segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Recursos no Processo Penal I – Generalidades e Recurso em Sentido Estrito

A existência dos recursos tem sua base jurídica no próprio texto constitucional, quando esta organiza o Poder Judiciário em duplo grau com atribuição primordialmente recursal dos Tribunais. O princípio do duplo grau de jurisdição dá maior certeza á aplicação do Direito, com proteção ou restauração do direito porventura violado e é por isso que se encontra assente nas legislações.

E. Magalhães Noronha define o recurso como “a providência legal imposta ao Juiz ou concedida à parte interessada, objetivando nova apreciação da decisão ou situação processual, com o fim de corrigi-la, modificá-la ou confirmá-la”.

Conquanto a natureza jurídica do recurso seja fonte de discussões doutrinárias, merece destaque o posicionamento de Hélio Tornaghi, segundo o qual o recurso pode ser visto de diversas maneiras: a) como desdobramento do direito de ação que vinha sendo exercido até a decisão proferida; b) como ação nova dentro do mesmo processo; c) como qualquer meio destinado a obter a “reforma” da decisão, quer se trate de ação como nos recursos voluntários, quer se cogite de nova provocação da instância superior pelo Juiz que proferiu a decisão, como nos recursos de ofício.

Assim como a ação, o recurso está sujeito a determinados pressupostos processuais, sendo comuns a todas as espécies: previsão legal, forma prescrita em lei e tempestividade. Embora a lei preveja o recurso cabível para cada decisão, o princípio da unirrecobilidade das decisões é mitigado pelas exceções legais e a pelo princípio da variabilidade dos recursos, que permite desistir-se de um para interpor outro, se no prazo.

Registre-se que para o exame do recurso pelo Juízo ou Tribunal ad quem, é necessário que se cumpram todos os pressupostos, que são exigências para que ele seja conhecido. Vicente Grecco Filho classifica os pressupostos em objetivos (cabimento, adequação, tempestividade, regularidade procedimental e inexistência de fato impeditivo ou extintivo) e pressupostos subjetivos (sucumbência e legitimidade para recorrer). Para o citado autor, são fatos impeditivos: a renúncia e o não-recolhimento à prisão nos casos em que a lei exige; são fatos extintivos: a desistência e a deserção.

Nos termos do artigo 578 do Código de Processo Penal, não há obrigação alguma que determine ao recorrente, no ato da interposição da petição ou termo, de dar seus motivos para a interposição, bastando que declare sua inconformidade com a sentença. A motivação será exposta nas razões do recurso.

De acordo com o artigo 798, § 5º do Código de Processo Penal, salvo nos casos expressos, os prazos dos recursos correm: a) da intimação; b) da audiência ou sessão em que for proferida a decisão, se a ela estiver presente a parte; c) do dia em que a parte manifestar nos autos ciência inequívoca da sentença ou despacho. Diferentemente do processo civil, no penal o prazo é contado do dia da intimação e não da juntada do respectivo mandado aos autos.

No caso de intimação da sentença por precatória, já se decidiu que o prazo para recurso conta-se da juntada aos autos da carta devidamente cumprida, contudo, tal entendimento não prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, conforme o Enunciado 710 de sua Súmula: “no processo penal, contam-se os prazos da intimação e não da juntada aos autos do mandado ou da carta precatória ou de ordem”. Quanto os recursos interpostos perante no Superior Tribunal de Justiça, aplica-se o Enunciado 216 da Súmula daquela Corte: “a tempestividade do recurso interposto n Superior Tribunal de Justiça é aferida pelo registro no protocolo da Secretaria e não pela data da entrega na agência do correio”.

São condições para a interposição do recurso: a) legitimidade; b) interesse; c) possibilidade jurídica. Eventualmente, os dois primeiros são chamados de pressupostos subjetivos do recurso. Já se decidiu que nada obsta a interposição de recurso por parte de defensor dativo, mesmo sem a anuência do réu preso ou da Defensoria Pública, ainda que revel o acusado. Ainda que se trate de defensor constituído, tem-se entendido que, apesar da renúncia do réu, seu patrono pode recorrer diante do caráter público da defesa técnica, concebida como ofício de interesse da comunidade e condição necessária para a realização do contraditório e do devido processo legal.

Pondere-se, contudo, o direito de renunciar é da parte, não podendo ter seu exercício obstado pela discordância do advogado constituído e muito menos pelo defensor dativo, a quem não foram concedidos poderes para tal. Admissível é apenas a exigência que se tem prescrito, como garantia de defesa, de que a renúncia ou desistência do acusado seja feita por termo nos autos e assinada por duas testemunhas.

Segundo a jurisprudência, havendo discordância entre o réu e seu defensor, que interpôs recurso ou pretende fazê-lo, exige-se que a desistência do acusado seja tomada por termo para que possa prevalecer. Tratando-se de apelação, a renúncia do réu manifestada sem assistência de seu defensor não impede o conhecimento do recurso por este interposto, nos termos do Enunciado 705 da Súmula do Supremo Tribunal Federal.

Quanto ao Ministério Público, sendo patente a desconformidade entre o que foi pedido na denúncia e o que ficou decidido na sentença, tem ele legítimo interesse para recorrer, embora seja ela condenatória. Como o Parquet tem sempre interesse na exata aplicação da lei, de acordo com o artigo 257, mesmo como parte acusatória na ação penal, deve-se-lhe reconhecer o direito de recorrer em favor do réu. O Ministério Público não pode recorrer em lugar do querelante, pois, transferido por lei o jus acusationis para o particular na ação privada, falta-lhe o interesse no recurso em prol da acusação.

A sucumbência pode ser única, se o gravame é apenas uma das partes; múltipla, se atinge vários, interesses; paralela, se atinge interesses idênticos; recíproca, se atinge interesses opostos; direta, quando atinge uma das partes da relação processual; reflexa, quando alcança pessoas que estejam fora da relação processual; total, quando o pedido é rejeitado integralmente; parcial, quando o pedido é atendido apenas em parte.

O princípio da voluntariedade do recurso é excepcionado pela lei, quando este prevê o recurso de ofício (obrigatório ou necessário). Apresenta-se o recurso ex officio como uma providência imposta por lei no sentido do reexame de sentenças e decisões pelos órgãos judiciários superiores, quando versem determinadas matérias e segundo a decisão adotada. Por isso, o recurso de ofício é chamado de recurso anômalo. São recursos que devem ser obrigatoriamente interpostos pelo Juiz, na decisão, não transitando em julgado a sentença que tiver omitido (Enunciado 423, da Súmula do STF). O recurso de ofício não está sujeito a prazo e dispensa fundamentação e intimação das partes para arrazoarem.

Conforme se infere do artigo 574 do CPP, são obrigatórios os recursos contra: a) sentença que conceder habeas corpus; b) sentença que absolver desde logo o réu com fundamento na existência de circunstância que exclua o crime ou isente o réu de pena, nos termos do artigo 411 do CPP – tal disposição é aplicável apenas em processo de competência do Tribunal do Júri e tem efeito suspensivo. As hipóteses de recurso ex officio não se esgotam no artigo 574 do CPP, uma vez que a legislação penal prevê outros casos (v. g. sentenças absolutórias nos crimes contra a economia popular; despachos que determinem no arquivamento do inquérito policial relativo a esses crimes; contra decisão que indefere liminarmente a revisão).

O Juiz perante o qual é interposto o recurso deve realizar um juízo de admissibilidade, verificando se estão presentes, no caso, os pressupostos objetivos e subjetivos da impugnação. Mas o recebimento do recurso pelo Juiz a quo não subtrai do Juízo ad quem o exame dos pressupostos da impugnação. Diante da regra tempus regit actum, os recursos regem-se, quanto à sua admissibilidade, pela lei em vigor ao tempo em que a decisão recorrida é proferida.

A parte não deve ficar prejudicada se há equívoco no meio pelo qual deve ser efetuado o reexame da decisão. Adota-se o princípio da fungibilidade dos recursos, conforme leitura do artigo 579 do Código de Processo Penal: “salvo na hipótese de má-fé, a parte não será prejudicada pela interposição de um recurso por outro”. Contudo, não se permite o conhecimento do recurso indevido, ainda que no prazo a este concedido, se esgotado o prazo do recurso devido.

O efeito devolutivo, em sentido amplo, é comum a todos os recursos, ou seja, em todos há transferência para a instância superior (eventualmente a mesma instância, nos casos de embargos declaratórios) do conhecimento de determinada questão. Pelo efeito suspensivo, o recurso funciona como condição suspensiva da eficácia da decisão, que não pode ser executada até que ocorra o seu julgamento. A lei deve prever expressamente as hipóteses em que ocorre tal efeito, no seu silêncio, o recurso não impede a eficácia da decisão recorrida. O efeito extensivo está previsto no artigo 580 do Código de Processo Penal: “no caso de concurso de agentes, a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveitará aos outros”. Fala-se em efeito regressivo (iterativo ou diferido), que é o juízo de retratação possibilitado ao prolator da decisão, que pode alterá-la ou revogá-la inteiramente, quando se trata de determinadas impugnações, como no caso de recurso em sentido estrito.

Os recursos podem ser extintos antes de seu julgamento pelo Juízo ou Tribunal ad quem nas seguintes hipóteses: a) deserção, que é a falta de preparo ou pagamento das despesas exigidas por lei; a deserção também ocorre com a fuga do condenado depois de haver apelado (artigo 595 do Código de Processo Penal) – esta última hipótese não se configura quando a prisão é decretada aos a interposição; b) desistência.

Recurso em Sentido Estrito

Outrora conhecido na linguagem forense como recurso de agravo, o recurso em sentido estrito está previsto no artigo 581 do Código de Processo Penal, o qual relaciona quais as decisões passíveis de serem impugnadas. A opinião predominante é a de que o citado dispositivo é exaustivo, contudo, não se pode olvidar que a lei processual penal, como qualquer outra, em caso de lacunas, admite a interpretação extensiva pela analogia, costumes e princípios gerais do Direito.

O recurso em sentido estrito é cabível contra a decisão que não receber a denúncia ou a queixa, quando for o caso de recebimento, pode ser impetrado habeas corpus. Ressalte-se que quando este ato for do Relator, em instância superior, no processo originário, o recurso é o agravo regimental, tal como dispõe o artigo 39 da Lei 8.030/90 e os regimentos internos. Equivale à rejeição da inicial a decisão que só a admite com capitulação diversa, pois nessa hipótese da denúncia ou queixa não é recebida tal como foi apresentada.

O recurso em sentido estrito também deve ser interposto contra a decisão que concluir pela incompetência do Juízo e que julgar procedentes as exceções, salvo a de suspeição.

Outra hipótese de cabimento do recurso em sentido estrito é contra a sentença proferida que pronunciar ou impronunciar o réu nos processos a serem submetidos ao julgamento pelo Tribunal do Júri. Tem se decidido que é inadmissível, em sede de recurso em sentido estrito, excluir circunstância qualificadora, uma vez que o tema deve ser reservado ao Tribunal do Júri, entretanto, nada impede que se dê procedência ao recurso para excluí-la quando de todo impertinente e sem qualquer apoio nos autos.

Cabe recurso em sentido estrito da decisão que conceder, negar, arbitrar ou julgar inidônea fiança, ou indeferir requerimento de prisão preventiva ou revogá-la, conceder liberdade provisória ou relaxar a prisão em flagrante. É incabível o recurso no caso de o Juiz decretar medida cautelar ou indeferir o pedido de relaxamento da prisão decretada. Na hipótese de haver constrangimento ilegal por defeito formal ou material da decisão que decretou a prisão, ou por haverem desaparecido das razões da medida cautelar, cabe o pedido de habeas corpus.

O recurso em sentido estrito deve ser manejado em face de decisão que absolver o réu com fundamento no artigo 411 do Código de Processo Penal. Tratando-se de absolvição sumária, com imposição de medida de segurança, além da acusação, também o acusado tem interesse na impugnação da decisão por meio do recurso em sentido estrito e não da apelação.

Quando a fiança for quebrada ou decretado perdido seu valor, pode a parte interpor recurso em sentido estrito. O recurso da perda da fiança tem efeito suspensivo e, no caso e quebra, suspenderá unicamente o efeito a perda da metade do seu valor.

Decretada a prescrição ou julgada extinta a punibilidade por outro modo pode a parte interessada valer-se do recurso em sentido estrito. Da mesma forma, é possível ser atacada a decisão que indefere o pedido de reconhecimento da prescrição ou outra causa extintiva da punibilidade.

A decisão que conceder ou negar a ordem de habeas corpus, quando proferida por Juiz singular, cabe recurso em sentido estrito. Quando concessiva, o meio adequado é o recurso ex officio. O Ministério Público, que não tem sua intervenção assegurada no habeas corpus em primeira instância, pode recorrer da concessão do writ, representando o Estado-Administração, titular do jus puniendi, razão pela qual deve ser, obrigatoriamente, intimado da decisão.

O recurso em sentido estrito é cabível quando se anular o processo da instrução criminal, no todo ou em parte.

A inclusão ou exclusão de jurado na lista geral pode ser impugnada pelo recurso em sentido estrito. São legitimados para tanto qualquer pessoa, podendo o interessado recorrer no prazo de 20 dias da publicação da lista, dirigindo sua reclamação ao Presidente do Tribunal.

Cabe recurso em sentido estrito quando o Juiz singular ordenar a suspensão do processo, em virtude de questão prejudicial, referindo-se a lei aqui à suspensão do processo até o pronunciamento do Juiz civil nas hipóteses do artigo 92 e 93 do Código de Processo Penal. A unificação de penas, embora de competência do Juiz da execução, não é prevista na Lei de Execução Penal, mas sim no Código Penal e, nessa hipótese, deve aplicar a regra geral do Código de Processo Penal quanto ao cabimento do recurso em sentido estrito.

O recurso em sentido estrito pode ser interposto em face de incidente de falsidade que, se julgado procedente, provoca a exclusão do documento impugnado dos autos e, se denegado, a sua mantença como prova.

Como regra geral, devem apreciar o recurso em sentido estrito os Tribunais de Justiça, de Alçada, Regionais Federais, Regionais Eleitorais ou Militares competentes de acordo com a Constituição Federal e estaduais e as leis de organização judiciária. O recurso deve ser endereçado ao Tribunal competente, mas interposto perante o Juiz que pode rever a decisão. Entretanto, o Código de Processo Penal prevê exceções. Quanto à decisão de excluir ou incluir jurado na lista geral, será dirigido ao presidente do Tribunal de Justiça.

O prazo para interposição do recurso em sentido estrito é de 5 (cinco) dias, considerado o termo inicial conforme a hipótese. A lei, porém, faz exceções a tal regra. Tratando-se da hipótese referente à lista de jurados, o prazo será de 20 (vinte) dias. Será de 15 (quinze) dias, a partir do dia em que terminar o prazo do Ministério Público, para o ofendido ou qualquer das pessoas autorizadas por lei para recorrer da impronúncia. Este recurso suspende tão-somente o julgamento, vedando-se a interposição se o réu não estiver preso – salvo se prestar fiança, nos casos em que a lei admitir. O recurso em sentido estrito contra a impronúncia não impede que o réu seja posto imediatamente em liberdade.

O Código de Processo Penal admite hipóteses em que o recurso em sentido estrito deve ser interposto por instrumento, como exceção. Sobem, mediante traslado, quando houver dois ou mais réus e qualquer deles se conformar com a decisão e optar por não recorrer ou não tiver sido intimado.

Afora as hipóteses dos incisos I (denúncia ou queixa), III (exceções), IV (pronúncia ou impronúncia), VI (absolvição), VIII (prescrição ou extinção da punibilidade) e X (habeas corpus), o recurso em sentido estrito subirá em instrumento – composto de traslados que devem ser extraídos, conferidos e concertados no prazo de 5 (cinco) dias e dos quais deve constar, obrigatoriamente, a decisão recorrida, a certidão de intimação do recorrente, se por outra forma não for possível verificar-se a oportunidade do recurso e o termo de interposição; tratando-se de petição, esta será a peça inicial do traslado.

Não obstante o entendimento diverso da doutrina, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, consubstanciado no Enunciado 707 de sua Súmula, indica que constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não suprindo a nomeação do defensor dativo.

No recurso em sentido estrito não existe a faculdade de apresentar razão em segunda instância, nos termos do artigo 600, § 4º do Código de Processo Penal.

Como o Ministério Público tem a faculdade de retirar os autos de cartório para arrazoar, o prazo concedido ao assistente, que também pode fazê-lo, só se inicia após a apresentação do Parquet, seja este recorrente ou recorrido. Ainda que interposto o recurso pelo querelante, o Ministério Público se manifesta no prazo de 2 (dois) dias, após aquele, já que deve intervir em todos os termos da ação penal, inclusive na de iniciativa privada.

Havendo dois ou mais réus, o prazo será comum para os respectivos defensores, pois os autos, nessa hipótese, permanecem em cartório.

De acordo com o entendimento doutrinário e do Supremo Tribunal Federal, não obsta à subida do recurso em sentido estrito a falta de razões do recorrente. Diversamente, é indispensável a apresentação de razões pelo Ministério Público, quando recorrente, já que não pode ele desistir do recurso após sua interposição. Não é indispensável que tenham sido oferecidas as contra-razões do recorrido.

O recurso em sentido estrito admite o chamado efeito regressivo, pelo qual o Juiz pode reexaminar sua decisão. De fato, recebendo os autos conclusos, o Magistrado, dentro de dois dias, reformará ou sustentará seu despacho, mandando instruir o recurso com os traslados que lhe parecerem necessários.

Se o Juiz reformar a decisão, a parte contrária, por simples petição, poderá recorrer da nova decisão (se couber recurso) não sendo mais lícito ao Juiz modificá-la. O prazo para provocação pe de 5 (cinco) dias da publicação da resposta do Magistrado a quo, podendo ser apresentada ao Julgador ou Tribunal ad quem ou entregue ao Correio no mesmo prazo. Trata-se de novo recurso, que se impetra por simples requerimento da parte vencida no reexame do Juiz. Por isso, é necessário verificar se tal decisão comporta recurso em sentido estrito. Assim, por exemplo, se o Juiz julgar improcedente a exceção de litispendência, reformando sua decisão em que a admita, a parte vencida não terá possibilidade de impugnar a nova decisão por não se admitir recurso do julgamento da improcedência das exceções. Interposto recurso da decisão de reexame, ele subirá nos próprios autos ou em traslado, independentemente de novos arrazoados.

Além do efeito devolutivo e do efeito regressivo, o recurso em sentido estrito provoca, em algumas hipóteses, o efeito suspensivo, ou seja, de não se executar a decisão impugnada até seu julgamento. Os efeitos ficam suspensos por força da interposição do recurso contra o ato que denega apelação são os que decorrem do despacho recorrido e não os da sentença condenatória, entre quais encontra-se a expedição do mandado de prisão.

Fonte: Processo Penal. Julio Fabbrini Mirabete.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Limitações ao Poder de Tributar

A competência tributária está umbilicalmente ligada à forma de divisão do Estado brasileiro, onde coexistem três entidades políticas autônomas e independentes: União, Estados e os Municípios, além do Distrito Federal. A ausência de hierarquia entre elas fez que o texto constitucional estabelecesse a repartição de competência legislativa de cada uma, delimitando o campo de atuação de cada pessoa jurídica de direito público interno. Em matéria tributária foi conferido tratamento específico em atenção à tipicidade da Federação brasileira, onde o contribuinte é súdito, ao mesmo tempo, de três senhores distintos.

A Constituição Federal atribui competência comum às três esferas impositivas no que tange às taxas e contribuições de melhoria, porque se tratam de tributos vinculados à atuação estatal. O Poder Público que promoveu a medida será o sujeito ativo destes tributos.

Os impostos são tributos desvinculados de qualquer atuação estatal. Daí a necessidade de a Carta Magna promover a outorga de competência tributária entre os poderes tributantes – discriminação constitucional de rendas tributárias –, sob pena de o sujeito passivo ser surpreendido com o mesmo tipo de imposto instituído por duas ou mais entidades políticas. Dessa forma, evita-se a bitributação jurídica, que é inconstitucional porque uma entidade estará, necessariamente, invadindo a esfera de competência impositiva de outra.

A partilha de competência tributária é uma limitação ao poder de tributação, na medida em que a outorga de competência privativa a uma entidade política implica, ipso facto, a vedação do exercício dessa competência por outra entidade política não contemplada.

Os princípios tributários expressos na Constituição Federal, juntamente com os implícitos, decorrem do regime federativo e dos direitos e garantias fundamentais e constituem o escudo de proteção dos contribuintes, atuando com freios que limitam o poder de tributação do Estado.

As limitações constitucionais ao poder de tributar se consolidam nos seguintes princípios:

- Princípio da legalidade tributária: a Constituição Federal, não bastasse o princípio genérico da legalidade (artigo 5º, inciso II), dispõe no artigo 150, inciso I que é vedado aos entes federados exigir a cobrança de tributo sem lei que o estabeleça. Esse princípio não se resume apenas na vedação de instituição ou majoração, hoje, ele preside a política de incentivos fiscais, a concessão e a revogação de isenção, de remissão e de anistia. O artigo 97 do Código Tributário Nacional enumera as matérias inseridas no campo da reserva legal. Registre-se que a repetição de indébito repousa no princípio da legalidade, impondo a reposição do solvens no status quo ante sempre que constatado o pagamento sem fundamento na lei. O sujeito passivo que efetuar o pagamento de tributo sem base legal – não praticou o fato típico; a base de cálculo não corresponde à previsão legal; a alíquota aplicada estatuída em lei; etc – terá direito à repetição independentemente de ter suportado ou não o respectivo encargo financeiro.

- Princípio da anterioridade e princípio da nonagesimidade: pelo primeiro, a cobrança do tributo está vinculada a cada exercício financeiro, que é anual, coincidindo com o ano-calendário. Tem sentido de anterioridade da lei instituidora ou majoradora do tributo em relação ao exercício financeiro da cobrança, conforme se infere do artigo 150, inciso II, aliena “b” da Constituição Federal. Constitui uma garantia constitucional, insuscetível de supressão via emenda constitucional.

A nonagesimidade (noventena) não chega a ser um princípio tributário, ela se assemelha a um prazo de carência concedido pelas instituições bancárias, para o exercício de resgate das importâncias mutuadas. A noventena não assegura direito algum à imutabilidade da legislação tributária material, implicando instituição de novo tributo ou sua majoração no decurso do ano do exercício fiscal, pois, em tese, quatro aumentos poderão ocorrer (um a cada 90 dias). A nonagesimidade não tem aplicação e relação aos tributos não submetidos ao princípio da anterioridade (empréstimo compulsório; imposto de importação, de exportação, sobre produtos industrializados, sobre operações financeiras e extraordinários).

- Princípio da isonomia tributária: decorre do princípio da igualdade genérico. Ele veda o tratamento diferenciado de pessoas sob os mesmos pressupostos de fato, impede discriminações tributárias, privilegiando ou favorecendo determinadas pessoas físicas ou jurídicas. Dele infere-se o princípio da generalidade da tributação, da mesma forma que do princípio nullum tributum sine lege infere-se o princípio da legalidade da isenção, isto é, não pode haver isenção sem lei. E não pode haver isenção sem obediência ao princípio da isonomia.

A lei isentiva não pode importar no estabelecimento de uma situação de desigualdade jurídica formal, estabelecendo tratamento desigual de pessoas que se encontram sob os mesmos pressupostos fáticos, sob pena de inconstitucionalidade. Quando o tratamento diferenciado dispensado pelas normas jurídicas guardar relação de pertinência lógica com a razão diferencial (motivo do tratamento discriminatório), não há que se falar em afronta ao princípio da isonomia.

Da mesma forma, não afronta esse princípio quando a lei elege determinada situação objetivamente considerada para prescrever a inclusão ou a exclusão de determinado benefício, ou a imposição de certo gravame. Convém não confundir o princípio da isonomia com a errônea interpretação ou aplicação do texto legal, gerando situação de desigualdade em confronto com soluções dadas aos vários outros casos concretos sobre o mesmo assunto.

- Princípio da capacidade contributiva: inscrito no artigo 145, § 1º da Constituição Federal, tem por escopo a justiça fiscal, repartindo os encargos do Estado na proporção das possibilidades de cada contribuinte. O texto constitucional refere-se corretamente à capacidade econômica do contribuinte, que corresponde à capacidade contributiva. O preceito não gera direito subjetivo para o contribuinte, que não poderá bater às portas do Poder Judiciário pleiteando que determinado imposto ajuste-se ao seu perfil econômico. O dispositivo produz efeito pelo seu aspecto negativo, à medida que confere ao contribuinte a faculdade de exigir que o Poder Público não pratique atos que o contravenha.

- Princípio da vedação de efeito confiscatório: é extraído o artigo 150, inciso IV da Constituição Federal. O tributo de efeito confiscatório não se confunde com o confisco relacionado com a infração, que é o único admitido pela doutrina e jurisprudência. No entanto, é tormentosa a definição do que vem a ser efeito confiscatório. Um critério que pode projetar luz sobre essa intrincada questão é o da razoabilidade. É certo que não existe um parâmetro legal para aferição do critério da razoabilidade da tributação. Diríamos que o conceito de razoável está mais para o sentir do que para o definir. Ainda que, o que é razoável para uma pessoa possa ser irrazoável para outra, a verdade é que existe um limite que está na consciência média dos indivíduos, o qual estabelece o marco divisor entre uma e outra. O princípio da capacidade contributiva deve ser levado em consideração na avaliação do efeito confiscatório de um tributo.

Ultrapassada a capacidade econômica do sujeito passivo, estaria caracterizado o confisco, contudo, seu conceito não pode ser considerado na concepção teórica, extraída da Ciência das Finanças, mas dentro dos limites das demais garantias constitucionais, sob pena de, por meio de imposição tributária, cometer a apropriação da propriedade do contribuinte de elevada capacidade econômica. Registre-se que é impossível o Poder Judiciário acoimar de confiscatório esse ou aquele imposto, sob o fundamento de que é excessivamente oneroso, ou de que ultrapassou o limite razoável da tributação, tornando-o extremamente injusto. Não cabe ao Juiz examinar o fenômeno tributário sob o aspecto da conveniência, nem substituir o critério de justiça do legislador por seu próprio critério. A onerosidade da imposição fiscal deve ser harmonizar com os princípios constitucionais, garantidores do direito de propriedade, da liberdade de iniciativa, da função social da propriedade, etc.

- Princípio da imunidade recíproca: essa imunidade, que abarca apenas os impostos, não exclui a atribuição por lei, às entidades políticas, da condição de responsáveis pelos tributos que lhes cabe reter na fonte e nem dispensa o cumprimento das obrigações acessórias, conforme preceituado no artigo 9º, § 1º do Código Tributário Nacional. A Constituição Federal estendeu a imunidade recíproca às autarquias e fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, porém, só no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços, vinculados às suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes, na esteira de seu artigo 150, § 2º.

Esse princípio não terá aplicação se o sujeito passivo explorar atividade econômica regida por normas próprias de empreendimentos privados, bem como quando houver contraprestação ou pagamento de tarifas pelo usuário, nem exonerará o promitente comprador da obrigação de pagar o imposto relativo ao imóvel (artigo 150, § 3º da Constituição Federal).

Merece registro o entendimento do Supremo Tribunal Federal, exposto no RE 407.099, no qual foi conhecida a imunidade recíproca a favor da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, que é uma empresa pública. Por meio da interpretação sistemática dos textos constitucionais, a Corte Suprema equiparou a referida empresa a uma autarquia, para fins do artigo 150, § 2º da Constituição Federal e, ao mesmo tempo, afastou as restrições do § 3º do mesmo artigo. Pelo fato de a ECT ser prestadora de serviço público de competência privativa da União, foram afastadas também as ressalvas dos §§ 1º e 2º do artigo 173 da Carta Magna. A título ilustrativo, vejamos a ementa do julgado:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS: IMUNIDADE TRIBUTÁRIA RECÍPROCA: C.F., art. 150, VI, a. EMPRESA PÚBLICA QUE EXERCE ATIVIDADE ECONÔMICA E EMPRESA PÚBLICA PRESTADORA DE SERVIÇO PÚBLICO: DISTINÇÃO. I. - As empresas públicas prestadoras de serviço público distinguem-se das que exercem atividade econômica. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos é prestadora de serviço público de prestação obrigatória e exclusiva do Estado, motivo por que está abrangida pela imunidade tributária recíproca: C.F., art. 150, VI, a. II. - R.E. conhecido em parte e, nessa parte, provido. (RE 407099 / RS; Relator(a): Min. CARLOS VELLOSO; Julgamento: 22/06/2004; Órgão Julgador: Segunda Turma; Publicação: DJ 06-08-2004 PP-00062)

- Princípio da imunidade genérica: constante do artigo 150, inciso VI, alienas “a” a “d”. Em termos de doutrina tradicional, a imunidade vem conceituada como vedação ao poder fiscal de instituir impostos. Daí a generalização da idéia de que a imunidade só serve para essa espécie tributária. Entretanto, a Constituição Federal prevê hipóteses de imunidades de outras espécies tributárias (ex.: princípio da unidade geográfica).

A imunidade dos templos visa à proteção dos valores espirituais. A expressão templos culto abrange não só o edifício onde se realiza a prática religiosa, como também o próprio culto, sem qualquer distinção de ritos. A doutrina também inclui na imunidade as edificações relacionadas com o culto (ex.: convento, seminário), bem os bens com ele relacionados (ex.: veículo utilizado como templo móvel exclusivamente para a prática religiosa). O benefício não é extensível às atividades decorrentes de finalidades essenciais da religião.

A imunidade dos partidos políticos também abrange as fundações por ele instituídas e as entidades sindicais dos trabalhadores. É restrita à renda e aos serviços relacionados com as finalidades essenciais dessas entidades. A título ilustrativo, merece ser consignado que os imóveis alugados por entidades assistenciais (ex. SESI) sujeitam-se ao IPTU, contudo, se a renda obtida com a locação desses imóveis for aplicada exclusivamente na consecução objetivos estatutários, ela ficará a salvo de tributação. O Supremo Tribunal Federal tende a reconhecer a imunidade das atividades atípicas, desde que destinada à obtenção de recursos financeiros para o desenvolvimento de atividades típicas.

É objetiva a imunidade dos livros, jornais, periódicos e ao papel destinados à sua impressão. Não interessa o conteúdo das publicações. Está superada a jurisprudência que exigia o caráter jornalístico, literário, artístico, cultural ou científico. Numa interpretação extensiva, e imune qualquer material suscetível de ser assimilado ao papel utilizado na impressão da publicação. O avanço da informática fez que o conceito de livro não se restringisse unicamente ao aspecto físico, apegando-se ao objeto cultural, ou seja, o livro passou a ser assim entendido pela sua função de transmitir conhecimento e informações.

Fundamentado no princípio da simetria, todos os materiais necessários à confecção do jornal, inclusive o maquinário são abrangidos pela imunidade. O Supremo Tribunal Federal, no Enunciado 657 de sua Súmula, ao incluir no rol da benesse os filmes e papéis destinados à publicação, consolidou a interpretação extensiva à imunidade do livro e do jornal.

- Princípio da imunidade de tráfego interestadual e intermunicipal: é uma decorrência natural da unidade econômica e política do território nacional. Objetiva assegurar a livre circulação de bens e de pessoas ou meios de transportes, que não pode ser limitada ou embaraçada por tributação interestadual ou intermunicipal, ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público.

- Princípio da uniformidade de tributo federal em todo território nacional: a uniformidade de tributo federal não significa a impossibilidade de haver discriminações, isto, que todos devam pagar exatamente igual. O que o referido princípio veda é a discriminação de tributo federal em virtude do lugar de ocorrência do fato gerador. A Constituição Federal ressalva a outorga de incentivos fiscais, destinados a promover o desenvolvimento socioeconômico integrado do território nacional como um todo.

- Princípio da uniformidade de tributo estadual ou municipal quanto à procedência ou destino de bens e serviços de qualquer natureza: decorre do princípio federativo e proíbe qualquer tipo de barreira tributária entre os Estados e Municípios, fonte de grandes controvérsias judiciais. Cabe ressaltar que é lícito o estabelecimento de alíquotas diferenciais de ICMS para as operações internas, interestaduais e de exportação. Em relação às operações e prestações que destinem bens ou serviços a consumidor final localizado em outro Estado, aplica-se a alíquota interestadual, quando o destinatário for contribuinte do imposto e a alíquota interna quando de destinatário não for contribuinte do ICMS (artigo 150, inciso VII, alíneas “a” e “b” da Constituição Federal).

- Princípio da igualdade de tratamento dos títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal e dos vencimentos pagos pela três entidades políticas: não permite que a União trate desigualmente suas próprias dívidas e as de outros entes políticos, bem como os vencimentos de seus servidores e aqueles de outras esferas de governo.

- Princípio da imunidade do imposto sobre a renda relativamente a proventos de aposentadoria e pensão percebidos por pessoas com idade superior a 65 anos: é condicionado à inexistência de outros rendimentos auferidos pelo beneficiário que não sejam exclusivamente os do trabalho.

- Princípio da vedação de a União decretar isenção de impostos das entidades periféricas: só pode isentar que tem o poder de tributar.

- Princípios implícitos: as limitações do poder de tributar não se esgotam nos princípios expressos até agora examinados. Outras existem que decorrem do regime federativo e dos próprios adotados pela Constituição e das garantias individuais expressa ou implicitamente por ela asseguradas; Assim, estão implícitos os princípios da indelegabilidade da competência tributária, da tipicidade, bem como outros que derivam dos diversos incisos do artigo 5º da Constituição Federal.


Fonte: Direito Financeiro e Tributário. Kiyoshi Harada.

sábado, 15 de agosto de 2009

Licitação - Aspectos Jurídicos

O Estado não é autossufciente e, de fato, em uma economia de mercado nem poderia ser, haja vista que o Poder Público deve atuar em campo restrito, limitar-se à consecução das finalidades estatuídas constitucionalmente. Assim, a Administração deve buscar com o particular os meios necessários para o funcionamento do aparato estatal e, como objetivo precípuo, para a satisfação do interesse público.

Tendo em vista que o Estado não pode dispor livremente dos recursos que aufere, pois a sociedade é a verdadeira proprietária, o modo pelo qual os valores são despendidos não pode ficar ao alvedrio do administrador. Para conferir maior segurança, deve a lei regular o modo de aplicação dos recursos. Dessa forma, para entabuar relação jurídica com particular, em que o Poder Público busca o fornecimento de um produto ou serviço, deve-se, salvo as exceções expressas em lei, trilhar o procedimento da licitação.

O que é licitação?

A licitação pode ser definida como um procedimento relativo ao modo de celebrar determinados contratos, cuja finalidade é a determinação da pessoa que ofereça à Administração condições mais vantajosas, após um convite a eventuais interessados que formulem propostas, as quais serão submetidas a uma seleção.

A aplicabilidade dos princípios informadores da licitação aos atos concretos praticados pela Administração independe da existência de disposição normativa expressa e acarreta diretamente a nulidade dos atos desconformes, ensejando, ainda, a responsabilidade de seus agentes.

Na prática das licitações o que se observa é que, muitas vezes (por má-fé ou ignorância), a regularidade do procedimento é questionada por interpretações literais ou burocráticas, no pior sentido desse termo. A isso se presta uma legislação detalhista, minuciosa e pretensiosamente completa.

A licitação é regulada pela Lei n.º 8.666/93, contudo, este já não é o único diploma legal a estabelecer “normas gerais de licitação e contratação”, em todas as suas modalidades, conforme determina o artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal. Hoje existe um conjunto de leis federais que estabelecem outras normas gerais de licitação e contratação.

A lei não pode evitar a corrupção, mas a sociedade, esta sim, pode eliminá-la através da participação e da vigilância. Para que isso seja possível, a licitação deve revestir-se de um caráter de publicidade real, que torne possível sua verificação imediata e instantânea por qualquer pessoa, como aconteceria, por exemplo, em decorrência da obrigatoriedade do registro em Cartório de, pelo menos, o edital de licitação. A idéia que está por trás disso é a seguinte: a publicidade da licitação não é só do interesse dos participantes, mas sim da coletividade, dos cidadãos, dos contribuintes, que não podem ser privados do acesso ao edital. Atualmente, diante da limitadíssima publicidade, fica aberto o campo para o conluio, para a possibilidade de acordos deletérios para o erário.

Quanto à natureza jurídica da licitação, há severas divergências na doutrina. Destacamos a presença de três correntes: a) a que considera a licitação como um instituto do direito financeiro; b) outra a inclui no ramo do direito administrativo, contudo a considera mero ato-condição; c) a terceira corrente também a insere no direito administrativo, no entanto, classifica a licitação como um procedimento administrativo.

O entendimento segundo o qual a licitação estaria ligada ao direito financeiro tem poucos seguidores. Filia-se a ele Di Renzo, argumentando que a atividade contratual do Estado, incluída entre as atividades de gestão econômico-financeira, é regulada pelo ordenamento contábil, uma vez que leva a uma receita ou a uma despesa, incidindo sobre o patrimônio público. Portanto, integra o complexo de normas que regulam o regime da gestão financeira e patrimonial públicas. Os principais autores brasileiros (Carlos S. de Barros Júnior e Hely Lopes Meirelles) já sustentaram essa posição. Da mesma forma, as normas que disciplinavam a formação dos contratos da Administração já estiveram contidas no ordenamento contábil, especialmente, entre as normas reguladoras da despesa pública. Considerava-se que as disposições legais sobre licitações estavam integradas entre as normas gerais de direito financeiro.

Entretanto, tanto o antigo Código de Contabilidade da União quanto a legislação federal atualmente em vigor vão muito além da simples fixação de padrões de conduta, na verdade, estabelecem rotinas de serviço atém em seus mais minuciosos detalhes. Impossível, portanto, reconhecer-lhes o caráter de normas gerais. A disciplina jurídica da gestão patrimonial e financeira de natureza pública, que sintetiza o campo próprio do direito financeiro, é matéria que, teoricamente, também poderia ser considerada inerente ao direito administrativo, na medida em que este é gênero do qual aquele é espécie.

No direito positivo brasileiro há, atualmente, uma nítida separação entre o que é direito administrativo e o que é direito financeiro, dado que os assuntos inerentes a um e a outro recebem na Constituição Federal tratamentos totalmente distintos.

Analisando a licitação sob o prisma da competência constitucional para legislar sobre o assunto, Geraldo Ataliba concluiu pela impossibilidade de sua inclusão no campo do direito financeiro, cujo conteúdo abarca apenas a contabilidade pública, o orçamento, a fiscalização financeira, o crédito público, as receitas não tributárias do poder público, e nada mais.

Para saber se a licitação cabe no campo do direito administrativo é necessário perguntar: para que serve a licitação? Qual é seu objetivo? Resposta: a seleção de um possível contratante com o Poder Público. A licitação está para os contratos assim como o concurso está para as pessoas.

Licitação nunca foi matéria de direito financeiro. Essa controvérsia está sepultada de vez. Hoje, a Constituição Federal no artigo 24, inciso I dispõe que compete à União expedir normas gerais de direito financeiro. No artigo 22, inciso XVII, preceitua que compete à União expedir normas gerais de licitação. Isso evidencia que a licitação não pertence ao campo do direito financeiro. Se pertencesse, não precisaria haver uma norma específica, pois a licitação já estaria comportada naquela que dá competência à União para expedir normas gerais de direito financeiro. Licitação não é matéria de direito financeiro, é matéria típica, específica, de direito administrativo.

Repise-se que compete à União expedir normas gerais sobre licitações e contratações. No entanto, há que se reconhecer que não é norma geral aquela que corresponde a uma especificação, a um detalhamento. Norma geral é aquela que cuida da matéria de maneira ampla, que admite uma aplicação uniforme para todos os entes federados, que não é completa em si mesma, exige complementação. Também não são normas gerais: a) aquelas que objetivam uma ou algumas dentre as várias pessoas de direito público, participantes de determinadas relações jurídicas; b) aquelas que visem, particularmente, determinadas situações ou institutos jurídicos, com exclusão de outros da mesma condição ou espécie; c) as que se afastem dos aspectos fundamentais ou básicos, descendo a pormenores ou detalhes.

Normas gerais são declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente, limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos. O Estados-Membros deverão respeitá-las na feitura de suas respectivas legislações, através de normas específicas e particularizantes, detalhando-as, de modo que possam ser aplicadas, direita e imediatamente, a relações e situações concretas a que se destinam em seus respectivos âmbitos políticos.

A Lei n.º 8.666/93 não contém apenas normas gerais, pois desce a minúcias e detalhamentos que não podem enquadrar-se em tal conceito. Ele pode e deve ser acatada, sem restrições, pelos órgãos e entidades da Administração Federal, mas não merece integral acolhimento por parte dos Estados e Municípios, que precisam apenas respeitar as normas gerais aí contidas, mas devem editar suas próprias leis sobre licitações e contratos, ajustadas às respectivas particularidades.

A doutrina entende que as normas gerais da Lei n.º 8.666/93, aplicáveis a todos os entes federados, são apenas os princípios elencados nos artigos 1º a 5º, e mais algumas outras disposições amplas e genéricas que comportam aplicação uniforme em todo o território nacional. Entre as normas gerais estão aquelas que definem as espécies de licitação, conforme expressamente consignado no artigo 22, inciso XVII da Constituição Federal.

Decididamente a licitação é pertence ao direito administrativo. Seu objeto, o resultado jurídico, não é uma alteração patrimonial ou financeira, mas pura e simplesmente a eleição de um contratante com a Administração. Trata-se, portanto, de algo precedente a um contrato. Ora, como fase preliminar a uma manifestação de vontade da Administração, ou, mais propriamente, como meio técnico-jurídico de formação da vontade do Poder Público, claro está que a licitação somente pode ser regida pelo direito administrativo. Resta definir qual a espécie o instituo no qual a licitação se enquadra.

Parte da doutrina (Cretella Jr. e Themístocles Cavalcanti, no exterior, Alcides Greca e Jèze), consideram a licitação como ato-condição. Sucede, porém, que esses consagrados administrativistas atribuem especial ênfase à decisão de adjudicação, que seria a própria licitação, figurando as fases antecedentes como simples atos preliminares da adjudicação. Tal ato-condição seria, nas palavras de José Cretella Júnior, “operação complexa, constituída de vários atos jurídicos, todos da mesma natureza jurídica de atos-condição”.

Não obstante os notáveis defensores da tese, o entendimento não dardeja no melhor sentido. Isso porque a licitação, como um todo, não se enquadra perfeitamente no conceito de ato-condição.

O ato jurídico quanto ao aspecto material, quanto ao objeto, quanto ao resultado jurídico, isto é, quanto à alteração que traz à ordem jurídica, pode ser classificado em três espécies: ato-regra (aquele que estabelece situações gerais e impessoais – ex. lei); ato subjetivo (aquele que estabelece situações jurídicas individuais – ex. contrato); ato-condição (atribui a uma determinada pessoa uma situação geral e impessoal).

O ato condição é um ato de atribuição. A alteração por ele trazida à ordem jurídica é colocar uma pessoa determinada dentro da esfera de abrangência de regras gerais que não a atingiriam se ele não fosse praticado.

Com a licitação ocorre exatamente o contrário. Ele não coloca o indivíduo em uma condição genérica, e sim atribui uma situação individual a alguém escolhido dentre um grupo de ofertantes. Ao iniciar-se a licitação termos uma categoria geral de licitantes, e após o seu término, como seu resultado foi jurídico, passamos a ter um determinado contratante com a Administração. É possível considerar ato-condição apenas uma parte da licitação, qual seja, a apresentação da respectiva proposta pelo licitante. A partir daí, uma pessoa determinada, por meio de ato individual, ingressa em uma situação geral, que é a condição de licitante.

A corrente com maior número de adeptos é a que considera a licitação como um procedimento administrativo. O conceito de licitação encaixa-se com precisão na definição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello para procedimento administrativo, pois exige sucessivas manifestações de vontade, cada uma delas proferida exatamente em cada uma das fases autônomas que antecedem o ato jurídico final que as ligam.

O procedimento da licitação tem duplo objeto: eleger um contratante e estabelecer um contrato. Além disso, dada a impossibilidade de separar-se completamente a forma e o conteúdo do contrato, tanto esse conteúdo quanto os efeitos do contrato adquirem características próprias, decorrentes dos trâmites especiais necessários à conjunção de vontades do particular e do Estado. Assim, o regime jurídico não pode ser o geral da contratação civil ou da legislação administrativa, mas o decorrente da própria licitação e a validade do contrato fica condicionada à validade da própria licitação.

Da licitação não surge necessariamente um contrato, pois falta ainda o acordo de vontades. O procedimento da licitação é uma das etapas do processo de formação da chamada vontade contratual da Administração. Por meio da licitação o Poder Público move um chamamento para o objeto e seleciona um particular contratante.

A natureza jurídica da licitação é a de um procedimento administrativo do qual há de nascer um acordo ou um contrato que vinculará o ofertante com a Administração. A licitação não se confunde com o vínculo que dela resulta, é uma etapa preliminar do acordo que tende a determinar a pessoal com a qual ele se celebrará. É um procedimento que tem por efeito determinar a proposta mais vantajosa, da qual surgirá o acordo ou contrato, ao finalizar-se o procedimento.

A licitação é um procedimento pré-contratual, destinado à formação da vontade administrativa contratual, mas que não se confunde com o contrato, que somente existe após um acordo de vontades feito por meio de um procedimento legalmente previsto.

A licitação é um procedimento administrativo relacionado à forma do ato jurídico e que consiste num pedido de ofertas, num chamamento impessoal, para que todos que se encontrem em situação legal de fazê-lo formulem ofertas para a contratação respectiva. Ao findar-se o procedimento da licitação, com a aceitação da oferta, estará formado o vínculo contratual.

Celso Antonio Bandeira de Mello ensina que a licitação, antes de ser procedimento preliminar à despesa, é procedimento preliminar de um contrato, do qual advirá a despesa. Para o autor, a licitação tem dois propósitos: proporcionar às entidades governamentais possibilidade de realizarem o negócio mais vantajoso – e assegurar aos administrados ensejo de disputarem a participação nos negócios que as pessoas governamentais entendem de realizar com os particulares. Seabra Fagundes considera a licitação um procedimento administrativo, dizendo ser ela uma série de atos ligados entre si, como antecedentes e conseqüentes, e tendo como um de seus objetivos limitar a discrição da autoridade que contrata. José Afonso da Silva afirma serem as licitações procedimentos administrativos, unilaterais, vinculados e preparatórios ou preliminares dos contratos de compra e venda, de serviços e obras de que participa a Administração Pública.

A licitação é verdadeiramente um procedimento administrativo que em por objeto a seleção de um contratante com a Administração Pública. Após a licitação pode surgir um vínculo entre a Administração e o particular. Todavia, esse vínculo tem um objeto diferente do eventual contrato de fornecimento ou prestação de serviço que possa vir a ser celebrado.

Fonte: Aspectos Jurídicos da Licitação. Adilson Abreu Dallari.