quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A Sentença no Processo Penal


Por meio da sentença o magistrado julga definitivamente o mérito da pretensão penal, resolvendo-o em todas as suas etapas possíveis, a saber: a da imputação da existência de um fato (materialidade), a imputação da autoria desse fato e, por fim, o juízo de adequação ou valoração jurídico-penal da conduta.
O que importa distinguir nesta fase é efetivamente o conteúdo da decisão, que dará por apreciada, em toda a sua extensão e profundidade, a matéria relativa ao caso penal levado a Juízo, para o fim de absolver ou de condenar o acusado. Por isso se fala em decisão definitiva.
Enquanto a decisão que absolve sumariamente o réu por atipicidade (artigo 397, inciso III do CPP) somente impede a rediscussão do fato tal como ali narrado, a sentença absolutória, com fundamento no artigo 386, inciso III do Código de Processo Penal, faz coisa julgada material não em relação ao fato narrado, mas ao fato efetivamente ocorrido, isto é, ao fato ou realidade histórica. A primeira decisão é absolutória (sumária) antecipada, e a segunda, sentença absolutória definitiva (artigo 593, inciso I do CPP), impugnáveis ambas pela via da apelação.
As sentenças são condenatórias ou absolutórias (definitivas), merecendo registro, ainda, a sentença absolutória imprópria, por meio da qual se impõe medida de segurança ao inimputável, nos termos do artigo 386, parágrafo único, inciso III do Código de Processo Penal. Nesse caso, a decisão será absolutória pela ausência de culpabilidade do acusado.
A providência final que, em regra, espera-se no processo penal condenatório (excluída, por ora, a hipótese de transação penal realizada nos Juizados Especiais Criminais) é a absolvição ou a condenação do réu nas sanções em que se achar incurso, isto é, nas penas cominadas no tipo penal correspondente à conduta reconhecidamente praticada.
Afirma-se, com isso, que o pedido seria sempre genérico, no sentido de com ele se viabilizar a correta aplicação da lei penal, independentemente da alegação do direito cabível trazida aos autos pelas partes. O Juiz criminal estaria vinculado apenas à imputação dos fatos, atribuindo-lhes, uma vez reconhecidos, a consequência jurídica que lhe parecer adequada, tanto no que respeita à classificação (juízo de tipicidade) quanto à pena e à quantidade a ser imposta.
No processo penal cumpre ao autor delimitar unicamente a causa petendi, ou seja, o fato delituoso merecedor de reprimenda penal. O juízo de adequação típica, o enquadramento jurídico do fato, bem como a dosimetria da pena a ser aplicada, encontram-se, todos, na própria lei, cabendo ao Juiz a tarefa de revelar seu conteúdo.
O princípio da correlação funciona com garantia do indivíduo ao devido processo legal. Assim, o réu não poderá jamais ser condenado pela prática de fato não constante da denúncia ou queixa, ou ainda por fato diverso daquele ali mencionado, sem que antes se proceda à correção da inicial. O pedido no processo penal, rigorosamente falando, seria o de condenação. Nada mais.
A emendatio libelli não é outra coisa senão a correção da inicial (libelo, nessa acepção), para o fim de adequar o fato narrado e efetivamente provado (ou não provado, se a sentença não for condenatória, caso em que seria dispensável a emendatio) ao tipo penal previsto em lei.
Nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, “o Juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave”.
Na redação da lei, deve-se entender por definição jurídica precisamente a capitulação ou classificação feita pelo autor na inicial, em cumprimento da exigência prevista no artigo 41 do Código de Processo Penal. Assim, dar definição diversa é alterar a capitulação, isto é, a conseqüência jurídica do fato imputado na denúncia ou queixa. O fato, evidentemente, há de permanecer o mesmo.
Não se exige, então, a adoção de quaisquer providências instrutórias, bastando a prolação da sentença com a capitulação jurídica (do fato) que parecer mais adequada ao Juiz. Nem mais, nem menos, sobretudo porque o réu não se defende da capitulação, mas da imputação da prática de conduta criminosa. Por isso, ainda que da nova definição jurídica resulte pena mais grave, não haverá qualquer prejuízo à defesa.
Embora possível, a emendatio libelli em segundo grau sofre as mesmas limitações pertinentes aos efeitos devolutivos dos recursos, em geral. Vige aqui a regra da proibição da reformatio in pejus, ou desfavorável que a decisão de primeira instância, em relação à impugnação ser mais da exclusivamente pelo recorrente.
Quando da emendatio libelli puder resultar modificação do rito procedimental, e, em prejuízo da ampla defesa, o caso será de nulidade do processo, exatamente porque essa razão (violação da ampla defesa) e não por suposta invalidade abstrata da emendatio.
Se da modificação de enquadramento jurídico do fato, resultar crime para o qual seja prevista a suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei n.º 9.099/95), deverá o Juiz abrir vista ao Ministério Público para a respectiva proposta. Caso a alteração da capitulação ensejar a modificação da competência do Juízo, para lá deverão ser encaminhados os autos.
A mutatio libelli encontra-se definida pelo artigo 384 do Código de Processo Penal, segundo o qual “encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 05 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente”.
Enquanto na emendatio libelli a definição jurídica refere-se unicamente à classificação dada ao fato, na mutatio libelli, a nova definição será do próprio fato. Não se altera simplesmente a capitulação feita na inicial, mas a própria imputação do fato.
De acordo com a redação da lei processual penal, independentemente da pena, o novo delito somente poderá ser julgado se promovido o aditamento da acusação pelo órgão do Ministério Público. E, mais, que o Juiz ficará adstrito aos termos do aditamento (artigo 384, § 4º do CPP). A mutatio depende de aditamento, que somente será feito pelo Ministério Público, não se aplicando às ações privadas, a não ser à subsidiária da pública, instaurada em razão da inércia do parquet.
É importante salientar que nem sempre a alteração do elemento subjetivo, ou seja, do móvel ou motivo da conduta, poderá ser feita sem que, antes, promova-se alteração também da imputação. Isso porque poderá ocorrer que a modalidade de culpa revelada (em substituição do dolo imputado originariamente) exija descrição mais adequada da ação do agente. Nem sempre o que se alegou querido, desejado, doloso, portanto, pode subsumir-se, por exemplo, ao conceito de imperícia, embora, como regra, tal ocorra.
Na mutatio, o que ocorre não é a simples alteração do elemento subjetivo da conduta, mas a imputação em decorrência de novo fato. A espécie de desclassificação que dela surge não decorre também de simples juízo de adequação do fato à norma, mas de nova imputação fática.
A regra da mutatio libelli apresenta duas características, no âmbito dos atos judiciais. A primeira delas é o utilitarismo. Nessa modalidade, como não há substituição da acusação, mas a adição a ela de um fato ou circunstância agregado àquele fato principal já imputado, não haverá renovação integral da instrução e nem mesmo modificação da interrupção da prescrição. É dizer, na mutatio não há nova ação, mas aproveitamento daquela já instaurada, em razão de provas surgidas apenas na fase de instrução.
Com efeito, a inclusão de elemento ou circunstância novos não poderá significar a mudança completa da acusação. O fato novo, na realidade, deverá se agregar ao núcleo da conduta imputada, como ocorre no crime de furto ao qual acrescida a violência como fato novo, a nova definição passará a ser de roubo. O núcleo da ação, subtração da coisa, continuará o mesmo.
Excepcionalmente poderá até haver modificação do fato implicitamente contido na denúncia. Por exemplo: no crime de furto é possível apresentar, após a mutatio, o delito de apropriação indébita, mantendo-se, contudo, o núcleo da ação exercia sobre coisa certa e delimitada.
O aditamento da mutatio distingue-se do aditamento à denúncia. No caso da mutatio, o artigo 384, § 2º do Código de Processo Penal prevê a modalidade de instrução probatória que será adotada, tendo em vista tratar-se de alteração da acusação (mantido o núcleo da conduta), e não de nova imputação (fato integralmente novo). No caso do aditamento à denúncia, o que ocorrerá, salvo na hipótese do artigo 569 do Código de Processo Penal, referente à omissão de dados não essenciais, é a reabertura integral da instrução, incluindo novo interrogatório. E mais: enquanto na mutatio é feita na fase decisória, com o fim de aproveitar o processo em curso, sem o risco da prescrição, o aditamento pode ser realizado a qualquer momento, tudo a depender da conveniência procedimental e da inexistência da prescrição.
De outro lado, e por paradoxal que pareça, é possível apontar algumas vantagens para adoção da regra da mutatio libelli, até mesmo quanto aos interesses da defesa. É que a existência de um procedimento dessa natureza já justifica a elaboração de uma teoria da coisa julgada penal em bases absolutamente distintas da coisa julgada no horizonte cível.
E mais: uma teoria construída a partir do pressuposto do fato da realidade como fundamento da verdade e da certeza jurídica no âmbito penal, independentemente do acerto ou do equívoco cometido por ocasião da imputação feita na denúncia ou queixa.
A mutatio dependerá de iniciativa do Ministério Público. Diz o § 1º do artigo 384 do Código de Processo Penal que o Juiz, não concordando com o não aditamento, poderia submeter a questão ao órgão de revisão do Ministério Público, aplicando-se o artigo 28 do Código de Processo Penal. Se tal órgão mantiver a decisão do parquet, em última instância, o magistrado simplesmente julgará o processo nos termos da imputação feita, podendo daí resultar até a absolvição do réu, pela ausência de imputação típica.
Deve-se registrar que não caberá a mutatio para as ações privadas. Se no curso da ação penal privada com fundamento em estupro praticado com violência moral se constatasse, na instrução do feito, a existência de violência física, real e, como não há previsão de aplicação da mutatio, a alternativa seria a intimação do Ministério Público para o aditamento à queixa, com oferecimento da denúncia, se ainda não prescrita a ação.
Promovida a mutatio libelli, aditada então a denúncia ou queixa, o Juiz dará vista à defesa pelo prazo de cinco dias, ao final dos quais admitirá ou não o aditamento. Se aceito, designará no prazo de cinco dias o prosseguimento da audiência de instrução e julgamento, facultando-se à acusação e à defesa a inquirição de mais três testemunhas, tenham ou não sido ouvidas na ação.
Consta do artigo 384, § 3º do Código de Processo Penal que a emendatio libelli também se aplicaria na fase da mutatio.
A partir das provas colhidas na investigação e da possibilidade de aplicação da mutatio, após o aditamento pelo Ministério Público, o Juiz poderá reconhecer sua incompetência e enviar os autos ao Juízo competente.
Por força do princípio da identidade física do Juiz, acolhido no artigo 399, § 2º do Código de Processo Penal, deverá o magistrado, nas hipóteses de incompetência relativa, surgida com o aditamento, prorrogar sua competência e sentenciar o processo, ainda que possa reconhecer nele (Juiz) poderes para afirmação, de ofício, de semelhante incompetência (relativa), com fundamento no artigo 109 do Código de Processo Penal.
Já nos casos de incompetência absoluta a solução poderá ser distinta. Surgida nova definição de crime pelo aditamento da mutatio, e que implique a modificação do Juiz natural, deverá o magistrado encaminhar os autos ao Juízo competente. Neste ponto poderá surgir um problema. Se do aditamento puder surgir nova definição jurídica do fato e cuja conseqüência seja a alteração do Juiz natural, não poderá o órgão do Ministério Público oficiante promover o aditamento da peça acusatória, exatamente por faltar-lhe atribuição constitucional para a causa. Se ambos, Juiz e Ministério Público, estiverem de acordo, não haverá empecilhos: os autos serão encaminhados ao Juízo e ao órgão do Ministério Público competentes. Caso não haja consenso, se o parquet não aditar sob tal fundamentação, a única solução possível, então, seria a aplicação do artigo 28 do Código de Processo Penal, resultando no chamado arquivamento indireto. Já se for o Juiz que não concordar com a modificação de competência promovida pela mutatio, no aditamento, deverá rejeitá-lo e prosseguir com o julgamento.
A regra do artigo 384 do Código de Processo Penal somente poder ser aplicada em primeira instância. Admitir o contrário seria permitir que o Tribunal conhecesse de matéria não submetida à apreciação de primeiro grau, implicando, portanto, supressão de instância (Enunciado n.º 453 da Súmula do STF).
Diz o artigo 386 do Código de Processo Penal que o Juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: estar provada a inexistência do fato; não haver prova da existência do fato; não constituir o fato infração penal; estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; não existir prova de o réu ter concorrido para a infração penal; existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena ou mesmo fundada dúvida sobre sua existência; não existir prova suficiente para sua condenação.
Note-se que aquilo que o Código chama de causa diz respeito à verdadeira motivação do julgado, na medida em que se presta a fundamentar a decisão de absolvição, essa, sim, indicativa da parte efetivamente dispositiva da sentença.
Para efeitos penais, é a decisão de absolvição que, passada em julgado, tem como efeito a preclusão de toda e qualquer via impugnativa de seu conteúdo, impedindo a instauração de nova persecução penal sob o mesmo fundamento de fato. Por isso, ainda que eventualmente a causa ou motivação da decisão absolutória não se enquadre perfeitamente nas hipóteses ali elencadas, como é o caso daquela que absolve sumariamente o réu em razão da extinção da punibilidade, ela não impedirá a coisa julgada, com todos os consectários a ela inerentes.
Aliás, cumpre registrar que, a partir da Lei n.º 11.690/2008, encontra-se inserida em nosso ordenamento jurídico a negativa de autoria, o que ocorrerá quando o Juiz afirmar, como motivação da absolvição, estar provado não ser o réu o autor da infração penal.
Ainda que o Ministério Público requeira a absolvição do acusado em alegações finais, o Juiz poderá proferir sentença condenatória, bem como reconhecer agravantes ou atenuantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
Parte da doutrina entende que a autorização do reconhecimento ex officio de agravantes não alegadas é inaceitável, quando se tratar de agravantes (de fatos) mencionados no artigo 62 do Código Penal, quando não constantes da peça acusatória, e sobre o quais, por essa razão, não se teria manifestado a defesa. A agravante do artigo 61, inciso I do Código Penal (reincidência) diz respeito à situação jurídica, daí porque pode ser reconhecida de ofício. As demais, ou são constitutivas, ou são qualificadoras de tipos penais, razão pela qual também não podem ser reconhecidas de ofício. Do mesmo modo ocorrerá com as qualificadoras e causas de aumento da pena constantes da parte especial do Código Penal ou que estejam agregadas ao respectivo tipo penal na legislação não codificada.
Além de revogar a antiga disposição relativa à periculosidade, a Lei n.º 11.719/2008 estabeleceu o dever de o Juiz incluir na condenação um valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, a serem fixados segundo os prejuízos sofridos pelo ofendido. Naturalmente que não se trata de fixação do valor total para a recomposição patrimonial. Aqui, atenta-se apenas para o valor mínimo que se revele suficiente para recompor os prejuízos já evidenciados na ação penal. Eventuais acréscimos da responsabilidade civil, sob a rubrica dos lucros cessantes e eventuais danos morais, serão fixados na instância cível.
A fixação do valor mínimo para reparação dos danos não encerra uma cumulação de pedidos, cuida-se, ao contrário, de ampliação da regra da obrigação de reparação do dano prevista no artigo 91 do Código Penal, devendo ser observado apenas o valor sobre o qual não paire a mínima dúvida quanto à sua origem (do dano), a sua titularidade (o acusado) e sua liquidez. Assim, observadas as condições mencionadas, relativamente à exigência de contraditório e de ampla defesa, não se questiona a validade da aludida norma.
Com a revogação expressa do artigo 594 do Código de Processo Penal, a nova redação de seu artigo 387 exige ordem escrita e fundamentada do Juiz para: a) manutenção da prisão anteriormente decretada; b) a decretação da prisão preventiva daquele que se encontra solto; c) o conhecimento da apelação que vier a ser manejada, independentemente de recolhimento do réu ao cárcere.
O princípio constitucional da ampla defesa exige a intimação pessoal do acusado em qualquer hipótese, como o que estaria revogado o previsto no inciso II do artigo 392 do Código de Processo Penal, que permite a intimação por intermédio do defensor. Pelas mesmas razões, entende-se que a intimação deverá ser feita pessoalmente ao réu também no caso do inciso III do citado artigo, pelo que restaria inaplicável a restrição ali contida. Na hipótese de não ser encontrado o acusado solto, independentemente da natureza da infração e de se tratar, ou não, de defensor constituído, a intimação do réu deverá ser feita por meio de edital. O defensor do acusado sempre será intimado da sentença, pessoalmente, ou por edital se não for encontrado.
No que se refere à intimação da decisão de pronúncia nos procedimentos do Tribunal do Júri, que, tecnicamente não deve ser tratada como sentença, é importante registrar que a intimação será sempre feita ao réu pessoalmente, nos termos do artigo 420, inciso I do Código de Processo Penal.
O prazo para impugnação recursal da sentença, incluindo os embargos de declaração, terá início a partir da última impugnação.
A coisa julgada não é um efeito, mas uma qualidade da decisão judicial da qual não caiba mais recurso. É a imutabilidade da sentença nela contida.
A sentença condenatória passada em julgado pode ser rescindida a qualquer tempo, por meio da ação revisão criminal regulada no artigo 621 e seguintes do Código de Processo Penal.
O que efetivamente legitima a eficácia preclusiva da coisa julgada, cujo efeito é impedir novas investidas acusatórias contra o réu absolvido, é a necessidade de se exercer um rígido controle da atividade estatal persecutória, diante das graves conseqüências que normalmente derivam da só existência de uma imputação formalizada da prática de uma conduta delituosa, no âmbito dos interesses inerentes à dignidade humana, em todas as suas dimensões.
A vedação da revisão pro societate, que não é outra coisa senão a conseqüência prática dos efeitos da coisa julgada penal, cumpre exatamente essa função de controle, na medida em que impõe aos órgãos estatais responsáveis pela acusação criminal redobradas cautelas no exercício de suas funções.
Há decisões judiciais que, quando passadas em julgado, impedem a rediscussão da matéria unicamente em relação ao contexto em que foi proferida especificamente no processo em cujo curso foi prolatada. Fala-se, então, em coisa julgada formal. Por exemplo: a decisão que rejeita a denúncia por ausência dos pressupostos processuais ou de qualquer das condições exigidas na lei para o exercício da ação penal.
Atualmente, ressalvada a hipótese dos Juizados Especiais Criminais, não mais se rejeita a denúncia ou queixa por atipicidade manifesta do fato. Agora, com a redação do artigo 397 do Código de Processo Penal, tanto a atipicidade manifesta, quanto a extinção da punibilidade serão objeto de absolvição sumária e não mais rejeição da denúncia. Trata-se de coisa julgada tipicamente material, de modo a impedir a reapreciação da matéria em todo e qualquer processo, presente ou futuro. A decisão será, pois, de mérito.
O mesmo ocorrerá com a decisão que, atendendo a requerimento do Ministério Público, arquiva o inquérito com fundamento na extinção da punibilidade do delito, pela ocorrência da prescrição ou qualquer outra das causas previstas em lei. Embora não haja aqui apreciação do mérito, ou seja, embora, em regra, não se examine a ocorrência efetiva do fato, nem se o réu seria realmente o seu autor, tal decisão estará solucionando a pretensão penal, no ponto em que afirma expressamente a ausência de interesse estatal na punibilidade do delito, ainda que acaso existente.
Em relação aos limites subjetivos da coisa julgada, segundo dispositivo constitucional expresso, a pena não pode passar da pessoa do condenado, aplicando-se o que se convencionou a chamar de princípio da intranscendência da ação penal. Já em relação aos autores, mereceria registro a participação do particular (ofendido) nas ações privadas (como querelante) e nas ações públicas (como assistente), dado que o Ministério Público, seja como autor, seja quando intervém como custos legis esgota sua atuação no âmbito penal, no que respeita à execução da pena, somente atuando na instância civil, para fins de execução da decisão penal, enquanto não estiver funcionando a Defensoria Pública local.
Em relação ao ofendido, tanto a sentença penal condenatória quanto a absolutória poderão estender os seus efeitos a ele, independentemente de sua participação efetiva no processo (na ação pública), nos limites previstos em lei. O mesmo ocorre em relação ao réu da ação penal, cuja coisa julgada poderá levar seus efeitos (da parte dispositiva e da respectiva causa ou motivação) também para a instância civil, havendo a possibilidade, inclusive, de se impedir a reabertura da discussão sobre matéria decidida na instância penal também para terceiros (responsáveis civis) quando determinadas questões estiverem decididas no Juízo criminal.
A atividade estatal persecutória há de se desenvolver sob rígidos padrões de eficiência, diante do risco de afetação ao patrimônio moral de quem se achar submetido à acusação da prática de infração penal. Por isso, a imputação penal deve coincidir o mais completamente possível com a realidade histórica, ou seja, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente realizados no tempo.
Acrescida à possibilidade de aditamento da denúncia pelo Ministério Público e pelo querelante (desde que ainda dentro do prazo decadencial), a qualquer tempo antes da fase decisória, impõe-se a conclusão de que o que faz coisa julgada no Juízo criminal é o fato como efetivamente realizado, independentemente do acerto ou equivoco na sua imputação. Em outras palavras: a realidade histórica.
Ainda que o fato narrado na denúncia, sobre o qual se desenvolveu toda a atividade probatória, não se subsuma efetivamente àquele da realidade histórica, uma vez proferida a sentença definitiva nunca mais poderá instaurar nova persecução penal sob o mesmo fundamento, ou seja, sobre o mesmo fato.
A coisa julgada abarcará o núcleo, bem como quaisquer que tenham sido, na realidade, as suas circunstâncias e/ou circunstâncias elementares. Fala-se aqui em núcleo central com a finalidade de identificar o elemento comum nas diversas definições jurídicas passíveis de incidência sobre o mesmo fato da realidade.
Nem mesmo se poderia pensar em nova ação penal na qual se imputasse unicamente a prática de circunstâncias elementar integrante do tipo penal efetivamente ocorrido.
O núcleo da conduta funcionaria, assim, como o dado da realidade efetivamente julgado. As suas circunstâncias e/ou circunstâncias elementares estariam cobertas pela coisa julgada como desdobramentos lógicos-dedutivos do julgamento, ou seja, pela preclusão lógica dos demais fatos cuja ocorrência dependeria da existência do núcleo então julgado.
A ação de revisão criminal é somente manejável pelo réu em seu favor, é plenamente justificada pelos compromissos humanitários que informam o Estado Democrático de Direito. Não há mesmo como se rejeitar, abstrata e peremptoriamente, a possibilidade de qualquer instrumento que se revele apto a demonstrar a inocência de um condenado.
A decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido de se permitir a revisão da decisão extintiva da punibilidade, fundada em certidão de óbito falsa, pode ser perfeitamente explicada pelo princípio da revisão pro Estado. Ora, se a certidão foi criminosamente falsificada pelo interessado, não haveria razão alguma para não se a admitir a revisão do julgado, pois não teria havido sentença absolutória, como se exige para a formação da coisa julgada penal e como se dispõe expressamente do Pacto de San Jose da Costa Rica. Ademais, não teria havido negligência, nem ausência de serviço que pudesse ser imputada ao Estado, como ocorreria, por exemplo, em ação penal na qual o acusado seqüestrasse as testemunhas, logrando obter, assim, a absolvição.




Fonte: Curso de Processo Penal. Eugênio Pacelli de Oliveira.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Relações de Parentesco

Parentesco e família não se confundem, ainda que as relações de parentesco sempre sejam identificadas como vínculos decorrentes da consangüinidade, ligando as pessoas a determinado grupo familiar. Não existe coincidência entre o conceito de família e o parentesco, uma vez que, na idéia de família, está contido o parentesco mais importante: a filiação. Os cônjuges e os companheiros não são parentes, ainda que integrem a família e mantenham vínculo de afinidade com os parentes do par. Os vínculos de afinidade surgem, quando do casamento ou união estável, com os parentes do cônjuge ou do companheiro.


Além do vínculo natural, o parentesco também é um vínculo jurídico estabelecido por lei, que assegura direitos e impõe deveres recíprocos. Trata-se de elos que não se constituem nem se desfazem por atos de vontade.


Deve-se buscar um conceito plural de paternidade e maternidade e, consequentemente, de parentesco em sentido amplo, no qual a vontade, o consentimento, a afetividade e a responsabilidade jurídicas terão missões relevantes.


A fantástica evolução da engenharia genética e o surgimento das mais diversas formas de reprodução assistida embalam o sonho de qualquer pessoa que deseja ter um filho, não sendo mais possível limitar os vínculos de parentesco à verdade biológica.


O parentesco admite variadas classificações e decorre das relações conjugais, de companheirismo e de filiação, podendo ser natural, biológico ou consagüineo, civil, adotivo, por afinidade, em linha reta ou colateral, maternal ou paternal.


A identificação dos vínculos de parentesco tem reflexos nos impedimentos matrimoniais, ante a proibição de incesto: os parentes em linha reta não podem casar (artigo 1.521, inciso I do CC). Em sede de alimentos, também é fundamental identificar os graus de parentesco em face da reciprocidade da obrigação alimentar. Os primeiros convocados a prestar alimentos são os parentes mais próximos (artigo 1.696 do CC). No direito sucessório, a qualificação dos parentes determina o modo de participar da herança.


As distinções entre parentesco em linha reta, em linha colateral e por afinidade são de duas ordens. Os parentes em linha reta descendem uns dos outros e, na linha colateral, têm somente um ascendente comum. O parentesco em linha reta é ilimitado e, na linha colateral, limita-se ao quarto grau, ao menos para efeitos jurídicos. Os vínculos em linha reta são ilimitados e perpétuos – quer decorram de parentesco, quer decorram de afinidade –, não comportando extinção nem quando findo o casamento ou união estável. Quanto à linha colateral, o parentesco se estende até o quarto grau e nunca se dissolve. Já a afinidade vai somente até o segundo grau e se extingue quando do fim do relacionamento.


Historicamente, sempre se reconheceu que os vínculos de consangüinidade geram o que se chama de parentesco natural, denominado parentesco civil o decorrente da adoção.


O desenvolvimento de modernas técnicas de reprodução assistida ensejou a desbiologização da parentalidade, impondo o reconhecimento de outros vínculos de parentesco. Assim, parentesco civil é o que resulta de qualquer outra origem que não seja biológica.


O prestígio da verdade efetiva frente à realidade biológica impôs o alargamento do conceito de filiação. Paternidade, maternidade e filiação não decorrem exclusivamente de informações biológicas ou genéticas – dá-se relevo a sentimentos nobres, como o amor, o desejo de construir uma relação afetuosa, carinhosa, reunindo as pessoas num grupo de companheirismo, lugar de afetividade, para fim de estabelecer relações de parentesco.


Muito se questiona se a lei civil enlaçou o critério socioafetivo. Tudo indica que o legislador dele não cogitou. A doutrina e a jurisprudência vêm se esforçando por detectá-lo. Afirma-se que existe espaço para reconhecimento de outros vínculos além da consangüinidade e da adoção, em face da amplitude da expressão “outra origem” do artigo 1.593 do Código Civil: o parentesco é natural ou civil, conforme relação de consangüinidade ou outra origem. Também a referência a “veementes presunções resultantes de fatos já certos” (artigo 1.605, inciso II do CC) diz com o conceito de posse do estado de filho, que nada mais é do que a filiação socioafetiva.


Desse modo, a filiação pode constituir-se pela incidência direta de uma lei, que regula a atribuição do estado de filho, ou da posse de estado: situação fática prolongada de com vivência e afetividade que conduz à paternidade.


Parentes consangüíneos são as pessoas que têm entre si um vínculo biológico. Assim, são parentes as pessoas que descendem uma das outras, ou têm um ascendente comum. Descendentes são os parentes que se originam a partir da filiação. Os vínculos de ascendência e descendência natural têm origem biológica, mas podem decorrer da ação, que gera o desligamento do adotado com os parentes consangüíneos. Quando ocorre a perda do poder familiar, ainda persiste o vínculo de parentesco biológico para efeitos outros, como, por exemplo, permanece a obrigação de alimentar e os impedimentos matrimoniais. O casamento e a união estável também geram vínculo de ascendência e descendência, ainda que por afinidade.


Falar em linha de parentesco é identificar a vinculação da pessoa a partir de um ancestral comum. São parentes em linha reta aqueles que descendem um dos outros. Na linha colateral, as pessoas relacionam-se com um tronco comum, sem descenderem umas das outras. O parentesco em linha reta leva em consideração a relação de ascendência e de descendência entre os parentes. O parentesco em linha colateral funda-se na ancestralidade comum, sem relação de ascendência e de descendência.


O parentesco em linha reta é infinito, nos limites que a natureza impõe a sobrevivência dos seres humanos. Todas as pessoas, sob o prisma da ascendência, têm duas linhas de parentesco, pois descendem umas das outras. A linha de ascendência bifurca-se sucessivamente entre os ascendentes maternos e paternos. É mister distinguir os filhos por estirpe, isto é, se têm os mesmos pais, ou se são filhos de um só deles. Essa diferenciação se reflete no vínculo entre os irmãos. Daí serem chamados de bilaterais ou germanos os filhos de um mesmo casal. Irmãos unilaterais são os que têm em comum somente um dos genitores.


Vínculos de parentesco igualmente estabelecidos quando, entre duas pessoas, existe um ancestral comum, fazendo surgir entre ambas uma relação de parentesco na linha colateral.


Outro critério de classificação diz com os graus de parentesco, ou seja, o número de gerações que separa os parentes. É distinta a forma de contagem dos graus de parentesco, entre os parentes em linha reta e os parentes em linha colateral ou transversal (artigo 1.594 do CC). Na linha reta, conta-se o grau de parentesco pelo número de gerações que os separam. Assim, pai e filho são parentes em linha reta em primeiro grau. Na linha colateral é necessário subir até o ascendente comum e depois descer até o outro parente para se identificar o grau de parentesco.


Quanto aos irmãos, ainda é feita uma distinção por estirpe que influi no direito sucessório. Somente há igualdade na partilha se todos forem bilaterais ou todos unilaterais. Concorrendo à herança irmãos unilaterais e bilaterais, estes têm direito ao dobro da parte destinada ao meio irmão (artigo 1.841 do CC). Maria Berenice Dias pugna pela inconstitucionalidade do dispositivo, uma vez que a Constituição Federal não permite qualquer tratamento discriminatório entre filhos, reconhecido inclusive ao adotado os mesmos direitos. Salienta que nada justifica assegurar aos irmãos direitos diferenciados, quando a obrigação de alimentar dos irmãos germanos e unilaterais é a mesma (artigo 1.697 do CC).


Os vínculos de afinidade e parentesco, ainda que tratados em conjunto pelo legislador, não se confundem, mas ambos geram direitos e obrigações. A afinidade se constitui quando do casamento ou união estável e vincula o cônjuge ou o companheiro aos parentes do outro.


A afinidade em linha reta não tem limite de grau (sogro, nora, genro), e se mantém mesmo com a dissolução do casamento e da união estável. A afinidade também comporta duas linhas – a linha reta e a colateral –, e conta-se do mesmo modo. Na linha colateral, a afinidade não passa do segundo grau e se restringe aos cunhados. Esse vínculo só existe durante a vigência da união matrimonial ou estável. Solvida a entidade familiar, desaparece a afinidade entre os colaterais.


Mister reconhecer que a afinidade se estabelece também com relação aos filhos de um dos cônjuges ou companheiros. Assim, o filho de um passa a ser filho por afinidade do seu cônjuge ou parceiro. Ainda não é reconhecido o direito de o enteado buscar alimentos de seu padrasto depois de rompido o vínculo de convivência com seu genitor. O que se vem admitindo é a adoção do nome, mas sem excluir o vínculo parental. De qualquer forma quando se passa a falar em paternidade alimentar, é de se repensar a obrigação afetiva também do genitor afim.


Dissolvido o casamento ou a união estável, o vínculo de afinidade não se dissolve integralmente. Permanece com relação a alguns parentes. Aqueles por afinidade em linha reta são para sempre. Nem a morte solve o vínculo de afinidade, razão pela qual não existem “ex-sogro”, “ex-sogra” ou “ex-enteado”. Os afins dos cônjuges não são afins entre si, porque afinidade não geram afinidade.


Extinta a união estável, o viúvo ou o divorciado não pode casar com os pais ou filhos do ex-cônjuge ou ex-companheiro (artigo 1.521, inciso II do CC).


Solvido o casamento ou a união estável, mesmo não havendo previsão legal, não há qualquer vedação para que seja concedido direito de visita dos avós aos netos, até porque não é rompido o vínculo de afinidade.


Olvidou-se o legislador de regular as famílias parentais, ou seja, as entidades familiares formadas entre os parentes colaterais, como, por exemplo, a vida em comum entre dois irmãos que, sob o mesmo teto, conjugam esforços para a formação ou aumento patrimonial de um deles. Ainda que sustente haver entre eles uma sociedade de fato e preconize a adoção do Enunciado n.º 380 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, impositivo é identificar a existência de uma entidade familiar. O rol constitucional não esgota as conformações familiares merecedoras de tutela. Para o reconhecimento da existência de uma entidade familiar, inexiste qualquer conotação de ordem sexual de seus integrantes. Assim, em face da omissão legal, é imperioso aplicar, por analogia, às famílias chamadas de anaparentais as disposições que tratam do casamento e da união estável.


Uma das finalidades da perfeita identificação dos vínculos de parentesco não é só garantir direitos, mas também atribuir obrigações. A obrigação alimentar é imposta a todos os parentes. A lei é enfática, e em três oportunidades reafirma essa responsabilidade: artigos 1.694, 1.698 e 1.704, parágrafo único do Código Civil.


Como o parentesco em linha reta é infinito, também o é a obrigação alimentar. O parentesco em linha colateral vai até o quarto grau, e a obrigação alimentar se estende além dos irmãos, alcançando os tios, sobrinhos, tios-avós, sobrinhos-netos e primos.


O parentesco por afinidade limita-se aos ascendentes, descendentes e irmãos do cônjuge ou companheiro (artigo 1.595, § 1º do CC). Dissolvido o casamento ou a união estável, não se extingue o parentesco em linha reta (artigo 1.595, § 2º do CC). Assim, se subsiste o vínculo de parentesco por afinidade, a obrigação alimentar também existe. De outro lado, se persiste a relação de parentesco para além do fim do casamento ou da união estável, a obrigação alimentar deve permanecer. Dissolvido o casamento ou a união estável, possível é tanto o “ex-sogro” pedir alimentos ao “ex-genro” ou vice-versa, com fundamento no princípio da solidariedade familiar.




Fonte: Manual do Direito das Famílias. Maria Berenice Dias.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Liquidação de Sentença

A Lei n.º 11.232/2005 acrescentou ao Código de Processo Civil regra que proíbe peremptoriamente sentença ilíquida em dois casos: ação de indenização por acidente de veículos em via terrestre (CPC, artigo 275, II, d) e cobranças de seguro referente a danos causados por acidente de veículos (CPC, artigo 275, II, e). Mas, mesmo nos demais casos, o Juiz sempre deve fazer o possível para proferir sentença líquida.


As exceções à exigência de pedido e sentença líquidos e certos têm relação apenas com a impossibilidade de o autor, por ocasião da propositura da ação (e do Juiz na sentença), saber, de antemão, o quantum (isso é, a quantidade ou o valor) que lhe é devido ou exatamente o que é devido.


O título extrajudicial, para que exista como tal, há se ser sempre líquido. A liquidação, portanto, só se liga às sentenças e está diretamente relacionada com a excepcional possibilidade de existirem sentenças ilíquidas (também chamadas de sentenças condenatórias genéricas), em que não tenha sido possível ao Poder Judiciário determinar o valor da condenação ou individuar o seu objeto. Tem por objetivo eliminar essa generalidade, tornando líquida a sentença condenatória genérica.


A partir da Lei n.º 11.232/2005 a fase de liquidação pode ser instaurada, a requerimento da parte interessada, tão logo proferida a sentença a ser liquidada, mesmo que contra ela tenham sido ou possam ser interpostos recursos com ou sem efeito suspensivo. Quanto tal requerimento for feito na pendência de recurso contra a sentença, a liquidação será processada em autos apartados, formados pelas cópias de peças contidas nos autos originais (artigo 475-A, § 2º). A liquidação também se fará em autos apartados – e sem jamais perder sua natureza de mera fase, incidente, do processo em curso – quando a sentença for em parte líquida e em parte ilíquida, e o credor optar por desde logo executar a parte líquida (artigo 475-I, § 2º).


Em qualquer caso, a liquidação será de competência do “Juiz de origem” (isto é, do Juiz com competência originária para a ação condenatória que foi objeto da primeira fase do processo).


A liquidação de sentença tem por objetivo um pronunciamento judicial que defina o quantum da obrigação genérica que foi objeto de sentença condenatória. Prevalece a tese de que a eficácia jurídica preponderante desta decisão proferida na liquidação é declaratória.


A fase de liquidação passa a ser resolvida mediante um pronunciamento judicial que é passível de agravo de instrumento, conforme previsão expressa do artigo 475-H do Código de Processo Civil.


O objetivo da liquidação é chegar-se ao quantum da condenação, não se prestando à “rediscussão” da existência da obrigação nem ao acréscimo de outras obrigações no objeto da condenação. Há regra legal explícita a respeito: “é defeso na liquidação discutir de novo a lide ou modificar a sentença que a julgou” (artigo 475-G).


O Código de Processo Civil contempla duas espécies de liquidação de sentença: a liquidação por artigos e a liquidação arbitramento. A adoção de uma ou de outra dessas espécies será feita, em princípio, conforme o determinado na sentença a ser liquidada.


A parte faz uso da liquidação por artigos (artigo 475-E) sempre que, para se determinar o valor da condenação, exista necessidade de alegar e provar fato novo. Ela será necessária, portanto, quando, para se determinar o valor da condenação, houver necessidade de provar: a) fato que tenha ocorrido depois da sentença, guardando relação direta com a determinação da extensão ou do quantum da obrigação; b) fato que, mesmo não sendo superveniente à sentença, não tenha sido objeto de alegação e prova no processo de conhecimento, apesar de se tratar de fato vinculado à obrigação sobre a qual versa a condenação e que é relevante para determinar o seu quantum. Na liquidação por artigos, será observado, no que couber, o procedimento comum previsto para o processo de conhecimento (artigo 475-F).


A parte se serve da liquidação por arbitramento quando a apuração do quantum da condenação dependa da realização de perícia por arbitramento. Trata-se de trabalho técnico, normalmente entregue aos cuidados de profissional especializado em determinada área do conhecimento científico, pelo qual se vai determinar a extensão ou o valor da obrigação constituída pela sentença ilíquida. A realização de uma perícia poderá ser necessária porque as partes pactuaram que se procederia dessa forma ou porque, mesmo não tendo elas pactuado algo nesse sentido, o Juiz, na sentença assim determinou, ou, ainda, porque, embora não havendo pacto entre as partes nem determinação judicial expressa na sentença, a matéria exige tal prova técnica. Depois de apresentado o laudo, as partes são intimadas e têm prazo de dez dias para se manifestar. A seguir, o Juiz proferirá a sentença, a qual, apenas se necessário, será antecedida de audiência de instrução e julgamento (artigo 475-D).


Quando a sentença depende de mera operação aritmética, o autor apresenta requerimento de execução já acompanhado de memória de cálculo atualizada. Ou seja, é ônus do exeqüente elaborar tais contas, ao formular o pedido de execução – e haverá de fazê-lo de modo detalhado e preciso.


Em princípio, o exercício do contraditório, pelo executado, relativamente a tal cálculo poderá se dar nos embargos à execução ou na impugnação ao cumprimento da sentença, conforme o caso. Mas havendo cálculo maior do que o devido, a parcela excessiva consiste em valor para o qual falta título executivo – e a falta de título executivo é questão de ordem pública, que pode ser conhecida na própria execução. Nos termos do artigo 475-B, o Juiz exercerá tal controle quando “aparentemente” a memória apresentada pelo credor exceder os limites do título executivo, assim como nos casos de assistência judiciária.


Ainda nesses casos, o Código de Processo Civil prevê que, se o credor não concordar com o cálculo feito pelo contador, será feita execução pelo valor originalmente pretendido, mas a penhora terá por base o valor encontrado pelo contador e isso significa que a execução prosseguirá por tal valor.


Em muitos casos, o ônus da apresentação do cálculo pode não ser adequadamente cumprido pelo credor porque ele não dispõe dos dados necessários para elaborar a conta. Tais dados estão com o devedor ou terceiros. O Código de Processo Civil estabelece regras específicas para tais hipóteses. O Juiz, a requerimento do credor poderá requisitar tais dados, fixando prazo de até trinta dias para o cumprimento da diligência. Se, injustificadamente, os dados não forem apresentados pelo devedor, serão reputados corretos os cálculos exibidos pelo credor. Já se a injustificada negativa de apresentação dos dados for de um terceiro, será aplicado o regime geral cominado ao terceiro que, sem justa causa, nega-se a exibir documento ou coisa (artigo 362 do CPC). Além da incriminação por desobediência, é cabível, sempre que possível, a busca e apreensão de tais dados.


Um dos problemas que podem resultar do procedimento de liquidação está ligado à hipótese de se chegar, ao cabo dela, a valor equivalente a zero. Há duas hipóteses em que isso pode ocorrer: a primeira é aquela em que a parte não produz a prova necessária ao cálculo da condenação ilíquida; a segunda hipótese é aquela em que a parte, realizado intensa e exauriente atividade probatória, não chega a qualquer valor diferente de zero.


No primeiro caso, está-se diante de situação em que a liquidação de sentença resultou zero, porque a parte não conseguiu provar a extensão do dano. Ao Juiz resta a dúvida no sentido de que, talvez, se houvesse outras provas, pudesse ser comprovada a extensão do dano.


No segundo caso, porém, não resta qualquer margem de hesitação para o Juiz, pois terá havido efetiva produção de provas, de modo a fazê-lo concluir que o prejuízo foi mesmo igual a zero, isto é, que o fato ocorrido (an debeatur) não foi propriamente um dano, juridicamente considerado, porque não gerou prejuízo para a vítima, embora tudo indicasse (conforme instrução probatória que redundou na sentença condenatória genérica) que deveria ter gerado.


De qualquer modo, numa ou noutra hipótese, a decisão do procedimento de liquidação de sentença será de improcedência, com todas as suas conseqüências, inclusive a impossibilidade de se promover, em seguida, uma execução (já que não se identificou quantia para executar).




Fonte: Curso Avançado de Processo Civil. Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Elementos do Negócio Jurídico – Planos de Existência e de Validade e Interpretação

Planos de Existência e Validade dos Negócios Jurídicos


No sistema tradicional de classificação, parte-se da noção inicial de elemento para qualificar o negócio jurídico. Distinguem-se aí os elementos essenciais (genéricos e específicos), naturais e acidentais.


Sob esse aspecto, são elementos essenciais do negócio jurídico o agente capaz, o objeto lícito e a forma, estampada no artigo 104 do Código Civil, como requisitos de validade.


São elementos essenciais específicos aqueles pertinentes a determinado negócio jurídico; a compra e venda, por exemplo, têm como elementos essenciais a coisa, o preço e o consentimento (res, pretium e consensus).


Os elementos naturais são as conseqüências que decorrem do próprio ato, sem necessidade de expressa menção. Na referida compra e venda, serão elementos naturais a garantia que presta o vendedor pelos vícios redibitórios e pelos riscos da evicção.


Os elementos acidentais dos negócios jurídicos são aqueles que se acrescentam ao ato para modificar alguma coisa de suas características naturais. Os mais estudados, porque presentes no Código Civil, são a condição, o termo e o encargo (modo ou ônus).


Não devemos esquecer, contudo, que no exame do negócio jurídico, devem ser levados em conta três planos: o da existência, o da validade e o da eficácia do negócio. O ato pode existir, isto é, possuir um aspecto externo de negócio jurídico, mas não ter validade, por lhe faltar, por exemplo, capacidade do agente. Por outro lado, o negócio pode existir, ser válido, mas ser ineficaz, quando sobre ele, por exemplo, pender condição suspensiva.


Nesse quadro, é importante colocar a vontade como elemento do negócio jurídico. No exame do plano de existência não se cogita de invalidade ou ineficácia, mas simplesmente da realidade de existência do negócio. Importa examinar a existência da vontade, ou, mas que isso, a existência da declaração de vontade. A vontade, muito antes de ser unicamente um elemento do negócio, é um pressuposto dele, mas um pressuposto que ora interferirá na validade, ora na eficácia do negócio, já que poder “existir” um negócio com mera aparência de vontade, isto é, circunstância em que a vontade não se manifestou e houve apenas mera “aparência” de vontade.


A declaração de vontade é elemento essencial do negócio jurídico. É seu pressuposto. Além de condição de validade, constitui mero elemento do próprio conceito e, portanto, da própria existência do negócio jurídico.


Nos contratos, quando há ponto de acordo de suas vontades, a vontade toma o nome de consentimento ou mútuo consenso. O consenso ou consentimento implica, portanto, duas declarações de vontade que se encontram; o consentimento é elemento dos contratos e outros negócios bilaterais. Nos negócios jurídicos em geral, e em especial nos unilaterais, fala-se somente em vontade e sua declaração ou manifestação.


A propósito da vontade em si, debatem-se duas correntes: pela teoria da vontade, entende-se que se deve perquirir a vontade interna do agente, sua real intenção; pela teoria da declaração, entende-se que não que se investigar o querer interior do declarante, bastando deter-se na declaração em si.


A declaração de vontade pode resultar de comportamento do agente, que expressa a vontade por determinada atitude. Trata-se de manifestação tácita de vontade.


Tanto a manifestação expressa quanto a manifestação tácita de vontade têm valor para o ordenamento, salvo nos casos em que a lei especificamente exige a forma expressa.


A vontade negocial é a dirigida à obtenção de efeitos práticos, geralmente econômicos, com intenção de que esses efeitos sejam juridicamente tutelados e vinculantes.


A expressão negócio jurídico é reservada para aqueles atos em que o declarante procura especificamente um efeito jurídico. Isso é que, fundamentalmente, distingue o negócio jurídico do fato jurídico em geral. Portanto, não basta a simples atuação da vontade para estampar um negócio jurídico. É necessário que a manifestação de vontade possua um intuito negocial.


Nas declarações de vontade, podem-se distinguir dois elementos principais: a) declaração propriamente dita ou elemento externo (resume-se no comportamento palpável do declarante); b) vontade ou elemento interno (é aquele impulso que se projetará no mundo exterior e pressupõe essa projeção).


Três elementos podem ser distinguido no elemento interno: vontade da ação, vontade da declaração e vontade negocial.


A vontade da ação é querida, desejada, voluntária. Por outro lado, o declarante pode ter agido consciente e voluntariamente de acordo com o comportamento negocial, mas sem ter desejado atribuir-lhe o significado estampado no negócio. Aqui, tem-se a vontade de ação, mas não há vontade de declaração.


O terceiro subelemento é a vontade negocial ou a intenção do resultado. O declarante deve ter a vontade de manifestá-la com o objetivo de praticar determinado negócio e não outro, o qualquer outro ato.


Em quaisquer dos casos, podem não coincidir os elementos interno e externo da declaração; há aqui vício no negócio jurídico, que na maioria das vezes poderá anulá-lo, se não for nulo de início.


“Quem cala consente” é um ditado popular, mas não jurídico. O silêncio apenas produz efeitos quando acompanhado de outras circunstâncias ou condições. O silêncio de um contratante é pode induzir manifestação de vontade, aquiescência de contratar, se naquelas determinadas circunstâncias, inclusive pelos usos e costumes do lugar, pode intuir-se uma manifestação volitiva. Há necessidade de se fundamentar o silêncio no princípio da boa-fé dos participantes do negócio, sem a qual não há que se falar em silêncio idôneo para produzir efeito.


Ao analisar a capacidade do agente, o plano de existência é suplantando, passando-se ao plano de validade do negócio jurídico. Ao lado da capacidade do agente, o plano de validade diz respeito, também, à manifestação de vontade livre e de boa-fé, ao objeto lícito, determinado e possível, e à forma livre ou prescrita em lei.


A capacidade é conceito, portanto, referente à idoneidade da pessoa para adquirir direitos ou contrair obrigações no universo negocial. Não é só isso, contudo. O conceito de capacidade estende-se a outros fatos e efeitos jurídicos, principalmente aos fatos ilícitos e à responsabilidade civil deles decorrentes. Ao lado da chamada capacidade negocial, deve-se, pois, lembrar da capacidade delitual, na esfera civil.


Os detentores da incapacidade de exercício só podem praticar os atos da vida civil mediante o instituto da representação, como regra geral. A incapacidade relativa é suprida pela assistência.


A regra é a existência da capacidade de gozo. A pessoa natural, maior ou menor, com ou sem discernimento mental, gozará dessa capacidade.


As pessoas jurídicas terão capacidade de gozo de acordo com a destinação para a qual foram criadas, pois não podem agir em desacordo com suas finalidades estatutárias. Por isso, diz que no tocante à capacidade de gozo sofrem as pessoas jurídicas restrições de duas ordens: as comuns à generalidade das pessoas coletivas (não podem praticar atos de direito de família, por exemplo) e as especiais, próprias para certas classes de pessoas jurídicas e de acordo com suas finalidades.


A capacidade de exercício das pessoas naturais é dada pela lei de forma negativa. A lei diz quais pessoas não possuem capacidade de exercício. Para a validade do ato, portanto, o Código requer agente capaz. Tal capacidade deve ser aferida no momento do ato. A capacidade superveniente à prática do ato não é suficiente para sanar a nulidade. Por outro lado, a incapacidade que sobrevém ao ato não o inquina, não o vicia.


Quando se analisa a legitimação, não se discutem as qualidades intrínsecas da pessoa, sua capacidade, que a habilitam para os atos da vida negocial. O que está em jogo, ao contrário, é a posição de determinadas pessoas em face de determinadas situações criadas por fora de sua capacidade, que não está em discussão.


Pode-se enfocar a legitimidade e a capacidade como duas formas de aptidão para realizar negócios jurídicos, entendendo a capacidade como a idoneidade adquirida. A legitimação ou legitimidade depende da particular relação do sujeito com o objeto do negócio. As partes, em determinado negócio jurídico, devem ter competência específica para praticar o ato. Esse é o conceito de legitimação.


É requisito de validade dos negócios jurídicos obedecerem à forma prescrita, ou não adotarem a forma proibida pela lei. Nos termos do artigo 107 do Código Civil, a regra é a forma livre.


A forma pela qual a vontade exterioriza-se é a expressão externa, palpável da vontade. Em numerosos casos, a lei exige das partes, para a própria garantia dos negócios, forma especial.


Os negócios jurídicos que dependem de determinada forma para terem validade são os atos formais ou solenes. São não solenes ou não formais quando sua forma é livre.


Por vezes, a lei, visando garantir sua eficácia, cerca sua forma de fórmulas, isto é, de rituais mais ou menos complicados, como ocorre com o casamento e no testamento, atos formais por excelência e subordinados a rituais formalísticos. A isso denomina-se solenidade. A forma especial tanto pode ser imposta pela lei quanto pela própria parte, que contrata com a cláusula de a avença não valer senão sob determinada forma.


Parte da doutrina e alguns sistemas jurídicos distinguem as forma ad substantian ou ad solemnitatem das formas ad probationem. As primeiras seria da essência do ato e não valeriam sem elas. As segundas dizem respeito apenas à sua prova. Entre nós, a distinção não tem importância, pois se a lei exige determinada forma, o negócio é necessariamente ad solemnitatem; se não exige, o negócio pode se provado por qualquer dos meios permitidos em Direito.


Ao lado da capacidade, legitimidade, forma e naturalmente da vontade, constitui elemento integrante do negócio jurídico o objeto, o qual deve ser idôneo, isto é, apto a regular os interesses sobre os quais recai o negócio jurídico.


Sob o enfoque ora dado, pode-se distinguir o objeto imediato ou conteúdo, que são os efeitos jurídicos a que o negócio tende, de acordo com as manifestações de vontade e a lei aplicável; o objeto mediato, ou objeto propriamente dito, que é aquilo sobre o que recaem aqueles efeitos.


No sentido de objeto imediato ou conteúdo, está-se no campo de “constituição, modificação ou extinção” de relações jurídicas. No sentido o objeto mediato ou objeto propriamente dito, tem-se a própria coisa ou o próprio interesse sobre os quais recai o negócio. Caso se trate de negócio que visa a bens incorpóreos, então mais propriamente deve ser dito “interesses do negócio”.


A expressão “objeto do negócio” deve englobar tanto um sentido, como outro, quer se examine sob o prisma da idoneidade, em conteúdo amplo, quer estritamente sob o prisma da licitude, como quer o artigo 104 do Código Civil.


Deve-se ter em mira que todo ato jurídico é praticado com vista a uma determinada utilidade. Sob esse aspecto, o negócio deve gozar de proteção. Há sentido teleológico a ser protegido. Nesse campo, atua a autonomia da vontade e cada um é livre para praticar o negócio que lhe aproveite. Essa é a regra geral.


O Código Civil dispõe, ao estabelecer os elementos de validade do negócio jurídico, que o objeto deve ser “lícito, possível, determinado ou determinável”.


Distingue-se a determinação absoluta da relativa. É absoluta a determinação quando o ato enuncia o seu objeto de modo certo, individualizando a prestação ou prestações em que consiste, quer se trate de bens corpóreos ou incorpóreos, quer de atos positivos ou negativos. Relativa é determinação quando os agentes ou partes, para a determinação ou singularização do objeto de seu ato, adotam algum critério a ser, subseqüente, observado.


O objeto deve ser possível, entendendo-se tudo que estiver dentro das forças humanas ou das forças da natureza. É preciso, nesse ponto, distinguir a impossibilidade absoluta, que a todos, indistintamente, atinge, da impossibilidade relativa, pois o que pode ser impossível para uns pode não ser para todos. A impossibilidade pode emanar de leis físicas ou naturais, bem como de leis jurídicas, tendo-se aí a impossibilidade física e a impossibilidade jurídica.


Para que seja idôneo o objeto, cumpre, igualmente, ser lícito. A licitude do objeto é regulada pela forma negativa: atingimos a compreensão do objeto lícito pelo conceito de ilicitude. A lei impõe limitações ao objeto do negócio.


O objeto não gozará da proteção legal quando for contrário às leis de ordem pública, ou aos bons costumes. Tendo em vista a dificuldade de conceituar as normas de ordem pública, pode-se dizer que são aquelas que dizem respeito à própria estrutura do Estado, seus elementos essenciais; são as que fixam, no Direito Privado, as estruturas fundamentais da família, por exemplo.


Causa é aquele motivo com relevância jurídica. Embora semanticamente não ocorra aproximação, juridicamente os conceitos de causa e objeto muito se aproximam. O objeto é necessário ao ato, não havendo negócio que não o tenha. Giram os conceitos em torno da mesma ideai, ou seja, a fim do negócio jurídico.


O fato é que os juristas debatem-se incessantemente, uns vendo na causa elemento essencial do ato; outros entendendo a causa como elemento dispensável, como ponto de criação de dúvidas na validade do negócio jurídico.


Os causalistas dividem-se em várias correntes que podem ser agrupadas em duas fundamentais: a concepção subjetivistas ou psicológica da causa e a concepção objetivista.


A concepção subjetivista, que predominou entre os juristas franceses, entende que a causa deve ser compreendida como representações psicológicas que fazem as partes concluir negócio ou fim próximo para referida conclusão. Esse fim próximo é justamente a causa enquanto os fins remotos são simplesmente motivos ou móveis do ato.


A concepção objetivista é mais moderna e adotada principalmente na Itália; para ela, a causa vem a ser aquele elemento distintivo do negócio jurídico para cada tipo de negócio, ou a função econômico-social própria de cada figura negocial. Trata-se da finalidade intrínseca do negócio.


Ambas as correntes chegam a resultados fundamentalmente idênticos, divergindo a corrente objetivista somente no aspecto de ver o negócio jurídico em si próprio, abstraindo-o da representação psíquica das partes.


O artigo 140 do Código Civil manifesta-se corretamente ao se referir ao motivo: “o falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”.


Interpretação dos Negócios Jurídicos


Interpretar o negócio jurídico é determinar o sentido que ele deve ter; é determinar o conteúdo voluntário do negócio.


A declaração de vontade é constituída por dois elementos: o elemento externo (a declaração propriamente dita) e o elemento interno (o substrato da declaração de vontade; a vontade real). O ideal é que haja coincidência entre a vontade interna e a declaração, aspecto externo. Pode ocorrer, porém, divergência ou equívoco entre a vontade real e a declarada, por falta ou desvio dos elementos em quem se desdobra a primeira. Nesse caso, impõe-se a interpretação, isto é, a busca do sentido que trará efeitos jurídicos.


Essa interpretação, via de regra, cabe ao Juiz que, ao defrontar-se com o caso concreto, deverá interpretar a vontade dos declarantes para aplicar o Direito. Por isso é dito que o problema da interpretação do negócio jurídico é fenômeno psíquico, porque se cogita de adentrar no psiquismo do declarante; bem como jurídico-proecessual, pois cabe ao Juiz fixar o “verdadeiro sentido” da declaração de vontade, em sua atividade jurisdicional.


O Juiz fica preso a dois parâmetros, dos quais não pode fugir: de um lado, a vontade declarada, geralmente externada por palavras; de outro lado, é levado para a possibilidade de investigar a verdadeira “intenção do agente”. Nessa atividade mental, o Juiz não pode se descurar de que a palavra externada é garantia das partes.


No entanto, ficar preso tão-só à letra fria das palavras, ou de qualquer forma de externação ou exteriorização do pensamento, pode levar à situação de iniquidade. Em razão disso, não pode ser desprezada a possibilidade de o julgador também levar em conta a vontade interna do declarante.


A interpretação do negócio jurídico situa-se, então, na fixação do conteúdo da declaração de vontade. Para isso, o julgador se valerá das regras empíricas, mais do que verdadeiramente das normas, como o inconveniente inafastável de pisar terreno inseguro, onde muito importará o seu bom-senso e subjetivismo.


Pela posição subjetivista, que se equivale à corrente voluntarista da manifestação de vontade, deve o hermeneuta investigar o sentido da vontade do declarante. O negócio jurídico valerá tal como foi desejado. Para essa posição, a vontade real pode e deve ser investigada por meio dos elementos ou circunstâncias que a tal respeito possam elucidar o intérprete. Nos contratos, que são negócios jurídicos bilaterais, será procurada a vontade comum dos contratantes.


Pela posição objetivista, que corresponde à teoria da declaração, não é investigada a vontade interna, mas o intérprete se atém à vontade manifestada. Abstrai-se, pois, a vontade real. Procura-se o sentido das palavras por meio de circunstâncias exclusivamente materiais.


De acordo com o artigo 112 do Código Civil, “nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadas do que ao sentido literal da linguagem”. Tal princípio procura afastar do extremismo ou evitar de adotar unicamente a declaração, ou a vontade como formas de interpretação. Deve, então, o hermeneuta, com base na declaração, procurar o verdadeiro sentido da vontade, como quer o Código, dar-lhe proeminência.


Apesar de o Código aconselhar preferência pela vontade interna, tal não é de ser utilizado se as palavras são claras e não dão margem à dúvidas.


O artigo 113 do Código Civil reza que “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração”. O presente diploma orienta o legislador para, ao procurar o sentido de uma manifestação de vontade, ter sempre em mira os princípios da boa-fé regra geral dos contratos, bem como a orientação dos costumes que cercam a realização do negócio.


O princípio da denominada boa-fé objetiva é um elemento dessa manifestação. Nos contratos e nos negócios jurídicos em geral, deve-se entender que os declarantes, buscam, em princípio, o melhor cumprimento das cláusulas e manifestação a que se comprometem. O que se tem em vista é o correto cumprimento do negócio jurídico ou, melhor, a correção desse negócio. Cumpre que se busque, no caso concreto, um sentido que não seja estranho às exigências específicas das partes no negócio jurídico.


Desse modo, afirma-se que cabe ao Juiz analisar a manifestação de vontade sob esse princípio geral de boa-fé, a qual, citada no artigo 113 do Código Civil, é reiterada em seu artigo 422.


Igualmente, para a conceituação do abuso de direito, no campo da ilicitude, o Código Civil recorrer à compreensão da boa-fé objetiva: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé pelos bons costumes” (artigo 187)


No caso concreto, o Juiz deve repelir a intenção dos declarantes de vontade, em qualquer negócio jurídico, que se desvie da boa-fé objetiva, qual seja, a conduta normal e correta para as circunstâncias, seguindo o critério do razoável.


A boa-fé subjetiva, por outro lado, é aquela intimamente refletida e pensada pelo declarante no negócio jurídico, e que também pode e deve ser investigada pelo hermeneuta no caso concreto.


A presença do princípio geral da boa-fé objetiva no ordenamento legal dará maior segurança ao julgador e ao sistema.


O Código Civil prescreveu três funções inerentes à boa-fé objetiva: função interpretativa (artigo 113); função de controle (artigo 187); função de integração (artigo 422).


O artigo 114 do Código Civil acrescenta: “os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente”.



Fonte: Direito Civil – Parte Geral. Sílvio de Salvo Venosa.