia e, em geral, nas obrigações decorrentes de declaração unilateral de vontade.
Destarte, o encargo apresenta-se como restrição à liberdade, quer estabelecendo uma finalidade ao objeto do negócio, quer impondo uma obrigação ao favorecido, em benefício do instituidor ou de terceiro, ou mesmo da coletividade. Não deve, porém, o encargo se configurar em contraprestação; não pode ser visto como contrapartida ao benefício concedido. Se houver contraprestação típica, a avença deixa de ser liberal para ser onerosa, não se configurando o encargo.
A ilicitude ou a impossibilidade do encargo torna-o não escrito, valendo a liberalidade como pura e simples.
Em que pese a aparente semelhança, o encargo não de confunde com a condição. O encargo é coercitivo, o que não ocorre com a condição, uma vez que ninguém pode ser obrigado a cumpri-la. De outro lado, a condição suspende a aquisição do direito, se for suspensiva, o que não ocorre com o encargo, a não ser que assim seja expressamente disposto pelo manifestante (artigo 136 do CC). O não-cumprimento do encargo poderá resolver a liberalidade, mas a posteriori. O encargo obriga, mas não suspende o exercício do direito.
Na prática, surgindo dúvidas sobre a existência de condição ou encargo, deve-se concluir pela existência de encargo, porque é restrição menor que a condição.
O cumprimento do encargo, nas doações modais, pode ser exigido por via judicial pelo doador, quer o encargo haja sido imposto em seu benefício, quer em benefício do donatário, quer em benefício geral, assim como pelo terceiro favorecido pela liberalidade ou pelo Ministério Público, depois da morte do doador, se este não tiver tomado a iniciativa, nas liberalidades em geral.
O doador pode optar (assim como herdeiros) entre duas ações: a de resolução da liberalidade, do negócio, por descumprimento do encargo, que caracteriza a mora (artigo 555 do CC), e a obrigação do encargo (obrigação de fazer ou de dar, conforme a natureza do encargo), por força do artigo 553 do Código Civil.
Apesar de o encargo não ser essencial ao negócio jurídico, uma vez aposto, torna-se adquire essa característica, de modo que qualquer interessado (e o interesse deve ser examinado em face do caso concreto) está legitimado a pedir anulação do negócio.
Segundo o artigo 562 do Código Civil, a doação onerosa pode ser revogada por inexecução do encargo, se o donatário incorrer em mora. Não havendo prazo para o cumprimento, o doador poderá notificar judicialmente o donatário, assinando-lhe prazo razoável para que cumpra a obrigação assumida.
Se ao instituidor e seus herdeiros cabe ação para revogar a liberalidade, aos terceiros beneficiados e ao Ministério Público só caberá ação para executar o encargo, porque seu interesse situa-se tão-só na exigência de seu cumprimento. O instituidor pode optar entre a revogação da doação e a execução.
Falecendo o beneficiário antes de cumprir o ônus, a ele ficam obrigados seus herdeiros, a não ser que a disposição seja personalíssima e incompatível com estes.
O encargo ilícito ou impossível somente viciará o negócio se for motivo determinante da disposição, o que deve ser examinado no caso concreto. De outra forma, considera-se não escrito.


Fonte: Direito Civil – Parte Geral. Sílvio de Salvo Venosa.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Fins e Funções do Estado

O Estado, como forma de organização política, existe para satisfazer as necessidades humanas. A investigação dos fins do Estado deve ser tratada não só no domínio dos valores e da realidade, como também no campo da normatividade jurídica. É que a finalidade constitui o princípio que orienta e especifica qualquer instituição, notadamente estatal.
Jellinek foi o grande sistematizador das teorias dos fins do Estado, que assim os classificou:
- fins objetivos: nesta teoria, o fim o Estado surge da própria natureza das coisas; não é a vontade política que determina o fim do Estado. A natureza da ordem política é que dá objetivamente o fim do Estado, o qual surge de uma ordem natural, sendo, portanto, transcendente e independente da vontade humana. Investiga-se aqui o fim que cabe ao Estado em geral, abstrato e universal, e não a cada um em particular.
Pode-se falar também na existência de fins particulares objetivos. Para os autores que defendem esta teoria, cada Estado tem seus fins particulares, que resultam das circunstâncias em que eles surgiram e se desenvolveram e que são condicionantes de sua história. Confundem-se nesta teoria os fins do Estado com os interesses dos Estados e até de seus governos.
- fins subjetivos: o fim do Estado não é um dado natural de ordem política, mas independe de toda objetividade. Não há, assim, nenhum dado, mas um artifício. Os indivíduos que vivem em comunidade política se propõem a um fim próprio, independente de toda objetividade.
- fins particulares: são os que cabem a um Estado em um momento determinado, para os homens que o constituem. Com os fins particulares, os Estados se vocações históricas a cumprir no mundo.
- fins absolutos: consideram-se absolutos os fins do Estado que são determinados por uma valoração axiológica. O Estado não pode, de nenhum modo, desviar-se do seu fim, que é ideal e válido para todos os tempos e lugares.
- fins relativos: esta teoria considera que o fim do Estado é limitado pela própria natureza. O peculiar e próprio do Estado são as manifestações sistemáticas da vida solidária do homem. As três grandes categorias a que se reduz a vida do Estado são: conservação, ordenação e ajuda.
- fins universais: são os que correspondem ao Estado em abstrato, a qualquer Estado em todos os tempos.
- fins exclusivos e concorrentes: os fins exclusivos são aqueles privativos do Estado (segurança externa e interna) e os concorrentes admitem participação ou colaboração de outras sociedades, com as quais se identificam.
Pode-se dizer que o Estado, como sociedade política, existe para realizar a segurança, a justiça e o bem-estar econômico e social, os quais constituem os seus fins.
A segurança, como fim do Estado, pode ser individual e coletiva.
A justiça possibilita que, nas relações entre os homens, seja substituído o arbítrio da violência individual por um complexo de regras capazes de satisfazer o instinto natural da própria justiça.
O conceito de justiça compreende:
a) justiça comutativa, cuja regra é a igualdade, nas relações entre os indivíduos, da equivalência dos valores permutados (cada um deve receber, nas relações recíprocas, de acordo com a prestação que efetuou aos indivíduos);
b) justiça distributiva, cuja regra é a desigualdade para remunerar cada qual segundo os seus méritos, de acordo com o tipo de atividade produtiva que permanentemente presta à coletividade, ou a situação social de carência em que se encontra. Projeta-se, assim, a justiça distributiva nas políticas econômicas e socais do Estado.
O bem-estar econômico e social é outra finalidade do Estado. O que se objetiva é a promoção de condições de vida dos indivíduos, garantindo-lhes o acesso aos bens econômicos que permitam a elevação de camadas sociais mais pobres, contemplando-as com educação, habitação, entre outros serviços.
No âmbito social, uma das tarefas essenciais do Estado consiste em salvaguardar a liberdade, a possibilidade de desenvolvimento pessoal e a esfera privada do ser humano, apesar da amplidão das intervenções sociais.
O bem comum consiste na finalidade legítima do Estado.
Os fins do Estado são alcançados mediante atividades que lhe são constitucionalmente atribuídas. Tais funções são desenvolvidas por órgãos estatais, segundo a competência de que dispõem.
Além de atividade, a função do Estado tem o sentido de fim, tarefa ou incumbência, correspondente a certa necessidade coletiva, ou a certa zona da vida social.
Pode-se definir a função do Estado como a atividade desenvolvida, no todo ou em parte, por um ou vários órgãos do poder político, de modo duradouro, independentemente de outras atividades, em particular na sua forma, e que visa à prossecução dos fins do Estado.
A determinação das funções do Estado resulta de três critérios: material, formal e orgânico.
O critério material parte da análise do conteúdo dos diversos tipos de atos ou dos resultados em se traduz a atividade do Estado, para chegar ao conceito de função.
O critério formal atende às circunstâncias exteriores das atividades do Estado, distinguindo as funções segundo a forma externa revestida para o exercício de cada uma delas.
O critério orgânico relaciona intimamente as funções do Estado com os órgãos que as exercitam, e das diversas características desses órgãos ou da sua posição na estrutura do poder político infere a especialidade de suas atividades.
As funções jurídicas são as de criação e execução do Direito e compreendem a função legislativa, cujo objeto direto e imediato é o de estatuir normas de caráter geral e impessoal inovadoras da ordem jurídica, e a executiva, exercitável por meio do processo jurisdicional, caracterizado pela imparcialidade e passividade, e pelo processo administrativo, com as características de parcialidade e iniciativa.
Já as funções não jurídicas compreendem:
a) a função política, cuja característica é a liberdade de opção entre várias soluções possíveis, com vistas à conservação da sociedade política e a definição e prossecução do interesse geral, por meio da livre escolha de rumos e soluções consideradas preferíveis;
b) a função técnica, cujo objeto direto e imediato consiste na produção de bens ou na prestação de serviços destinados à satisfação das necessidades coletivas de caráter material ou cultural, de harmonia com preceitos práticos tendentes a obter a máxima eficiência dos meios empregados.
O fim jurídico do Estado refere-se à criação e execução do Direito.
O fim cultural do Estado corresponde ao desenvolvimento das condições materiais para a vida dos cidadãos, consoante a ideologia do Estado considerado.
Para atingir tais fins, o Estado atuaria através de dois tipos de meios: a criação de normas jurídicas gerais e abstratas e a realização de atos concretos. No primeiro caso, a função do Estado seria legislativa, e no segundo, a função seria administrativa quando visasse a um fim cultural, ou jurisdicional, quando objetivasse um fim jurídico.
O ato jurídico, considerado como manifestação de vontade dirigida a modificação da ordem jurídica, presente ou próxima futura, toma uma das seguintes formas:
a) ato-regra, o que é realizado com a intenção de modificar as normas jurídicas abstratas constitutivas do direito objetivo;
b) ato-condição, o que torna aplicáveis a um sujeito determinadas regras abstratas, que, antes de sua prática, lhe eram inaplicáveis;
c) ato-subjetivo, o que cria para alguém uma obrigação especial, concreta, individual e momentânea, que nenhuma regra abstrata lhe impunha.
Definidos os atos jurídicos, as funções do Estado podem ser caracterizadas:
- a função legislativa consiste na prática de atos-regra;
- a função administrativa consiste na prática de atos-condição, dos atos subjetivos e das denominadas operações materiais, sem caráter jurídico, realizadas pelos órgãos da Administração Pública, destinadas a assegurar o funcionamento dos serviços;
- a função jurisdicional conste na prática de atos jurisdicionais, que tanto podem ser atos-condição como atos subjetivos. O que dos define não é o seu conteúdo, mas a circunstância de provirem de um órgão dotado de imparcialidade, independência (Tribunal ou Juiz singular).
Para Kelsen, o Estado se reduz à unidade personificada de uma ordem jurídica e se confunde com a própria ordem jurídica. As funções do Estado consistem, desta forma, na criação e na aplicação do Direito.
A classificação das funções do Estado acarreta as seguintes ilações sumariadas por Jorge Miranda:
a) aparecimento, em todas as classificações, de uma função legislativa, de uma função administrativa ou executiva strictu sensu e de uma função jurisdicional, ainda que com diferentes relacionamentos;
b) correlação ou dependência das classificações das orientações teórica globais perfilhadas pelos autores;
c) relatividade histórica ou dependência também da experiência histórica e da situação concreta do Estado;
d) reconhecimento de que, a par das classificações de funções, se procede a classificações de atos (ou de tipos de atos) jurídico-públicos.
Da análise de todas essas teorias, acredita-se resultar a observação de que não existem apenas funções jurídicas do Estado: é que há o Estado cultural, o Estado do bem-estar, o Estado ético e ainda o Estado social. Assim, além da criação e execução do Direito, outras funções não jurídicas se processam mediante atos políticos e atos materiais, a despeito de serem cercados pela malha de uma regulamentação jurídica e influírem na esfera do Direito.
Assinale-se que, embora sejam as funções do Estado abstratamente distintas umas das outras, os atos que manifestam podem ter caráter misto. Desta forma, pode haver atos que, embora tidos como legislativos, simultaneamente são manifestações do Poder Executivo, e mesmo certos atos jurisdicionais que contêm elementos do Poder Legislativo.
Às funções clássicas do Estado, quais sejam, legislativa, executiva e jurisdicional, deve-se acrescer outras necessárias para a garantia do processo democrático, e que são:
a) função de fiscalização ou de controle, a cargo do Ministério Público e dos Tribunais de Contas;
b) função legislativa constitucional de emendar e revisar a Constituição;
c) função simbólica, típica do chefe de Estado, voltada para a representação do Estado e dos valores nacionais.

Fonte: Direito Constitucional. Kildare Gonçalves Carvalho.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Vícios do Negócio Jurídico: Lesão

A lesão, como meio de viciar o negócio jurídico, é, em síntese, a desproporcionalidade existente nas prestações. É o prejuízo que uma pessoa sofre na conclusão de um ato negocial resultante da desproporção existente entre as prestações das duas partes.
O instituto da lesão justifica-se como forma de proteção ao contratante que se encontra em estado de inferioridade. No contrato, mesmo aqueles paritários, ou seja, aqueles em que as partes discutem livremente suas cláusulas, em determinadas situações, um dos contratantes, por premências várias, é colocado em situação de inferioridade. Esse agente perde a noção do justo e o do real, e sua vontade é conduzida a praticar atos que constituem verdadeiros disparates do ponto de vista econômico. É evidente que sua vontade está viciada, contaminada que é por pressões de natureza vária.
Na lesão há elemento objetivo representado pela desproporção do preço, desproporção entre as prestações, mas também há elemento subjetivo, que faz aproximar o defeito dos vícios de vontade, representado pelo estado de necessidade, inexperiência ou leviandade de uma das partes, de que se aproveita a outra das partes no negócio.
O artigo 157 do Código Civil assim define a lesão:



Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por
inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da
prestação oposta.
§ 1o Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os
valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.
§ 2o Não
se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou
se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.


Poderá alegar lesão qualquer das partes contratantes e não apenas o vendedor.
A Lei n.º 1.521/51, que tipifica os crimes contra a economia popular, assim define uma das formas de usura pecuniária ou real, em seu artigo 4º:



“Obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando de premente necessidade,
inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o
quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida”.


O requisito objetivo configura-se no lucro exagerado, pela desproporção das prestações que fornece um dos contratantes. Pelo que se depreende da lei dos crimes contra a economia popular, tal requisito foi tarifado em um quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida.
O requisito subjetivo consiste no que a doutrina chama dolo de aproveitamento e afigura-se, como dizem os diplomas legislativos, na circunstância de uma das partes aproveitar-se da outra pela inexperiência, leviandade ou estado de premente necessidade. Tais situações psicológicas são aferidas no momento do contrato.
Verificados esses dois pressupostos, o ato é anulável. Contudo, a solução do vigente ordenamento, já reclamada pela doutrina, permite que o negócio seja aproveitado, conforme o § 2º do artigo 157, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.
É irrelevante o fato de o lesado dispor de fortuna, pois a necessidade se configura na impossibilidade de evitar o contrato; a necessidade contratual, portanto, independe do poder econômico do lesado.
Além da necessidade, caracteriza ou pode caracterizar o vício a inexperiência do lesado. Trata-se de pessoa envolvida no negócio sem maiores conhecimento de valores, desacostumada no trato de determinado negócio ou dos negócios jurídicos em geral. Mesmo o erudito, o culto, o técnico pode ser lesado sob determinadas circunstâncias, se não conhece os meandros dos negócios jurídicos em que se envolve.
A leviandade é outro elemento estatuído na lei penal. Trata-se da irresponsabilidade do lesado. É leviano aquele que procede irrefletidamente, impensadamente. O Direito tem o dever de proteger as vítimas contra tais atos.
A lesão só é ocorrível nos contratos comutativos, porque nestes deve haver presumida equivalência das prestações. Os contratos aleatórios, em geral, não admitem esse vício, ao menos como regra geral, pois suas prestações, por natureza, já se mostram desequilibradas.
A desproporção do preço deve ser apurada pela técnica pericial, devidamente ponderada pelo julgador.
A ação judicial contra a lesão visa a restituição do bem vendido, se se tratar de compra e venda, ou restabelecimento da situação anterior, quando possível. Há faculdade de evitar tal deslinde com a complementação ou redução do preço, conforme a situação, o que não desnatura o caráter típico da ação. Fundamentalmente, seu objeto é o retorno ao estado anterior. A pretensão pode conter pedido subsidiário ou alternativo, portanto.
A ação é de natureza pessoal, mas, se versar sobre imóveis, é imprescindível a presença de ambos os cônjuges, segundo exigência do artigo 10, § 1º do Código de Processo Civil.
Se a coisa se encontrar em poder de terceiros, a discussão de direito obrigacional restringe-se essencialmente entre alienante e adquirente. O terceiro será demandado como simples detentor. Se vier a devolver o bem, terá o direito à indenização, seguindo os princípios da evicção.
Como o instituto não se restringe apenas à compra e veda, conforme a natureza do contrato é impossível a volta ao estado anterior, só restando o caminho da indenização, por perdas e danos.
Na lide entre os participantes do contrato lesionário, o terceiro possuidor pode ingressar no processo como assistente, nos termos do artigo 50 do Código de Processo Civil.
Se o terceiro possuidor for demandado para restituir a coisa, deve denunciar a lide ao transmitente, de acordo com o artigo 70, inciso do estatuto processual.
Não é de se admitir que os contratantes renunciem previamente ao direito de anular o contrato por qualquer vício de vontade e muito menos por lesão. Permitir esse artifício equivaleria a anular o princípio da lesão, afastando do Poder Judiciário se exame. O mesmo se diga em relação a qualquer outro vício de vontade.
A renúncia posterior ao ato será válida, se especificado no instrumento o preço real ou justo e se a parte prejudicada se conformar em manter o negócio. De qualquer modo, a renúncia posterior só será válida se ausentes os fatores lesionários.
Para o exame da prescrição, deve ser definido o ato como nulo ou anulável. O ato nulo, segundo a doutrina, ou nunca prescreve, ou prescreve no maior prazo previsto em lei, ou seja, aquele destinado às ações pessoais, 20 anos. No atual Código, os negócios nulos são imprescritíveis. Os atos anuláveis prescrevem em prazos menores, mais ou menos exíguos.
No atual Código, o legislador assume expressamente o prazo decadencial de 4 (quatro) anos, contado do dia em que se realizou o negócio, citando expressamente a lesão (artigo 178, inciso II).


Fonte: Direito Civil – Parte Geral. Sílvio de Salvo Venosa.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Arrependimento Posterior, Crime Impossível e Agravação pelo Resultado

Arrependimento Posterior
O arrependimento posterior é considerado uma causa geral de diminuição da pena. Toda vez que o legislador nos fornecer em frações as diminuições ou os aumentos a serem aplicados, estaremos, respectivamente, diante de causas de diminuição ou de aumento de pena. Se essas causas se encontrarem na Parte Geral do Código Penal, receberão a denominação de causas gerais de diminuição ou de aumento de pena; ao contrário, se residirem na parte especial do Código Penal, serão conhecidas como causas especiais de diminuição ou de aumento de pena. Diante da redação do artigo 16 e em virtude da localização no Código Penal, chega-se à conclusão de que o arrependimento posterior é causa geral de diminuição de pena, também conhecida como minorante.
A primeira ilação que se faz do artigo 16 do Código Penal é de que o instituto do arrependimento posterior só é cabível nas seguintes fases:
a) quando reparação do dano ou a restituição da coisa é feita ainda na fase extrajudicial, isto é, enquanto estiverem em curso as investigações;
b) mesmo depois de encerrado o inquérito policial, como as sua conseqüente remessa à Justiça, pode o agente, valer-se do arrependimento posterior, desde que restitua a coisa ou repare o dano por ele causado à vítima até o recebimento da denúncia.
O arrependimento posterior só terá cabimento quando o agente praticar uma infração penal cujo tipo não preveja como seus elementos a violência ou a grave ameaça.
Tal regra é excepcionada, segundo posição do Supremo Tribunal Federal, somente quando o agente cometer o crime previsto no inciso VI do § 2º do artigo 171 do Código Penal (emissão de cheques em provisão suficiente de fundos), aplicando-se, nessa hipótese, o Enunciado n.º 554 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.
Contentou-se o artigo 16 do Código Penal em permitir a aplicação da causa de diminuição da pena por ele prevista quando o arrependimento posterior for voluntário, não se exigindo, aqui, o requisito da espontaneidade.
Também será beneficiado com o arrependimento posterior aquele que, já tendo sido descoberto pela autoridade policial como autor do delito do furto, devolve a res furtiva tão-somente com a finalidade de beneficiar-se com esse instituto.
Pode ocorrer que terceira pessoa restitua a coisa ou repare o dano em nome do agente. Nessa hipótese, têm-se, pelo menos, duas correntes. A primeira, cuja interpretação atrela-se à letra da lei, exige a pessoalidade do ato, não permitindo a redução da pena se a reparação do dano ou a restituição da coisa forem levadas a efeito por terceira pessoa; a segunda corrente, numa interpretação mais liberal, que atende tanto aos interesses da vítima como aos do agente, permite a aplicação da redução meso que a reparação do dano ou a restituição da coisa tenham sido feitas por terceiros.
A reparação do dano ou a restituição da coisa devem ser totais, e não somente parciais.
No caso de dois agentes que, por exemplo, praticam um delito de furto, pode acontecer que somente um deles (o que detinha em seu poder os bens subtraídos) voluntariamente restitua a res furtiva à vítima. Nessa hipótese, se a restituição tiver sido total, entendemos que ambos os agentes deverão ser beneficiados com a redução, mesmo que um deles não os tenha entregado voluntariamente à vítima.
Se não houver possibilidade de restituição da coisa, para que possa ser aplicada a redução relativa ao arrependimento posterior, é preciso que ocorra a reparação do dano.
Se, no caso, ainda na fase extrajudicial, o agente que tinha a intenção de praticar o crime devolver a res furtiva, pode-se aplicar a redução do arrependimento posterior? Aqueles que respondem afirmativamente à pergunta sustentam que o agente responderá por uma infração penal cujo tipo não prevê como seus elementos o emprego de grave ameaça ou violência contra a pessoa. Somente o agente que desejava praticar o crime de furto é que será beneficiado com a redução do arrependimento posterior, uma vez que responderá por essa infração penal, ficando impossibilitada a sua aplicação ao agente que cometera o crime de roubo.
A diferença básica entre o arrependimento posterior e o arrependimento eficaz reside no fato de que naquele o resultado já foi produzido e neste último o agente impede a sua produção.
Deve ser frisado, ainda, que não se admite a aplicação da redução de pena relativa ao arrependimento posterior dos crimes cometidos com violência ou grave ameaça, não havendo essa restrição para o arrependimento eficaz.
No arrependimento posterior há ma redução obrigatória da pena; no arrependimento eficaz, o agente só responde pelo atos já praticados, ficando afastada, portanto, a punição pela tentativa da infração penal cuja execução havia sido iniciada.
Nos termos do Enunciado n.º 554 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, “o pagamento de cheque emitido sem suficiente provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não obsta ao prosseguimento da ação penal”.
Numa interpretação a contrario sensu do referido Enunciado, chega-se à conclusão de que não será possível o início da ação penal se o agente efetuar o pagamento relativo ao cheque por ele emitido sem suficiente provisão de fundos, até o recebimento da denúncia.
A indagação que surge agora é a seguinte: terá aplicação o Enunciado n.º 554 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, mesmo diante do instituto do arrependimento posterior?
A maior parte da doutrina entende de forma positiva, opinando pela aplicação do Enunciado nos casos específicos de cheques emitidos sem suficiente provisão de fundos, ficando as demais situações regidas pelo artigo 16 do Código Penal, quando a ele se amoldarem.
O entendimento sumulado e ratificado posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal diz respeito tão-somente aos cheques emitidos sem suficiente provisão de fundos, e não àqueles falsamente preenchidos por estelionatários, que ao praticam a infração penal prevista no inciso VI do § 2º do artigo 171 do Código Penal, mas, sim, aquela tipificada em seu caput.
Nessa hipótese, embora fique afastada a aplicação do Enunciado n.º 554 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, permitindo o início da persecutio criminis in iudicio, poderá o agente beneficiar-se com a redução relativa ao arrependimento posterior, caso venha a reparar o dano por ele causado.
Pode ocorrer que o agente, mesmo não efetuando a reparação dos danos até o recebimento da denúncia ou da queixa, o faça até o julgamento do seu processo. Nesse caso, embora não seja aplicada a causa geral de diminuição da pena, prevista no artigo 16 do Código Penal, será pertinente a aplicação da circunstância atenuante elencada no artigo 65, inciso III, alínea “b”, segunda parte do Código Penal.
Nos crimes de competência do Juizado Especial Criminal, a composição dos danos, nos crimes em que a ação penal seja de iniciativa privada ou pública condicionada à representação, tem um efeito muito superior. Isso porque diz o parágrafo único do artigo 74 da Lei n.º 9.009/95 que, “tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta renúncia ao direito de queixa ou representação”.
A Lei n.º 9.099/95 não fez distinção se a infração penal foi ou não cometida com emprego de violência ou grave ameaça à pessoa.
Merece ser observado que embora a lei penal proíba o reconhecimento do arrependimento posterior nos crimes cometidos com violência ou grave ameaça à pessoa, isso não impede a aplicação da mencionada causa geral de redução de pena quando se estiver diante de delitos de natureza culposa.

Crime Impossível
O crime impossível veio previsto no artigo 17 do Código Penal: “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”.
Quando o legislador inicia a redação do artigo que prevê o crime impossível, parte da premissa de que o agente já ingressara na fase dos chamados atos de execução, e a consumação da infração penal só não ocorre por circunstâncias alheias à sua vontade.
Por essa razão é que o crime impossível também é conhecido como tentativa inidônea, inadequada ou quase-crime.
Várias teorias surgiram com o escopo de elucidar o crime impossível. Dentre elas destacam-se a teoria subjetiva e a teoria objetiva.
Para a teoria subjetiva, de Von Burti, não importa se o meio ou o objeto são absoluta ou relativamente ineficazes ou impróprios, pois que, para a configuração da tentativa, basta que o agente tenha agido com vontade de praticar a infração penal. Ressalte-se que o agente, para essa teoria, é punido pela sua intenção delituosa, mesmo que no caso concreto bem algum se colocasse em situação de perigo.
Em lado diametralmente oposto se encontra a teoria objetiva pura. Para essa teoria, não importa se o meio ou o objeto eram absoluta ou relativamente inidôneos para que se pudesse chegar ao resultado cogitado pelo agente, uma vez que em nenhuma dessas situações responderá ele pela tentativa.
Em situação intermediária encontra-se a teoria objetiva temperada, moderada ou matizada, que entende somente puníveis os atos praticados pelo agente quando os meios e os objetos são relativamente eficazes ou impróprios, isto é, quando há alguma possibilidade de o agente alcançar o resultado pretendido.
A teoria objetiva temperada foi adotada pelo Código Penal.
Percebe-se que o artigo 17 do Código Penal considera o crime impossível quando agente, depois de dar início aos atos de execução tendentes a consumar a infração penal, só não alcança o resultado por ele inicialmente pretendido porque utilizou meio absolutamente ineficaz. Meio é tudo aquilo utilizado pelo agente capaz de ajudá-lo a produzir o resultado por ele pretendido.
Meio absolutamente incapaz é aquele de que o agente se vale a fim de cometer a infração penal, mas que, no caso concreto, não possui a mínima aptidão para produzir os efeitos pretendidos.
Não só a absoluta ineficácia do meio inibe a punição pelo crime tentado, como também a absoluta impropriedade do objeto – entendido como tudo aquilo contra o qual se dirige a conduta do agente. Quando o objeto é absolutamente impróprio, não se fala em tentativa. Se alguém atira em direção a outrem que parece dormir, quando, na realidade, já se encontrava morto, não comete o delito de homicídio, haja vista que o objeto é absolutamente impróprio a essa finalidade, pois que só pode causar a morte de quem esteja vivo.
Fala-se em impropriedade relativa do objeto quando a pessoa ou a coisa contra a qual recai a conduta do agente é colocada efetivamente numa situação de perigo, ou seja, está apta a sofrer a conduta do agente, que pode vir a alcançar o resultado por ele pretendido inicialmente.
Nos termos do Enunciado n.º 145 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, “não há crime quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”.
Segundo o posicionamento da Corte Suprema, foi pacificado o entendimento no sentido de que, em determinadas situações, se a polícia preparar o flagrante de modo a tornar impossível a consumação do delito, tal situação importará em crime impossível, não havendo, por conseguinte, qualquer conduta que esteja a merecer reprimenda do Estado.
Uma vez preparado o flagrante pela polícia, a total impossibilidade de se consumar a infração penal pretendida pelo agente pode ocorrer tanto no caso da absoluta ineficácia do meio por ele utilizado como na absoluta impropriedade do objeto.
Há distinção entre flagrante preparado e flagrante esperado. No primeiro, o agente é estimulado pela vítima ou mesmo pela autoridade policial a cometer a infração penal com o escopo de prendê-lo. A vítima e a autoridade policial, e até terceiros que se prestem a esse papel, são conhecidas como agentes provocadores.
Já no flagrante esperado não havia essa estimulação por parte da vítima, da autoridade policial ou mesmo de terceiros, no sentido de induzir o agente à prática do delito. O agente, aqui, não é induzido a cometer delito algum. Nesses casos, a autoridade policial tem prévio conhecimento da intenção do agente em cometer a infração penal, o aguarda, sem estimulá-lo a absolutamente nada, e cuida de todos os detalhes de modo a evitar a consumação do crime. Fala-se, nessa hipótese, em possibilidade de tentativa.
Se o agente, analisando o caso concreto, estimulado ou não a praticar o crime, não tinha como alcançar a sua consumação porque dele soubera com antecedência e a autoridade policial e preparou de modo a evitá-lo, não se pode atribuir-lhe o conatus.
Não importa se o flagrante é preparado ou esperado. Desde que o agente não tenham qualquer possibilidade, em hipótese alguma, de chegar à consumação do delito, o caso será de crime impossível, considerando-se a absoluta ineficácia do meio por ele empregado, ou a absoluta impropriedade do objeto.
Se porventura restar consumada a infração penal, mesmo que tenham sido tomadas todas as providências para evitá-la, o agente responderá pelo crime, haja vista que, nesse caso, tendo conseguido alcançar o resultado inicialmente pretendido, é sinal de que os meios ou os objetos não eram absolutamente ineficazes ou impróprios.
Embora tato o crime impossível como no crime putativo a conduta do agente seja dirigida ao cometimento de uma infração penal, há diferença entre os dois institutos.
No crime impossível existe previsão e nosso ordenamento jurídico da infração penal que o agente pretende praticar. Contudo, por absoluta ineficácia do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime.
Já no crime putativo a situação é diversa, pois o agente almeja praticar uma infração penal que não encontra moldura em nossa legislação. O fato por ele praticado é atípico. É considerando, portanto, um indiferente penal.

Agravação pelo Resultado
Nos termos do artigo 19 do Código Penal, “pelo resultado que agrava especialmente a pena, só responde do agente que o houver causado ao menos culposamente”.
Ocorre crime qualificado pelo resultado quando o agente atua com dolo na conduta e dolo quanto ao resultado qualificador, ou dolo na conduta e culpa no que diz respeito ao resultado qualificador. Daí dizer-se que todo crime preterdoloso é um crime qualificado pelo resultado, mas nem todo crime qualificado pelo resultado é um crime preterdoloso. Há, portanto, dolo e dolo, ou dolo e culpa.
Como exemplo do primeiro caso tem-se a lesão corporal qualificada perda ou inutilização de membro, sentido ou função. Como exemplo de crime preterdoloso pode-se mencionar a lesão corporal qualificada pelo resultado aborto.
A finalidade do artigo 19 do Código Penal é afastar a responsabilidade peal sem culpa (objetiva), evitando-se, dessa forma, que o agente responda por resultados que sequer ingressaram na sua órbita de previsibilidade.
Para que o agente possa responder pelo resultado qualificador é preciso que este, embora previsível, não tenha sido previsto pelo agente. Na lição de Zaffaroni, “não só há responsabilidade penal objetiva quando se pune uma conduta só por ter causado um resultado, senão também quando se agrava a pena pela mesma razão”.
Segundo o artigo 19 do Código Penal, para responsabilizar o agente pelo resultado agravador, exige-se que este o tenha causado, ao menos de forma culposa, isto é, que em virtude de sua inobservância para com o seu dever de cuidado, com a sua conduta permitiu que viesse a ocorrer um resultado que, nas circunstâncias em que se encontrava, lhe era previsível. Se não houver a previsibilidade, um dos elementos necessários à caracterização do delito culposo, o resultado não poderá ser-lhe atribuído.
Rogério Greco entende que embora o ordenamento jurídico preveja uma série de crimes preterdolosos, sua existência contradiz a regra constante do parágrafo único do artigo 18 do Código Penal (salvo nos casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente). Isso porque, nas hipóteses em que o resultado qualificador deva ser atribuído ao agente a título de culpa, não existe nenhuma ressalvas nos artigos constantes do Código Penal ou na legislação extravagante. Em algumas situações o resultado qualificador poderá ser atribuído tanto a título de dolo como de culpa. Exemplo: lesão corporal qualificada pela perda ou inutilização de membro, sentido ou função. Esse resultado poderá ter sido querido inicialmente pelo agente, fazendo, outrossim, parte do seu dolo, ou poderá ter sido produzido culposamente. Em ambas as hipóteses, o agente responderá pelo delito qualificado.

Fonte: Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rogério Grecco.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Equilíbrio Econômico-Financeiro do Contrato Administrativo

Diversos fundamentos ou critérios têm sido utilizados para servir de parâmetro para obter o reequilíbrio financeiro dos contratos administrativos. Em algumas situações, em razão da previsibilidade do desequilíbrio, o próprio contrato define mecanismos que permitirão a recomposição do que foi originalmente pactuado de modo a evitar perdas ou ganhos exagerados para qualquer das partes. Em outras situações, e diante da certeza de que é impossível prever todas as circunstâncias capazes de afetar a equação financeira do contrato, haverá a necessidade de serem utilizados mecanismos que igualmente irão permitir o reequilíbrio da referida equação, não obstante ele tenha resultado de fatores imprevisíveis.
No Direito Privado, onde prevalece a disponibilidade de vontades das partes, questões relacionadas à manutenção do equilíbrio dos contratos encontram soluções mais fáceis do que as verificadas no âmbito público. Em nome da referida cláusula rebus sic stantibus, verificando-se fatos imprevisíveis e que afetem o equilíbrio econômico do contrato, deve ser promovida a recomposição de modo a restabelecer o seu equilíbrio inicial.
Nos contratos administrativos, os mecanismos e os instrumentos de reequilíbrio financeiro devem estar expressamente previstos nos instrumentos contratuais e na lei. A grande dificuldade consiste exatamente no ato de que é praticamente impossível aos contratos e à lei estabelecerem as situações em que ocorrerá o desequilíbrio contratual e, sobretudo, indicarem as soluções a serem adotadas para recompor esse reequilíbrio.
No âmbito do Direito Administrativo, a primeira decisão acerca do tema foi proferida em 1910 pelo Conselho de Estado da França. Afirmou-se a necessidade da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão sob o argumento de que deve haver honesta equivalência entre o que se concede ao concessionário e o que dele se deve exigir.
Em nosso Direito Administrativo, a Lei n.º 8.666/93 prevê, expressamente, a possibilidade de, por acordo das partes, ser promovida a recomposição do equilíbrio do contrato (art. 65, II, “d”).
Segundo a definição legal, fatos previsíveis, de conseqüências que se possam razoavelmente estimar, não podem servir de fundamento à pretensão de recompor preços. A lei não visa suprir a imprevidência do particular ou a imperícia em calcular o comportamento da curva inflacionária, por exemplo. Apenas o resguarda de situações extraordinárias, fora o risco normal da economia de seus negócios.
De fato, admitir a aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos fora das circunstâncias previstas em lei, vale dizer, aceitar a recomposição dos preços nos contratos a todo tempo e modo, na hipótese de o contratante apenas demonstrar alterações na relação econômico-financeira seria negar qualquer sentido ao instituto da licitação e premiar o licitante que, por má-fé ou inépcia empresarial, apresentou proposta que, com o tempo, revelou-se antieconômica.
Variações de custos previsíveis, para mais ou para menos, são normais na atividade empresarial e constituem a álea normal do empreendimento a serem suportadas pelo empresário contratado. Impõe-se, desse modo, a definição dos requisitos necessários à recomposição do equilíbrio econômico do contrato.
Ao admitir a recomposição de preços, a lei prevê os requisitos a serem observados. A aplicação da teoria da imprevisão aos contratos administrativos pressupõe a ocorrência de fatos: a) imprevisíveis, ou previsíveis, porém de conseqüências incalculáveis; b) estranhos à vontade das partes; c) inevitáveis; d) causadores de desequilíbrio muito grande no contrato.
E certo que as partes têm o direito de promover a recomposição do equilíbrio contratual. Esse direito, além de previsto na Lei de Licitações, é igualmente mencionado no próprio texto constitucional (art. 37, XXI da CF). Porém, o administrador deve agir com grande cautela e sempre justificar com toda a prudência os fundamentos que justificam a aplicação da teoria e o porquê da fixação dos novos valores.
Nesse sentido, são inadmissíveis explicações genéricas haja vista as circunstâncias que afetam o equilíbrio financeiro do contrato impactarem de modo diferenciado diversos insumos que compõem o custo do contrato. É possível que determinados itens que compõem os custos não sejam afetados, ao passo que outros sejam afetados de forma dramática, a ponto de justificarem a aplicação da teoria da imprevisão.
É importante observar que a recomposição não necessariamente irá implicar aumento de preços de contratos. São os fatos imprevisíveis, ou de efeitos incalculáveis, afetarem o equilíbrio do contrato de modo a reduzir os seus custos, deverá ser promovida a devida e proporcional redução dos valores do contrato.
A recomposição com fundamento na teoria da imprevisão deve ser formalizada por meio de termo aditivo ao contrato.
O reajuste de preços está relacionado a variações dos custos de produção que, por serem previsíveis, poderão estar devidamente indicados no contrato. Normalmente, são utilizados como critérios para promover o reajuste do valor do contrato indicies que medem a inflação, índices setoriais, ou índices de variação salarial. As cláusulas que prevêem o reajuste de preços têm o único objetivo de atualizar os valores dos contratos em face de situações simples e previsíveis. Tal medida deve ser vista como meio de reposição de perdas geradas pela inflação.
Importante distinção entre reajuste e recomposição é o fato de que a primeira necessariamente deverá estar prevista no contrato. Se não houver cláusula contratual definindo os critérios de reajuste, ele não há de ser admitido. A recomposição, ao contrário, não há de estar prevista no contrato pelo simples fato de decorrer de fatos imprevisíveis (ou, ainda que previsíveis, de efeitos incalculáveis).
O reajuste, em obediência à legislação que implantou o Plano Real, não poderá ocorrer em período inferiores a 1 (um) ano – contato da data de vigência da proposta, e não da assinatura do contrato ou início de sua vigência); enquanto a recomposição do contrato poderá verificar-se a qualquer tempo.
Em razão de o reajuste já estar previsto no contrato, a sua aplicação não deve ser feita por meio de aditivo. Não se está alterando o contrato, ao contrário, com a aplicação dos critérios de reajuste, estar-se-á tão-somente executando o que já se encontra previsto no contrato. Essa é a razão pela qual o reajuste se formaliza por meio de simples apostilamento, que dispensa, inclusive, publicação.
Modalidade especial de reajustamento do contrato, aplicável tão-somente aos contratos de serviços contínuos, corresponde à denominada repactuação, que se destina a recuperar os valores contratados da defasagem provocada pela inflação e se vincula não a um índice específico de correção, mas à variação dos custos do contrato.
A diferença entre reajuste e repactuação reside no critério empregado, pois, na primeira opção, vincula-se a recomposição a índice estabelecido contratualmente, ao passo que na segunda forma de recomposição, na repactuação, a recomposição do equilíbrio do contrato ocorre por meio de demonstração analítica da variação dos componentes dos custos que integram o contrato, tomando-se como parâmetro a proposta do contratado.
Outro aspecto que caracteriza a repactuação e a distingue do reajuste diz respeito ao critério para contagem do prazo mínimo de um ano. No reajuste, esse prazo, conforme dispuser o contrato e o edital da licitação, pode ser contado da data de apresentação das propostas ou da data da assinatura do contrato. Na repactuação, o interregno mínimo de um ano pode ser contado da data da proposta ou da data o orçamento a que a proposta se referir, conforme disponha o edital da licitação e o contrato. Nesta última hipótese, o orçamento deve referir-se à data do acordo, convenção, dissídio coletivo ou equivalente que estipule o salário vigente à época da apresentação da proposta.
A repactuação se insere como modalidade especial de reajuste, e não de recomposição a partir da teoria da imprevisão, exatamente porque decorre de circunstâncias previsíveis e deve observar o interregno no um ano.
Na hipótese de reajuste, os critérios a serem utilizados para balizar a modificação do valor do contrato já se encontram devidamente disciplinados no próprio contrato pela fixação de índices, e na repactuação, que tem como parâmetro os custos necessários à execução do contrato, faz-se necessária a demonstração analítica da variação dos componentes desses custos do contrato, sem, todavia, impor-se a sua formalização por meio de aditivo.
Sendo a repactuação modalidade especial de reajuste do contrato, deve ser formalizada por meio de simples apostilamento.
A recomposição está relacionada à ocorrência de fatos imprevisíveis, ou ainda que previsíveis, de efeitos incalculáveis, que afetem o equilíbrio contratual. O reajuste será determinado de acordo com índices pré-fixados no próprio contrato. A atualização, ao contrário, está vinculada à possibilidade de atrasos nos pagamentos devidos pela Administração, sendo obrigatória a presença de cláusula de discipline seu pagamento, nos termos do artigo 40, inciso XIV, alínea “c” da Lei n.º 8.666/93.
O contrato deverá indicar em que condições deverão ser efetuados os pagamentos ao contratado. Cumprindo o contratado o que dispõe no contrato, e não efetuado a Administração o pagamento dentro do prazo estipulado, deverá o valor desse pagamento ser atualizado monetariamente.
A atualização ou correção dos pagamentos devidos pela Administração e efetuados fora do prazo fixado no contrato é devida independentemente de previsão no instrumento do contrato.
Tanto o fato da Administração quanto o fato do príncipe são atribuídos à própria Administração contratante; o fato da Administração, porém, é atitude que irá afetar diretamente a execução do contrato, enquanto o fato do príncipe decorre de atos genéricos e abstrato da Administração igualmente capazes de afetar o equilíbrio do contrato.
Tanto na eventualidade de ocorrer o fato do príncipe, quanto na hipótese de fato da Administração, deverá promover-se, por acordo das partes, a modificação do contrato. Isso não implica, evidentemente, que sempre tenha de ser alterado o valor do contrato.
Verificados os fatos justificadores da aplicação da teoria da imprevisão, será promovida a pura e simples recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato. O objetivo da teoria da imprevisão é restabelecer o equilíbrio inicialmente existente entre as partes, e é realizado pela alteração do valor do contrato. Diante da ocorrência de caso fortuito ou de força maior, o contrato pode ser alterado em diversos e diferentes aspectos. Poder ser promovida, por exemplo, a prorrogação da vigência do contrato, ou alteração do objeto a ser executado.
Em contratos regidos pela Lei n.º 8.666/93, a teoria da imprevisão busca recompor o equilíbrio econômico-financeiro vigente por ocasião da apresentação das propostas pelos licitantes. Nos contratos de concessões e parceiras público-privadas os mecanismos de preservação do equilíbrio financeiro envolvem revisões ordinárias e extraordinárias, e o parâmetro de equilíbrio não necessariamente é aquele definido por ocasião da apresentação das propostas.
As decisões acerca das tarifas decorrentes da recomposição do equilíbrio-financeiro dos contratos devem ser bem fundamentadas, técnica e juridicamente, de modo a permitir a controle da comprovação da legitimidade do processo de execução da política tarifária previamente definida.

Fonte: Curso de Licitações e Contratos Administrativos. Lucas Rocha Furtado.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Jurisdição e Competência no Processo Penal I

Como atividade do Poder Público, afirma-se que a jurisdição é una, no sentido de se tratar de intervenção do Estado junto aos jurisdicionados, para fins de atuação do Direito no caso concreto e, mais particularmente, ao caso ou questão penal. Todos os atos e decisões judiciais, ou seja, os provimentos, de movimentação ou de solução, proferidos no processo pelos órgãos investidos de jurisdição, qualquer que seja a competência do Juiz ou Tribunal, configuram, assim, manifestação do poder estatal jurisdicional, com aptidão, em tese, para a produção de determinados e específicos efeitos jurídicos.
Há distribuição da jurisdição a diferentes órgãos do Poder Público o obedece a regras específicas de racionalização da respectiva função pública, voltadas à necessária otimização da aludida atividade.
Destaca-se o relevante princípio do Juiz natural, entendido como o órgão da jurisdição cuja competência, estabelecida anteriormente ao cometimento do fato, derive de fontes constitucionais, legitimado a partir da vedação, imposta ao legislador infraconstitucional, da instituição do Juízo ou Tribunal de exceção. Nesta hipótese, estar-se-á diante de competência absoluta, cuja determinação independe da vontade das partes processuais, acusação e defesa, diante da rigidez e da estatura da fonte normativa de uma e outra espécie, qual seja, a Constituição da República.
Prevalece a competência da jurisdição federal, na hipótese de reunião obrigatória de processos da competência federal e estadual, quando determinada em razão da conexão e da continência (Súmula n.º 122 do STJ). Em tais situações, sobretudo em atenção à unidade de jurisdição, com o objetivo de afastar decisões contraditórias e permitir o amplo aproveitamento das provas de um e de outro, a afirmação da competência federal ocorre mais em razão do critério constitucional de distribuição de competências que propriamente do afastamento da regra da Justiça Estadual da regra do Juiz natural.
Efetivamente, como a competência da Justiça Federal é expressa, enquanto a da Justiça estadual é residual, tem-se que ela somente terá lugar quando previamente afastadas as demais competências (militar, eleitoral e federal). A competência residual é regra de aplicação subsidiária, condicionada ao afastamento prévio e anterior da competência expressa.
O princípio do Juiz natural, instituído ratione materiae e ratione personae, configura hipótese de competência absoluta inafastável por vontade das partes processuais, revelando a natureza pública do interesse em disputa, somente se admitindo a sua flexibilização por oportunidade de aplicação da norma da mesma estatura, ou seja, de norma ou princípio igualmentes constitucionais.
Não viola o Juiz natural, por exemplo, a designação de dois ou mais Juízes para atuação conjunta em determinado Juízo, em regime de mutirão, tampouco as modificações de competência realizadas no âmbito da mesma jurisdição – federal, estadual, eleitoral – quando previstas em regras de organização judiciária, com o objetivo de estabelecer varas ou juízes especializados (tóxicos, acidentes do trabalho, crimes etc.).
Tendo em vista a relevância de determinados cargos ou funções públicas, cuidou o constituinte brasileiro de criar foros privativos para processo e julgamento de infrações penais praticadas pelos seus ocupantes, atendendo-se para as graves implicações políticas que poderiam resultar das respectivas decisões judiciais.
Optou-se, então, pela eleição de órgãos colegiados do Poder Judiciário, mais afastados, em tese, das pressões externas que frequentemente ocorrem em tais situações, e em atenção também à formação profissional de seus integrantes, quase sempre portadores da mais alargada experiência judicante, adquirida ao longo do tempo de exercício na carreira.
Tratando-se da escolha situado no âmbito da discricionariedade política do constituinte, o conjunto de competências fixadas em razão da prerrogativa de funções não oferece regramento seguro para uma adequada sistematização da matéria.
Os chamados crimes de responsabilidade não configuram verdadeiras infrações penais. Constituem, ao contrário, infrações de natureza eminentemente política, com tratamento bastante distinto daquele reservado às infrações abrangidas pelo Direito Penal. Estão submetidas a processo e julgamento perante a jurisdição política, integrada, em geral, órgãos do Legislativo.
Mesmo quando a Constituição atribui a órgãos do Poder Judiciário a competência para julgamento de crimes de responsabilidade, não se estará exercendo outro tipo de jurisdição que não seja de natureza política, diante da natureza igualmente política das infrações.
No campo da responsabilidade política, os valores objeto de proteção legal encontram-se ligados mais aos interesses imediatos da respectiva função pública do que da comunidade social representada pelo agente político.
É exatamente por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, reconhece, para fins de fixação do foro por prerrogativa de função, a existência bem delimitada de uma dicotomia entre os crimes comuns e os crimes de responsabilidade, incluindo nos primeiros todas as infrações de natureza penal, até o eleitorais.
A adoção de um critério fundado na aplicação de regras simétricas pode ser identificada pela consideração da relevância da função pública protegida pela norma do foro privativo.
Todos os membros do primeiro escalão dos diversos poderes – Judiciário, Legislativo e Executivo – serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal, que é, precisamente, a última instância do Poder Judiciário. É o que ocorre com os membros do Congresso Nacional, com o Presidente da República e seu Vice, os Ministros de Estado e os próprios membros da Suprema Corte, o mais alto comando das Forças Armadas, os membros do Tribunal de Contas da União e os Chefes da missão diplomática de caráter permanente.
Também serão julgados na Suprema Corte, nos crimes comuns, o Procurador-Geral da República e os membros dos Tribunais Superiores. Caberá ao Superior Tribunal de Justiça o julgamento dos membros dos Tribunais Regionais Federais.
Merecedor de registro é o fato de que, se a Emenda n.º 45, estabeleceu foro privativo, no Senado Federal, para os membros do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, para o julgamento dos crimes de responsabilidade, o mesmo não ocorreu em relação aos crimes comuns.
Compete ao Superior Tribunal de Justiça, por se tratar do quadro das funções públicas merecedoras do foro privativo da linha abaixo daquela fixada para a jurisdição do Supremo Tribunal Federal, o julgamento dos Governadores de Estado e do Distrito Federal, dos membros dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, dos Tribunais Regionais do Trabalho, dos Tribunais Regionais Eleitorais e dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal.
Serão julgados no Superior Tribunal de Justiça, nos crimes comuns, os Procuradores Regionais da República, dos Procuradores Regionais do Trabalho, os Procuradores de Justiça do Distrito Federal, que oficiem perante Tribunais, isto é, que oficiem perante o Tribunal Regional Federal, os Tribunais Regional do Trabalho e o Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Compete também à Corte Superior o julgamento dos Conselheiros ou membros dos Tribunais de Contas dos Municípios.
Compete aos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunais de Justiça julgar os membros do Poder Judiciário de primeira instância a ele vinculados ou equiparados (simetria no Judiciário, como ocorre entre um Juiz do Trabalho e um Juiz Federal). Assim, serão julgados o Tribunal Regional Federal, os Juízes Federais, os Juízes do Trabalho, os Juízes da Justiça Militar; nos Tribunais de Justiça, os Juízes de Direito dos Estados e do Distrito Federal.
Entretanto, se o crime por eles praticado for eleitoral, a competência para o respectivo processo e julgamento caberá ao Tribunal Regional Eleitoral, por força da ressalva expressa contida no artigo 96, inciso III, in fine e no artigo 108, inciso I, alínea “a”, in fine da Constituição Federal.
Já em relação aos membros do Ministério Público, o critério da simetria é somente aplicado ao Ministério Público da União. Por isso, serão julgados no Tribunal Regional Federal os Procuradores da República, os Procuradores do Trabalho e os Promotores da Justiça Militar, salvo se tratar de crime eleitoral, quando a competência será deslocada para o Tribunal Regional Eleitoral.
Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal (RE n.º 418.852/DF), não cabe ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal, mas ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, conhecer de habeas corpus contra ato de membro do Ministério Público do Distrito Federal.
Fala-se em critério da regionalização quando a jurisdição é fixada em atenção à origem da autoridade submetida a processo em foro privativo por prerrogativa da função. O exemplo mais cristalino de semelhante critério diz respeito aos membros dos Ministérios Públicos dos Estados, a saber, todos os integrantes do parquet estadual serão julgados, em regra – a exceção fica por conta dos crimes eleitorais, da competência do respectivo Tribunal Regional Eleitoral –, perante o Tribunal de Justiça do mesmo Estado.
Também os deputados estaduais e prefeitos submetem-se, em regra, ao critério da regionalização, desde que, porém, não se trate de crime eleitoral ou federal.
Nos termos do Enunciado n.º 702 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, a competência para julgamento dos prefeitos restringe-se aos crimes de competência da Justiça estadual comum, nos demais casos, a competência originária caberá ao respectivo Tribunal de segundo grau.
Há que se buscar a identificação do Juiz natural, isto é, do Juiz constitucional. Assim, não se pode pensar que as Constituições dos Estados pudessem afastar ou modificar as regras de distribuição de competência jurisdicional postas na Constituição da República.
Se afirmada a competência na Constituição Federal, somente a própria Constituição poderia prever ressalvas em relação à distribuição de competências nela efetivada.
Ainda que a Constituição Federal não especifique nenhum foro privativo para os deputados estaduais, limitando-se a permitir que as Constituições dos Estados reservem-lhes o mesmo tratamento dados aos parlamentares da República, a eles também se aplicará o contido no Enunciado n.º 702 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. Assim é exatamente em razão do sistema constitucional da simetria no tratamento das funções relevantes do Poder Público; e tal como ocorreu com os membros do Poder Judiciário, da União e dos Estados, do Ministério Público, e de outras autoridades, estaduais e federais, também a eles deve-se aplicar o mesmo tratamento.
A regra a ser seguida, então, é a estrita obediência aos critérios constitucionais do Juiz natural, devendo ser interpretadas restritivamente as normas estaduais que com aquelas se puserem de acordo.
Entre os crimes comuns estão incluídas, unicamente para determinação de foro privativo, todas as infrações penais que não constituam crimes de responsabilidade, visto que estes estão submetidos à jurisdição política.
Por isso, quando se afirma que o deputado federal será julgado no Supremo Tribunal Federal nos crimes comuns, naquele Tribunal haverá ele ser processado em quaisquer infrações penais, quer se trate de crime eleitoral quer se trate de crime doloso contra a vida e mesmo crime militar. A razão é simples: o critério fixado em razão da função exercida pelo agente, e não em razão da matéria.
Nos demais casos, as exceções, quando existentes, deverão, obviamente, estar contidas em norma constitucional específica. É nesse sentido o Enunciado n.º 721 da Súmula do Supremo Tribunal Federal: “a competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela Constituição Estadual”. Ora, não só a competência do Tribunal do Júri, mas qualquer competência fixada na Constituição Federal, que é o instrumento por meio do qual se determina o Juiz Natural.
Como se constata, de início, os foros privativos atribuídos ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça não contemplam nenhuma exceção, como o que se pode afirmar que, em tais casos, a regra de fixação de competência é rígida.
Já em relação ao foro privativo dos Tribunais Regionais Federais e dos Tribunais de Justiça, o texto constitucional traz ressalva expressa, em razão da natureza da infração: as pessoas que têm ali seu foro privativo serão, nos crimes comuns, como regra, julgadas naqueles Tribunais, à exceção (única) dos crimes eleitorais, quando a competência será do Tribunal Regional Eleitoral.
A prerrogativa de função dos deputados estaduais e prefeitos é ainda menos rígida. Em relação a eles, o foro privativo na jurisdição do Tribunal de Justiça somente se aplicará quando se tratar de crimes da competência estadual, ficando, portanto, ressalvada a competência da Justiça Federal e até mesmos da Justiça Militar da União e dos Estados (se houver previsão na Constituição estadual).
Tratando-se de foro privativo por prerrogativa de função, a competência é fixada nos Tribunais obrigatoriamente, isto é, o conhecimento da causa é atribuído, desde a origem, à jurisdição colegiada, suprimindo-se a primeira instância.
Consequência disso é que, em tais hipóteses, ou seja, nos casos de julgamento de ação penal de competência originária, não há de se falar em duplo grau de jurisdição, não se admitindo a utilização das vias recursais ordinárias, como ocorre da primeira para a segunda instância.
Registre-se que prevalece a competência do Tribunal a que estiver regionalmente vincula da autoridade, mesmo que o crime tenha sido cometido em local diverso do que seu Estado de origem.
A Lei n.º 10.628/2002 restabeleceu o revogado artigo 84 do Código de Processo Penal:
“Art. 84. A competência pela prerrogativa de função é do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, dos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, relativamente às pessoas que devam responder perante eles por crimes comuns e de responsabilidade.
§ 1o A competência especial por prerrogativa de função, relativa a atos administrativos do agente, prevalece ainda que o inquérito ou a ação judicial sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública.
§ 2o A ação de improbidade, de que trata a Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, será proposta perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de foro em razão do exercício de função pública, observado o disposto no § 1o."
Vale ressaltar que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu e afirmou a inconstitucionalidade da referida lei.
Observe-se ainda que, mesmo que a infração penal tenha sido praticada antes do exercício da função ou cargo público, enquanto o acusado estiver exercendo-o terá assegurado o foro privativo. Por isso, a ação penal em relação a tais pessoas pode apresentar caráter itinerante, acompanhando tanto início quanto o fim do exercício do cargo ou função pública, isto é: eleito o réu de determinada ação penal para o mandato de deputado federal, os autos deverão ser remetidos para o Supremo Tribunal Federal para o prosseguimento do processo, ainda que já sentenciado, cabendo àquela Egrégia Corte, nesta última hipótese, apreciar o recurso então aviado, podendo, para tanto, reexaminar toda a matéria de fato e de direito, inclusive com a repetição da fase probatória.
E do mesmo modo que foram, os autos poderão voltar, quando a hipótese for inversa, isto é, quando encerrado o mandato ou exercício de cargo ou função pública, antes de concluído o processo ou julgamento.
O procedimento ou rito processual (ou procedimental) previsto para o julgamento dos acusados detentores de foro privativo, ou seja, para o julgamento dos crimes de competência originária, encontra-se atualmente regulamentado pela Lei n.º 8.038/90, bem como para as demais regras do procedimento que constarem dos regimentos dos Tribunais, podendo o mesmo ser realizado por Turma, Câmara, Seção ou Plenário, garantindo-se apenas a formação colegiada.
A prerrogativa do foro alcança também o julgamento do incidente de exceção de verdade (art. 85 do CPP) quando a autoridade pública for autora da ação privada, ou da representação (ou requisição do Ministro da Justiça) para fins de ação pública condicionada, na qual o réu (autor da calúnia) se disponha a provar a veracidade de suas afirmações.
Quando um deputado federal e um Governador de Estado pratiquem determinado crime, como ambos têm foro privativo nas instâncias superiores, Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, respectivamente, saber a natureza da infração é irrelevante, pois o foro, em princípio, permanecerá inalterado.
Como ambos Tribunais detêm jurisdição nacional e um deles está situado no plano superior da hierarquia jurisdicional, deverá prevalecer a competência do Supremo Tribunal Federal, da mesma maneira que ocorreria se os autores do fato fosse um deputado federal e uma pessoa sem qualquer prerrogativa de função. Aplica-se, portanto, o disposto no artigo 78, inciso III do Código de Processo Penal.
De fato, a regra do foro privativo em razão da função tem em vista a relevância da parcela do Poder Público exercida, daí porque se fixa o foro privativo com base na simetria funcional, elaborada a partir de critérios de uma fictícia equivalência de poder.
Tratando-se, porém, de concurso de agentes na prática de crimes dolosos contra a vida, a regra da continência (art. 77 do CPP) entre o mesmo deputado federal e outra pessoa sem foro privativo deverá seguir outra solução.
Quando o concurso for de crimes (com pluralidade de ações) e de agentes, isto é, quando se tratar de reunião de processos a ser determinada pela conexão (art. 76 do CPP), pode-se perfeitamente sustentar a separação obrigatória dos processos, remetendo cada crime ao órgão competente, ainda que possa haver inconveniência probatória e procedimental na separação.
No entanto, quando se cuidar da hipótese do artigo 77, inciso I do Código de Processo Penal como é o caso do exemplo anteriormente mencionado (continência), a questão assume maior complexidade, porque ambos os autores são acusados de um único crime e mesmo fato.
O Supremo Tribunal Federal tem jurisprudência firme no sentido da separação obrigatória dos processos, em atenção à regra constitucional que institui como garantia individual o julgamento pelo Tribunal do Júri nos crimes dolosos contra a vida, remetendo o deputado federal para o seu foro privativo.
O Enunciado n.º 704 da Súmula do Supremo Tribunal Federal (não viola das garantias do Juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo co correu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados) não altera o tratamento excepcional que é devido nos crimes dolosos contra a vida. Ser julgado pelos seus pares em tais crimes, é uma exigência constitucional que não pode ser superara pela regra da hierarquia da jurisdição, sobretudo pela presença da soberania do Tribunal do Júri, a exigir que os recursos contra suas decisões tenham fundamentação vinculada a hipóteses específicas.
No concurso entre a competência da Justiça Federal e da Justiça Estadual, deve prevalecer a primeira, que tem jurisdição fixada expressamente na Constituição. O prejuízo ao princípio do Juiz natural, em relação ao Juiz de Direito, com efeito, seria minimizado, em razão de se preservar a garantia de julgamento por um órgão de jurisdição de segundo grau. A maior dificuldade, no caso, seria a do preterimento de uma prerrogativa de função, fixada constitucionalmente.




Fonte: Curso de Processo Penal. Eugênio Pacelli de Oliveira.