sábado, 15 de agosto de 2009

Licitação - Aspectos Jurídicos

O Estado não é autossufciente e, de fato, em uma economia de mercado nem poderia ser, haja vista que o Poder Público deve atuar em campo restrito, limitar-se à consecução das finalidades estatuídas constitucionalmente. Assim, a Administração deve buscar com o particular os meios necessários para o funcionamento do aparato estatal e, como objetivo precípuo, para a satisfação do interesse público.

Tendo em vista que o Estado não pode dispor livremente dos recursos que aufere, pois a sociedade é a verdadeira proprietária, o modo pelo qual os valores são despendidos não pode ficar ao alvedrio do administrador. Para conferir maior segurança, deve a lei regular o modo de aplicação dos recursos. Dessa forma, para entabuar relação jurídica com particular, em que o Poder Público busca o fornecimento de um produto ou serviço, deve-se, salvo as exceções expressas em lei, trilhar o procedimento da licitação.

O que é licitação?

A licitação pode ser definida como um procedimento relativo ao modo de celebrar determinados contratos, cuja finalidade é a determinação da pessoa que ofereça à Administração condições mais vantajosas, após um convite a eventuais interessados que formulem propostas, as quais serão submetidas a uma seleção.

A aplicabilidade dos princípios informadores da licitação aos atos concretos praticados pela Administração independe da existência de disposição normativa expressa e acarreta diretamente a nulidade dos atos desconformes, ensejando, ainda, a responsabilidade de seus agentes.

Na prática das licitações o que se observa é que, muitas vezes (por má-fé ou ignorância), a regularidade do procedimento é questionada por interpretações literais ou burocráticas, no pior sentido desse termo. A isso se presta uma legislação detalhista, minuciosa e pretensiosamente completa.

A licitação é regulada pela Lei n.º 8.666/93, contudo, este já não é o único diploma legal a estabelecer “normas gerais de licitação e contratação”, em todas as suas modalidades, conforme determina o artigo 22, inciso XXVII, da Constituição Federal. Hoje existe um conjunto de leis federais que estabelecem outras normas gerais de licitação e contratação.

A lei não pode evitar a corrupção, mas a sociedade, esta sim, pode eliminá-la através da participação e da vigilância. Para que isso seja possível, a licitação deve revestir-se de um caráter de publicidade real, que torne possível sua verificação imediata e instantânea por qualquer pessoa, como aconteceria, por exemplo, em decorrência da obrigatoriedade do registro em Cartório de, pelo menos, o edital de licitação. A idéia que está por trás disso é a seguinte: a publicidade da licitação não é só do interesse dos participantes, mas sim da coletividade, dos cidadãos, dos contribuintes, que não podem ser privados do acesso ao edital. Atualmente, diante da limitadíssima publicidade, fica aberto o campo para o conluio, para a possibilidade de acordos deletérios para o erário.

Quanto à natureza jurídica da licitação, há severas divergências na doutrina. Destacamos a presença de três correntes: a) a que considera a licitação como um instituto do direito financeiro; b) outra a inclui no ramo do direito administrativo, contudo a considera mero ato-condição; c) a terceira corrente também a insere no direito administrativo, no entanto, classifica a licitação como um procedimento administrativo.

O entendimento segundo o qual a licitação estaria ligada ao direito financeiro tem poucos seguidores. Filia-se a ele Di Renzo, argumentando que a atividade contratual do Estado, incluída entre as atividades de gestão econômico-financeira, é regulada pelo ordenamento contábil, uma vez que leva a uma receita ou a uma despesa, incidindo sobre o patrimônio público. Portanto, integra o complexo de normas que regulam o regime da gestão financeira e patrimonial públicas. Os principais autores brasileiros (Carlos S. de Barros Júnior e Hely Lopes Meirelles) já sustentaram essa posição. Da mesma forma, as normas que disciplinavam a formação dos contratos da Administração já estiveram contidas no ordenamento contábil, especialmente, entre as normas reguladoras da despesa pública. Considerava-se que as disposições legais sobre licitações estavam integradas entre as normas gerais de direito financeiro.

Entretanto, tanto o antigo Código de Contabilidade da União quanto a legislação federal atualmente em vigor vão muito além da simples fixação de padrões de conduta, na verdade, estabelecem rotinas de serviço atém em seus mais minuciosos detalhes. Impossível, portanto, reconhecer-lhes o caráter de normas gerais. A disciplina jurídica da gestão patrimonial e financeira de natureza pública, que sintetiza o campo próprio do direito financeiro, é matéria que, teoricamente, também poderia ser considerada inerente ao direito administrativo, na medida em que este é gênero do qual aquele é espécie.

No direito positivo brasileiro há, atualmente, uma nítida separação entre o que é direito administrativo e o que é direito financeiro, dado que os assuntos inerentes a um e a outro recebem na Constituição Federal tratamentos totalmente distintos.

Analisando a licitação sob o prisma da competência constitucional para legislar sobre o assunto, Geraldo Ataliba concluiu pela impossibilidade de sua inclusão no campo do direito financeiro, cujo conteúdo abarca apenas a contabilidade pública, o orçamento, a fiscalização financeira, o crédito público, as receitas não tributárias do poder público, e nada mais.

Para saber se a licitação cabe no campo do direito administrativo é necessário perguntar: para que serve a licitação? Qual é seu objetivo? Resposta: a seleção de um possível contratante com o Poder Público. A licitação está para os contratos assim como o concurso está para as pessoas.

Licitação nunca foi matéria de direito financeiro. Essa controvérsia está sepultada de vez. Hoje, a Constituição Federal no artigo 24, inciso I dispõe que compete à União expedir normas gerais de direito financeiro. No artigo 22, inciso XVII, preceitua que compete à União expedir normas gerais de licitação. Isso evidencia que a licitação não pertence ao campo do direito financeiro. Se pertencesse, não precisaria haver uma norma específica, pois a licitação já estaria comportada naquela que dá competência à União para expedir normas gerais de direito financeiro. Licitação não é matéria de direito financeiro, é matéria típica, específica, de direito administrativo.

Repise-se que compete à União expedir normas gerais sobre licitações e contratações. No entanto, há que se reconhecer que não é norma geral aquela que corresponde a uma especificação, a um detalhamento. Norma geral é aquela que cuida da matéria de maneira ampla, que admite uma aplicação uniforme para todos os entes federados, que não é completa em si mesma, exige complementação. Também não são normas gerais: a) aquelas que objetivam uma ou algumas dentre as várias pessoas de direito público, participantes de determinadas relações jurídicas; b) aquelas que visem, particularmente, determinadas situações ou institutos jurídicos, com exclusão de outros da mesma condição ou espécie; c) as que se afastem dos aspectos fundamentais ou básicos, descendo a pormenores ou detalhes.

Normas gerais são declarações principiológicas que cabe à União editar, no uso de sua competência concorrente, limitada, restrita ao estabelecimento de diretrizes nacionais sobre certos assuntos. O Estados-Membros deverão respeitá-las na feitura de suas respectivas legislações, através de normas específicas e particularizantes, detalhando-as, de modo que possam ser aplicadas, direita e imediatamente, a relações e situações concretas a que se destinam em seus respectivos âmbitos políticos.

A Lei n.º 8.666/93 não contém apenas normas gerais, pois desce a minúcias e detalhamentos que não podem enquadrar-se em tal conceito. Ele pode e deve ser acatada, sem restrições, pelos órgãos e entidades da Administração Federal, mas não merece integral acolhimento por parte dos Estados e Municípios, que precisam apenas respeitar as normas gerais aí contidas, mas devem editar suas próprias leis sobre licitações e contratos, ajustadas às respectivas particularidades.

A doutrina entende que as normas gerais da Lei n.º 8.666/93, aplicáveis a todos os entes federados, são apenas os princípios elencados nos artigos 1º a 5º, e mais algumas outras disposições amplas e genéricas que comportam aplicação uniforme em todo o território nacional. Entre as normas gerais estão aquelas que definem as espécies de licitação, conforme expressamente consignado no artigo 22, inciso XVII da Constituição Federal.

Decididamente a licitação é pertence ao direito administrativo. Seu objeto, o resultado jurídico, não é uma alteração patrimonial ou financeira, mas pura e simplesmente a eleição de um contratante com a Administração. Trata-se, portanto, de algo precedente a um contrato. Ora, como fase preliminar a uma manifestação de vontade da Administração, ou, mais propriamente, como meio técnico-jurídico de formação da vontade do Poder Público, claro está que a licitação somente pode ser regida pelo direito administrativo. Resta definir qual a espécie o instituo no qual a licitação se enquadra.

Parte da doutrina (Cretella Jr. e Themístocles Cavalcanti, no exterior, Alcides Greca e Jèze), consideram a licitação como ato-condição. Sucede, porém, que esses consagrados administrativistas atribuem especial ênfase à decisão de adjudicação, que seria a própria licitação, figurando as fases antecedentes como simples atos preliminares da adjudicação. Tal ato-condição seria, nas palavras de José Cretella Júnior, “operação complexa, constituída de vários atos jurídicos, todos da mesma natureza jurídica de atos-condição”.

Não obstante os notáveis defensores da tese, o entendimento não dardeja no melhor sentido. Isso porque a licitação, como um todo, não se enquadra perfeitamente no conceito de ato-condição.

O ato jurídico quanto ao aspecto material, quanto ao objeto, quanto ao resultado jurídico, isto é, quanto à alteração que traz à ordem jurídica, pode ser classificado em três espécies: ato-regra (aquele que estabelece situações gerais e impessoais – ex. lei); ato subjetivo (aquele que estabelece situações jurídicas individuais – ex. contrato); ato-condição (atribui a uma determinada pessoa uma situação geral e impessoal).

O ato condição é um ato de atribuição. A alteração por ele trazida à ordem jurídica é colocar uma pessoa determinada dentro da esfera de abrangência de regras gerais que não a atingiriam se ele não fosse praticado.

Com a licitação ocorre exatamente o contrário. Ele não coloca o indivíduo em uma condição genérica, e sim atribui uma situação individual a alguém escolhido dentre um grupo de ofertantes. Ao iniciar-se a licitação termos uma categoria geral de licitantes, e após o seu término, como seu resultado foi jurídico, passamos a ter um determinado contratante com a Administração. É possível considerar ato-condição apenas uma parte da licitação, qual seja, a apresentação da respectiva proposta pelo licitante. A partir daí, uma pessoa determinada, por meio de ato individual, ingressa em uma situação geral, que é a condição de licitante.

A corrente com maior número de adeptos é a que considera a licitação como um procedimento administrativo. O conceito de licitação encaixa-se com precisão na definição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello para procedimento administrativo, pois exige sucessivas manifestações de vontade, cada uma delas proferida exatamente em cada uma das fases autônomas que antecedem o ato jurídico final que as ligam.

O procedimento da licitação tem duplo objeto: eleger um contratante e estabelecer um contrato. Além disso, dada a impossibilidade de separar-se completamente a forma e o conteúdo do contrato, tanto esse conteúdo quanto os efeitos do contrato adquirem características próprias, decorrentes dos trâmites especiais necessários à conjunção de vontades do particular e do Estado. Assim, o regime jurídico não pode ser o geral da contratação civil ou da legislação administrativa, mas o decorrente da própria licitação e a validade do contrato fica condicionada à validade da própria licitação.

Da licitação não surge necessariamente um contrato, pois falta ainda o acordo de vontades. O procedimento da licitação é uma das etapas do processo de formação da chamada vontade contratual da Administração. Por meio da licitação o Poder Público move um chamamento para o objeto e seleciona um particular contratante.

A natureza jurídica da licitação é a de um procedimento administrativo do qual há de nascer um acordo ou um contrato que vinculará o ofertante com a Administração. A licitação não se confunde com o vínculo que dela resulta, é uma etapa preliminar do acordo que tende a determinar a pessoal com a qual ele se celebrará. É um procedimento que tem por efeito determinar a proposta mais vantajosa, da qual surgirá o acordo ou contrato, ao finalizar-se o procedimento.

A licitação é um procedimento pré-contratual, destinado à formação da vontade administrativa contratual, mas que não se confunde com o contrato, que somente existe após um acordo de vontades feito por meio de um procedimento legalmente previsto.

A licitação é um procedimento administrativo relacionado à forma do ato jurídico e que consiste num pedido de ofertas, num chamamento impessoal, para que todos que se encontrem em situação legal de fazê-lo formulem ofertas para a contratação respectiva. Ao findar-se o procedimento da licitação, com a aceitação da oferta, estará formado o vínculo contratual.

Celso Antonio Bandeira de Mello ensina que a licitação, antes de ser procedimento preliminar à despesa, é procedimento preliminar de um contrato, do qual advirá a despesa. Para o autor, a licitação tem dois propósitos: proporcionar às entidades governamentais possibilidade de realizarem o negócio mais vantajoso – e assegurar aos administrados ensejo de disputarem a participação nos negócios que as pessoas governamentais entendem de realizar com os particulares. Seabra Fagundes considera a licitação um procedimento administrativo, dizendo ser ela uma série de atos ligados entre si, como antecedentes e conseqüentes, e tendo como um de seus objetivos limitar a discrição da autoridade que contrata. José Afonso da Silva afirma serem as licitações procedimentos administrativos, unilaterais, vinculados e preparatórios ou preliminares dos contratos de compra e venda, de serviços e obras de que participa a Administração Pública.

A licitação é verdadeiramente um procedimento administrativo que em por objeto a seleção de um contratante com a Administração Pública. Após a licitação pode surgir um vínculo entre a Administração e o particular. Todavia, esse vínculo tem um objeto diferente do eventual contrato de fornecimento ou prestação de serviço que possa vir a ser celebrado.

Fonte: Aspectos Jurídicos da Licitação. Adilson Abreu Dallari.

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