terça-feira, 31 de maio de 2011

Vícios do Negócio Jurídico: Fraudes Contra Credores

A fraude contra credores é um dos defeitos dos atos jurídicos, um dos chamados vícios sociais. É, portanto, princípio assente que o patrimônio do devedor constitui garantia comum de seus credores. Se estes dispensam garantias reais ou especiais para assegurar o adimplemento de seu crédito, o fazem pressupondo que o devedor aja dentro dos princípios da boa-fé.
Ao contrair a obrigação, contentam-se os credores com a existência do patrimônio do devedor como garantia suficiente. Assim, quando o devedor age com malícia, para depauperar seu patrimônio, há fraude, podendo dos credores insurgir-se contra os atos por meio da ação pauliana.
Na fraude contra credores, o preceito a ser protegido é a defesa dos credores, a igualdade entre eles e o patrimônio do devedor, enfim, a garantia dos créditos. Trata-se, pois, de aplicação do conceito mais amplo.
O objeto da ação pauliana é anular o ato tido como prejudicial ao credor. Melhor será falar em ineficácia do ato em relação aos credores do que propriamente em anulação, como defende com razão a doutrina mais moderna. Essa não é, porém, a diretriz do nosso Código Civil, embora os efeitos sejam típicos de ineficácia do ato ou do negócio. Na realidade, o que ocorre em concreto é um processo ou conduta fraudatória.
É fraude contra credores qualquer ato praticado pelo devedor já insolvente ou por esse ato levado à insolvência com prejuízo de seus credores.
São três os requisitos para a tipificação da fraude contra credores: a anterioridade do crédito, o consilium fraudis e o eventus damni.
A anterioridade do crédito, em face da prática fraudulenta está expressamente prevista no artigo 158, § 2º do Código Civil.
Quanto aos créditos condicionais, no que tange ao crédito sob condição resolutiva, não há dúvida que o ato fraudulento o atinge. Com relação aos créditos sob condição suspensiva, há divergências na doutrina, pois, sendo seu implemento futuro, resta saber como colocar o requisito da anterioridade do crédito. Há autores defensores da tese de que, mesmo no caso de suspensividade da condição, há direito eventual do credor; existe, portanto, anterioridade; já pode ser resguardada qualquer violação do direito, como é a fraude contra credores.
Outra hipótese trazida pela doutrina diz respeito à fraude que objetiva o futuro. O credor posterior conhecia ou devia conhecer os atos ditos fraudulentos; não pode, pois, impugná-los. Caso não conhecesse as manobras, o vício seria outro, dolo ou simulação; nesse caso, a ação pauliana seria imprópria.
Da mesma forma, o eventus damni necessita estar presente para ocorrer a fraude tratada. Sem o prejuízo, não existe legítimo interesse para propositura da ação pauliana.
Verifica-se o eventus damni sempre que o ato for a causa do dano, tendo determinado a insolvência ou a agravado. Protege-se o credor quirografário, bem como aquele cuja garantia se mostrar insuficiente.
O dano constitui elemento da fraude contra credores.
O terceiro requisito é elemento subjetivo, ou seja, o consilium fraudis. Em nosso direito, esse elemento subjetivo dispensa a intenção precípua de prejudicar, bastando para existência da fraude o conhecimento dos danos resultantes da prática do ato.
No que diz respeito aos casos de transmissão gratuita e de remissão de dívidas, nos termos do artigo 158 do Código Civil, a fraude constitui por si mesma, independentemente do conhecimento ou não do vício. Basta o estado de insolvência do devedor para que o ato seja tido como fraudulento, pouco importando que o devedor ou o terceiro conhecesse o estado de insolvência.
A insolvência deve ser notória ou deve haver motivo para ser conhecida do outro lado contratante.
A notoriedade e a ciência da insolvência pelo outro contratante dependem, exclusivamente, do caso concreto, podendo, no entanto, ser traçadas balizas para essa prova, mas nunca de forma inflexível.
Tal notoriedade de insolvência deve ser provada na ação pauliana, não se confundindo com os fatos notórios que eventualmente podem ser utilizados tanto nessa ação como em qualquer outra.
O conceito atual de fraude não implica em utilização de meios ilícitos. Pode o vício consistir em atos plenamente válidos, perfeitos e lícitos, mormente porque, sempre que desaparecer a insolvência, ainda que no curso da ação pauliana, desaparece o interesse para a demanda.
A intenção de prejudicar também não é requisito.
Quem compra o bem de agente insolvente, ou em vias de se tornar tal, deve prever que esse ato pode lesar credores. Não lhe é lícito ignorar que a lei proíbe a aquisição nessas circunstâncias, na proteção dos respectivos credores. Esse é o princípio legal.
Contudo, o erro de fato aproveita ao terceiro adquirente se provar que a insolvência não era notória e que não possuía motivos para conhecê-la. Mas a prova lhe compete. Quanto ao próprio devedor, a fraude, nessas circunstâncias, era presumida.
Os credores que movem a ação pauliana o fazem em seu nome, atacando ato fraudulento como direito seu.
Quanto à natureza da ação, a doutrina diverge. Dizem uns ser direito real, enquanto outros a entendem como direito pessoal. Essa última é a corrente majoritária. Sua finalidade é anular ato fraudulento, visando ao devedor alienante e ao adquirente, participantes da fraude. Na verdade, a real finalidade da ação é tornar o atou ou negócio ineficaz, proporcionando que o bem alienado retorne à massa patrimonial do devedor, beneficiando, em síntese, todos os credores. Se o ato houver sido gratuito, seu intento é evidentemente evitar o enriquecimento ilícito.
A natureza da ação é revocatória e tem por fim a recomposição do patrimônio. Assim, não pode a ação ser proposta contra atos que não levaram o devedor à insolvência nem contra aqueles atos praticados pelos quais o devedor deixou de ganhar algo.
De acordo com nosso estatuto civil, só os credores quirografários podem exercer a ação. O credor com garantia pode também ajuizar a ação se a garantia for insuficiente: nesse caso, ele será um credor quirografário no montante no qual a garantia não o protege. Incumbe a esse provar que a garantia não é suficiente para cobrir a integralidade do crédito. A ação deverá ser movida contra todos os participantes do ato em fraude.
O terceiro adquirente pode ser chamado à relação em diversas hipóteses, desde que se constate o conluio e sua má-fé. Esta existirá sempre que a insolvência for notória ou sempre que esse terceiro tiver motivos para conhecê-la.
Nos termos do artigo 165 do Código Civil, a anulação aproveita a todos os credores sem distinção, quirografários ou privilegiados. Ainda que não exista concurso de credores aberto, o resultado da ação beneficia a todos os credores.
A anulação só será acolhida até o montante do prejuízo dos credores.
Se o escopo dos atos revogados era apenas atribuir preferências a determinado credor, o efeito da ação importará tão só no desaparecimento de dita preferência, como diz o parágrafo único do artigo 165 do Código Civil.
O artigo 160 do Código Civil trata do meio que possui o adquirente de evitar a anulação do ato, mediante ação pauliana. São requisitos de acordo com esse dispositivo: que o adquirente não tenha pago o preço; que o preço do negócio seja aproximadamente o corrente; que seja feito depósito desse preço em Juízo, com citação de todos o interessados. O vigente Código suprime a citação por edital. Deverá ser obtida a citação pessoal dos interessados; a citação por edital será válida e necessária desde que obedecidos os princípios processuais para o caso concreto que a propicia.
O adquirente só ode valer-se desse meio se o preço contratado foi o justo, devendo consignar em Juízo e citar todos os interessados.
O meio processual é a ação de consignação em pagamento, na qual algum credor poderá contestar e alegar que o preço não é real, não é o valor corrente de mercado. O deslinde caberá à perícia que dirá se o preço é real ou não. Não deve ser negado, contudo, ao adquirente o direito de complementar o justo preço alcançado pela perícia, atingindo-se, então, a intenção da lei.
De acordo com o dispositivo ora em estudo, o adquirente que ainda não ultimou o pagamento pode optar por restituir o objeto comprado e desfazer o negócio ou depositar o preço. Essa opção é exclusivamente sua, não podendo os credores se insurgir contra a escolha, pois dela não lhes advirá prejuízo.
Pelo princípio do artigo 162 do Código Civil, o credor quirografário que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida fica obrigado a repor o que recebeu, em benefício do acervo. São requisitos para a ação pauliana, sob o fundamento do citado artigo: que a dívida não esteja vencida, que tenha sido paga por credor insolvente e que o pagamento seja feito a credor quirografário. Se a dívida for vencida, o pagamento subsistirá.
Na dação em pagamento pode surgir a fraude, mesmo no caso de dívida vencida. É o caso do bem dado em pagamento suplantar a dívida; evidentemente, haverá excesso em prejuízo dos credores. Esse excesso ou é doação ou negócio oneroso e, nesse caso, cabível a ação pauliana.
Também nesse dispositivo exige-se a ciência da insolvência por parte do credor que recebe antecipadamente. O princípio do artigo 159 do Código Civil é geral, aplicável a todos os negócios jurídicos onerosos.
O pagamento antecipado feito a credor privilegiado também pode ocasionar dano aos credores, quando o pagamento for em valor superior ao bem dado em garantia. Nesse caso, o que superar em valor do bem deve ser entendido como pagamento feito a credor quirografário e, portanto, anulável.
Cumpre anotar que, uma vez procedente a ação pauliana com fundamento no artigo 162 do Código Civil, deve o credor então beneficiado repor o que recebeu, não para o autor da ação, mas para o acervo de bens. Reside nesse aspecto, processualmente, uma das particularidades interessantes da ação pauliana, tanto que se defende que se trata de ineficácia do ato. Qualquer credor pode ingressar como assistente do autor.
O artigo 163 do Código Civil dispõe que “presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor”. A ação pauliana com fundamento nesse dispositivo tem por fim anular as garantias dadas. Aqui, a ação pode ser intentada ainda que o credor não conheça o estado de insolvência, pois se trata de presunção absoluta.
Uma vez que as garantias pessoais em nada afetam o patrimônio do devedor, o texto refere-se evidentemente às garantias reais. Não importa estar vencida ou não.
Por fim, o artigo 164 do Código Civil dispõe sobre atos não passíveis de ação pauliana: “presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial do devedor, ou à subsistência do devedor e de sua família”.
De acordo com o artigo 1.813 do Código Civil, podem os credores aceitar herança renunciada pelo devedor. Essa aceitação é feita com a autorização do Juiz, em nome do herdeiro, até o montante suficiente para cobrir o débito. O saldo eventualmente remanescente não ficará com o herdeiro renunciante, pois ocorreu sua renúncia, mas será devolvido ao monte, para a partilha entre os demais herdeiros.
Em face do princípio da saisine, o herdeiro que renuncia à herança abre mão do direito praticamente adquirido (trata-se de ficção legal), diminui seu patrimônio e prejudica, portanto, seus credores. Basta provar a insolvência, sendo desnecessária a intenção de fraudar.
O princípio da aceitação por parte dos credores é exclusivo da herança, não se aplicando às doações e aos legados sob o fundamento de que nesses casos o repúdio ao benefício pode ocorrer por motivos de ordem moral.
Pelo artigo 193 do Código Civil, qualquer interessado pode alegar prescrição. Desse modo, podem os credores apelar para a prescrição na hipótese de quedar-se inerte o devedor quando demandado, como também podem interromper a prescrição de acordo com o artigo 203. Ingressam os credores no processo por meio do instituto da assistência. A renúncia à prescrição deve receber tratamento análogo ao da herança.
Na fraude contra credores, o devedor adianta-se a qualquer providência judicial de seus credores para dissipar seus bens, surrupiá-los, remir dívidas, beneficiar certos credores etc. Nessa hipótese, o credor ainda não agiu em Juízo, pois a obrigação pode estar em curso, sem poder ser exigido seu cumprimento. O interesse na fraude contra credores é de âmbito privado. A insolvência do devedor é requisito fundamental para o instituto.
Na fraude de execução, o interesse é público, porque já existe demanda em curso; não é necessário, portanto, que tenha sido proferida a sentença. O interesse é público porque existe processo, daí por que vem a matéria disciplinada no estatuto processual.
Na fraude de execução, o elemento má-fé é indiferente, tendo do devedor como do adquirente a qualquer título, pois é presumido. Nessa hipótese, existe mera declaração de ineficácia dos atos fraudulentos. Não se trata de anulação, como na fraude contra credores; conforme já mencionado, a moderna doutrina tende a considerar esses negócios ineficazes.
Não sobra dúvida, no entanto, que ambos os institutos buscam a mesma finalidade, ou seja, proteger o credor contra os artifícios do devedor que procura subtrair seu patrimônio. Ocorre na fraude de execução um procedimento mais simplificado para o credor, que não necessita do remédio pauliano para atingir seus fins. O fato, porém, de o ato inquinado ser anulado na ação pauliana ou declarado ineficaz na fraude de execução não terá maior importância prática, desde que o credor seja satisfeito.
Tanto na fraude de execução, como na fraude contra credores, a alienação ou oneração, por si só, pode não configurar fraude, se o devedor possuir outros bens que suportem as dívidas. Nesse caso, não haverá dano.
Sustentada e provada a fraude no curso da ação, pode o credor pedir a penhora do bem fraudulentamente alienado, pois tal alienação para o direito público é ineficaz em relação a terceiros. Estes, é claro, terão ação regressiva contra o transmitente para se ressarcirem do que pagaram, emulada com perdas e danos, se presentes seus requisitos.
A jurisprudência majoritária entende que a fraude de execução pode ocorrer a partir da citação, quando se tem a ação por proposta e ajuizada.
Em que pese a ação revocatória na falência ter o mesmo objeto, esta não tem por finalidade anular o ato, mas simplesmente torná-lo ineficaz em relação à massa. Não se confunde, portanto, com a ação pauliana. A ação revocatória falencial existe tão só em razão da quebra.

Fonte: Direito Civil – Parte Geral. Sílvio de Salvo Venosa

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Considerações Gerais e Parametricidade

A Constituição prevê em seu artigo 102, § 1º, que a argüição de descumprimento de preceito fundamental dela decorrente será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, na forma da lei. Trata-se de única hipótese de competência originária do Supremo Tribunal Federal preceituada em norma constitucional de eficácia limitada. O instituto foi regulamentado pela Lei n.º 9882/99.
A indicação dos preceitos que se entende por fundamentais, cujo descumprimento autoriza a argüição, não consta do texto normativo, mas serão extraídos da própria Constituição por interpretação do Supremo Tribunal Federal, que é o seu guardião. Apesar de a Constituição estabelecer, em seus artigos 1º a 4º, os princípios fundamentais, que são mais amplos, abrangendo aqueles e todas as prescrições que dão o sentido básico do regime constitucional, como são, por exemplo, as que apontam dos direitos e garantias fundamentais.
A noção de preceito fundamental envolve a compreensão da Constituição como ordem de valores, que caracteriza o seu núcleo central. Abrange, portanto, as normas que traduzem os valores supremos da sociedade, sem os quais haverá inevitavelmente sua desagregação.
Podem ser identificados como princípios fundamentais:
- os princípios fundamentais do Título I da Constituição, que fixam as estruturas básicas de configuração política do Estado (arts. 1º ao 4º);
- os direitos e garantias fundamentais, que limitam a atuação dos poderes em favor da dignidade da pessoa humana (sejam declarados no catálogo expressado no Título II ou não), ante a abertura material proporcionada pelo § 2º do artigo 5º e, agora, pelo § 3º do mesmo artigo;
- os princípios constitucionais sensíveis, cuja inobservância pelos Estados autoriza a intervenção federal (art. 34, VII); e
- as cláusulas pétreas, que funcionam como limitações materiais ou substanciais ao poder de reforma constitucional, compreendendo as explícitas (art. 60, § 4º, incisos I a IV) e as implícitas (ou inerentes, que são aquelas limitações não previstas expressamente no texto constitucional, mas que, sem embargo, são inerentes ao sistema consagrado na Constituição, como, por exemplo, a vedação de modificar o próprio titular do Poder Constituinte Originário e do Poder Reformador, bem assim a impossibilidade de alterar o processo constitucional de emenda).
É o exame sistemático das disposições constitucionais integrantes do modelo constitucional que permitirá explicitar o conteúdo de determinado princípio. É o estudo da ordem constitucional no seu texto normativo e nas suas relações de interdependência que permite identificar as disposições essenciais para a preservação dos princípios basilares dos preceitos fundamentais em determinado sistema.
A lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio.
A despeito de a Constituição Federal não haver previsto a argüição de descumprimento de preceito fundamental de Constituição Estadual, não haveria impedimento a que o instituto fosse consagrado nas Constituições dos Estados-Membros para a defesa de seus preceitos fundamentais, em decorrência do princípio da simetria com o modelo federal. Nessa hipótese, cabe ao Tribunal de Justiça a competência para processar e julgar a ação especial.
São duas as espécies de argüição: 1) a denominada argüição autônoma, prevista no artigo 1º da Lei 9.882/99, que constitui processo objetivo, devendo ser utilizada quando as ações constitucionais não forem cabíveis ou se revelarem inidôneas para afastar ou impedir lesão a preceito fundamental, sem qualquer outro processo judicial anterior; 2) argüição incidental, de que trata o inciso I do artigo 4º da Lei n.º 9.882/99, paralela a um processo judicial já instaurado, e que surge em sua função. Representa ela um mecanismo destinado a provocar a apreciação do Supremo Tribunal Federal sobre controvérsia constitucional relevante que esteja sendo discutida no âmbito de qualquer Juízo ou Tribunal, quando inexistir ou meio idôneo para sanar a lesividade ao preceito fundamental.
Nesse caso, a decisão da controvérsia pelo Supremo Tribunal Federal, vinculará não apenas o julgamento do caso concreto que a ensejou, como também todos os outros em que a mesma questão esteja sendo discutida. Diferentemente da argüição autônoma, a argüição incidental somente poderá ter por objeto atos de cunho normativo, dela afastando os atos não normativos do Poder Público.
A argüição pode ser preventiva, quando objetiva evitar lesões a princípios direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, ou repressiva, quando visa reparar aquelas lesões causadas pela conduta comissiva ou omissiva de qualquer dos poderes públicos.
Os atos do Poder Público que podem ser objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental são aqueles emitidos pelo Estado ou executados por entidades privadas que atuam por delegação do Poder Público, como as controladas pelo Estado ou titularizadas exclusivamente por particulares, dando-se como exemplo as concessionárias e permissionárias de serviço público, ou os dirigentes de entidades privadas de ensino. É necessário, no entanto, que os atos que pratiquem não sejam apenas de gestão, mas que envolvam parcela de competência pública.
Os atos normativos emanados do Poder Público podem ser objeto da argüição. Assim, as emendas constitucionais, as leis complementares, as leis ordinárias e delegadas, as medidas provisórias, as resoluções e os decretos legislativos.
Compreendem também no âmbito dos atos normativos os atos infralegais ou secundários, como os decretos, os regulamentos de execução, as portarias, as instruções normativas, as resoluções, os despachos e pareceres normativos, os avisos, entre outros. A ADPF viabiliza, nesta seara, o controle da constitucionalidade dos atos infralegais, retirando-os do parâmetro da ilegalidade, para considerá-los como violadores da própria Constituição, desde que relativos aos seus preceitos fundamentais, como os princípios constitucionais da legalidade, a separação dos poderes e os direitos fundamentais.
Note-se, todavia, que não cabe a argüição, em se tratando de ato legislativo projetado, como as propostas de emenda à Constituição, ou os projetos de lei, uma vez que, pela dicção do artigo 1º da Lei n.º 9.882/99, malgrado sua redação aberta, a argüição incide sobre atos do Poder Público, não se permitindo a jurisdição constitucional sobre questões interna corporis do Legislativo.
A argüição constitui mecanismo para controle de atos não normativos do Poder Público, concretos ou individuais. Apesar de os atos administrativos de individualização de direito lograrem proteção por meio de ações subjetivas, como o mandado de segurança, a ação popular, a ação civil pública e o mandado de segurança coletivo, aqueles de repercussão geral como os editais de licitação, contratos administrativos, concursos públicos, decisões de Tribunais de Contas, desde que haja o descumprimento de preceito fundamental e seja relevante o fundamento da controvérsia constitucional, podem ser objeto da ADPF.
Os atos judiciais consubstanciados em decisões proferidas em situações concretas ou individuais não se sujeitam, por ausência de conteúdo normativo, ao controle concentrado de constitucionalidade. A impugnação desses atos se dá por meio de recursos próprio, o que afastaria o cabimento da argüição. Ultrapassado, no entanto, o óbice do artigo 4º, § 1º da Lei n.º 9.882/99, possível será a utilização da ação especial.
Cabível ainda a argüição quando há lesão a preceito fundamental decorrente de mera interpretação judicial do texto constitucional. Nesses casos, a controvérsia não tem por base legal a legitimidade ou não de uma lei ou ato normativo, mas se assenta na legitimidade ou não de uma interpretação constitucional.
Os atos municipais contestados em face da Constituição Federal não se sujeitam ao controle concentrado de constitucionalidade, que alcança as leis e atos normativos federais (art. 102, I, a da CF), sendo cabível quanto aqueles ao controle difuso incidental, que propicia o exame da matéria, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, por meio de recurso extraordinário.
O controle concentrado dos atos municipais é possível, desde que o contraste se faça em relação à Constituição do Estado-Membro, cabendo ao Tribunal de Justiça processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade.
A Lei n.º 9.882/99 incluiu, no entanto, a lei ou ato normativo municipal no âmbito da argüição de descumprimento de preceito fundamental, possibilitando que o Supremo Tribunal Federal, em jurisdição concentrada, examine a controvérsia constitucional, decidindo pela validade ou não da lei municipal em face da Constituição Federal, quando for relevante o fundamento.
Na argüição de descumprimento de preceito fundamental acham-se incluídos lei ou ato normativo anteriores à Constituição.
Em se tratando de controle abstrato de constitucionalidade, por meio de ação direta, o Supremo Tribunal Federal vem entendendo que a questão se resolve no âmbito do direito intemporal, sendo, pois, incabível o controle concentrado de constitucionalidade do direito pré-constitucional. Para o Supremo Tribunal Federal, o contraste da nova Constituição e o direito anterior se resolve no plano da vigência e não no da validade.
A argüição de descumprimento de preceito fundamental poderá ser proposta contra ato normativo revogado, tendo em vista o interesse jurídico quanto à legitimidade de sua aplicação no passado, o que não se admite no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade, por via de ação direta de inconstitucionalidade ou de ação declaratória de constitucionalidade: esta foi orientação do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 33.
O Supremo Tribunal Federal decidiu que deve ser admitida a argüição de descumprimento de preceito fundamental contra medida provisória rejeitada, a fim de que no julgamento da ação seja discutida a adequação da interpretação do § 11 do artigo 62 da Constituição.
Os atos omissivos do Poder Público sujeitam-se ao controle de constitucionalidade, por meio da ação de argüição de descumprimento de preceito fundamental.
Segundo o § 1º do artigo 4 da Lei n.º 9.882/99, a argüição não será admitida quando houver qualquer outro meio eficaz para sanar a lesividade. Verifica-se, portanto, que a argüição constitui um instrumento excepcional e extremo, supletivo e subsidiário, só podendo ser utilizado quando inexistir outro meio eficaz para sanar a lesividade, como a argüição de inconstitucionalidade, os recursos previstos na legislação processual, inclusive o extraordinário. Trata-se do princípio da subsidiariedade, que condiciona o ajuizamento dessa ação constitucional à ausência de qualquer outro meio processual apto a sanar, de modo eficaz, a situação de lesividade indicada pelo autor.
Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não se tem, na maioria dos casos julgados, admitido a argüição, se existente outro meio capaz de sanar a lesividade do ato impugnado, é dizer, o Supremo Tribunal Federal tem adotado o princípio da subsidiariedade, ao constatar a existência de outros remédios jurídicos, como o recurso extraordinário, a reclamação, a ação popular ou mandado de segurança, sem deixar de avaliá-los quanto à efetividade.
De uma perspectiva estritamente subjetiva, a ação só poderia ser proposta se já se tivesse verificado a exaustão de todos os meios eficazes para sanar a lesão no âmbito judicial. Uma leitura mais cuidadosa há de se revelar, porém, que na análise sobre a eficácia da proteção de preceito fundamental nesse processo deverá predominar um enfoque objetivo ou de proteção da ordem constitucional objetiva. Em outros termos, o princípio da subsidiariedade – inexistência de outro meio capaz de sanar a lesão – contido no § 1º do artigo 4º da Lei n.º 9.882/99, há de ser compreendido no contexto da ordem constitucional global. Nesse sentido, caso se considere o caráter enfaticamente objetivo do instituto (o que resulta, inclusive, da legitimação ativa) meio eficaz de sanar a lesão parecer ser aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata.
Nessa linha de pensamento, a ADPF, nada obstante o seu caráter subsidiário, pode ser considerada medida a ser utilizada com primazia, como se verifica com a ação direta de inconstitucionalidade e a ação declaratória de constitucionalidade. É que o princípio da subsidiariedade não caracteriza a ADPF como ação menor ou secundária. O que deve ser apurado é a relação do caráter objetivo dessa ação especial com a eficácia dos meios alternativo em solver a controvérsia.
Ainda em virtude do caráter subsidiário da ADPF, o Supremo Tribunal Federal admitiu a possibilidade de receber a argüição como ação direta de inconstitucionalidade, desde que, demonstrada a impossibilidade de se conhecer a ação como ADPF, em razão da existência de outro meio eficaz para impugnação da norma, qual seja, a ADI, porquanto o objeto do pedido principal é a declaração de inconstitucionalidade de preceito autônomo por ofensa a dispositivos constitucionais, restando observados os demais requisitos para propositura da ação direta.
Detêm legitimidade ativa para propositura da argüição os legitimados para ação direta de inconstitucionalidade mencionados no artigo 103 da Constituição e no artigo 2º da Lei n.º 9.882/99: o Presidente da República; a Mesa do Senado e da Câmara; a Mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; o Governador de Estado ou do Distrito Federal; o Procurador-Geral da República; o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; partido político com representação no Congresso Nacional; confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
A petição inicial deve conter a indicação do preceito que se considera violado. A indicação do ato questionado, a prova da violação do preceito fundamental e o pedido, com suas especificações.
A concessão de liminar é autorizada pelo artigo 5º, por decisão da maioria absoluta dos membros do Supremo Tribunal Federal, e caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, ou ainda em período de recesso, podendo o relator deferi-la ad referendum do Tribunal Pleno.
O relator poderá ouvir, antes de decidir sobre a medida liminar, os órgãos ou as autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias.
A liminar poderá consistir na determinação de que Juízes e Tribunais suspendam o andamento do processo ou os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que apresente relação com a matéria objeto da argüição, salvo se decorrente de coisa julgada.
Ao se aplicar na argüição de descumprimento de preceito fundamental o que estatuem os §§ 1º e 2º do artigo 11 da Lei n.º 9.868/99, para a ação direta de inconstitucionalidade, a eficácia da liminar, em regra, é ex nunc, salvo, excepcionalmente, quando o Tribunal entender que deva conceder-lhe eficácia retroativa. A liminar também produz efeitos repristinatórios, tornado aplicável a legislação anterior acaso existente, exceto com expressa manifestação do Tribunal em sentido contrário.
A decisão sobre a argüição será tomada se presentes na sessão pelo menos oito Ministros, silenciando a Lei acerca do quorum para deliberação, que parece dever ser o da maioria absoluta, nos moldes do artigo 23 da Lei n.º 9.868/99.
Julgada procedente a ação, deverá ser feita comunicação às autoridades ou órgãos responsáveis pela prática dos atos questionados, fixando-se as condições e o modo de interpretação e aplicação do preceito fundamental.
Relativamente aos efeitos subjetivos, a decisão tem eficácia erga omnes e efeito vinculante para os demais órgãos do Poder Público.
A questão da constitucionalidade, com fundamento relevante, ficará solucionada no âmbito da argüição.
Quanto aos efeitos objetivos, se a argüição tiver resultado de um ato normativo, serão eles análogos aos da declaração de inconstitucionalidade. Se se tratar de ato administrativo – disposição de edital de licitação ou de concurso público, por exemplo – , acaso acolhido o pedido deverá ela ser retirada do regime jurídico do certame, ou, se este já tiver ocorrido, poderá ser declarado nulo. No tocante à decisão judicial, se a simples afirmação da tese jurídica não produzir consequência apta a evitar ou reparar a lesão a preceito fundamental, uma decisão específica deverá ser proferida pelo Juiz natural (isto é, o órgão judicial competente para apreciar a questão concreta) levando em conta a premissa lógica estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal.
No que concerne aos efeitos temporais, a regra geral é a de que a decisão produz efeitos ex tunc. A Lei n.º 9.882/99 prevê, no entanto, e seu artigo 11, que, ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista as razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração e decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
É irrecorrível a decisão que julga procedente ou improcedente a argüição, não podendo ser objeto de ação rescisória, cabendo reclamação contra o seu descumprimento, na forma do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.


Fonte: Direito Constitucional. Kildare Gonçalves Carvalho.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Intervenção do Estado no Domínio Econômico e Social

A fisionomia do Direito Administrativo em cada país, seus contornos básicos, seus vetores e perspectivas são determinadas pelo Direito Constitucional nele vigente. Assim, pois, todos os institutos interessantes ao Direito Administrativo que dizem com a intervenção do Estado no domínio econômico e no domínio social haverão de consistir na aplicação concreta dos correspondentes comandos residentes na Constituição. Cumpre, portanto, verificar quais são as diretrizes que a Lei Maior impôs nessas matérias.
Diz o artigo 170, que abre o capítulo “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”:


“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I - soberania nacional;
II - propriedade privada;
III - função social da propriedade;
IV - livre concorrência;
V - defesa do consumidor;
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII - redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII - busca do pleno emprego;
IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”


De seu turno, o artigo 190, primeiro do título “Da Ordem Social”, estabelece: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”.
Ambos preceptivos, conquanto suficientemente claros e explícitos, devem ser tomados em conexão do com artigo 3º, no qual a Lei Magna faz uma explícita proclamação do projeto da República Federativa do Brasil – e, pois, de todo o Direito Público brasileiro. Deve-se referir, outrossim, que o artigo 5º, encartado entre os direitos e deveres individuais e coletivos, estabelece o inciso XXIII, que, “a propriedade atenderá a sua função social”.
À vista dos dispositivos citados, é claro a todas as luzes que a Constituição brasileira apresenta-se como uma estampada antítese do neoliberalismo, pois não entrega a satisfatória organização da vida econômica e social a uma suposta (e nunca demonstrada) eficiência do mercado. Pelo contrário, declara que o Estado brasileiro tem compromissos formalmente explicitados com os valores que nela se enunciam, obrigando a que a ordem econômica e social sejam realizadas de maneira a realizar os objetivos apontados
A Constituição estabeleceu uma grande divisão: de um lado, atividades que são da alçada dos particulares – as econômicas; e, de outro, atividades que são da alçada do Estado, logo, implicitamente qualificada como juridicamente não-econômicas – os serviços públicos. De par com elas, contemplou, ainda, atividades que podem ser da alçada de um e de outro.
O primeiro discrímen tem supina importância, pois é por via dele que, em termos práticos, se assegura a existência de um regime capitalista no país. Com efeito, ressalvados os monopólios já constitucionalmente designados (petróleo, gás, minérios e materiais nucleares), as atividades da alçada dos particulares – vale dizer, atividades econômicas – só podem ser desempenhadas pelo Estado em caráter absolutamente excepcional, isto é, em dois casos: quando isto for necessário por um imperativo da segurança nacional ou quando demandado por relevante interesse público, conforme definidos em lei (lei complementar).
Inversamente, as atividades previstas como da alçada do Estado – ou seja, os serviços públicos – só podem ser desempenhadas por particulares se o Estado os credenciar a prestá-las, por ato explícito, sem prejuízo de lhes preservar a titularidade.
Considerando-se panoramicamente a interferência do Estado na ordem econômica, percebe-se que esta pode ocorrer de três modos: a) ora dar-se-á através de seu poder de polícia, isto é, mediante lei e atos administrativos expedidos para executá-las, como agente normativo regulador da atividade econômica – caso em que exercerá as funções de fiscalização e em que o planejamento que conceber será meramente indicativo para o setor privado e determinante para o setor público (art. 174 da CF); b) ora ele próprio, em casos excepcionais, atuará empresarialmente, mediante pessoas que cria com tal objetivo; c) ora o fará mediante incentivos à iniciativa privada, estimulando-a com favores fiscais ou financiamentos, até mesmo a fundo perdido.
A título de planejar, o Estado não pode impor aos particulares nem mesmo o atendimento às diretrizes ou intenções pretendidas, mas apenas incentivar, atrair os particulares, mediante planejamento indicativo que se apresente como sedutor para condicionar a atuação da iniciativa privada.
O parágrafo único do artigo 176 da Constituição Federal não conferiu à lei o poder de excepcionar, a quem quer, seja o exercício livre – e em livre concorrência – de qualquer atividade econômica. O que foi permitido é que a lei excepcionasse o direito de exercê-la independentemente de algum ato de autorização de órgãos públicos.
O que a lei pode ressalvar é a desnecessidade de autorização para o exercício de certa atividade; nunca, porém, restringir a liberdade de empreendê-la, e na medida desejada. Evidentemente, não concerne aos aspectos econômicos, à livre decisão de atuar nos setores tais ou quais na amplitude acaso pretendida, mais ao ajuste do empreendimento a exigências atinentes à salubridade, a segurança, a higidez do meio ambiente, a qualidade mínima do produto em defesa do consumidor etc.
Os diversos bens jurídicos protegidos nas leis de polícia administrativa, para garantia da sociedade e dos consumidores, podem ser razão determinante da submissão do início da atividade econômica a uma autorização cuja expedição tomará em conta a consonância do empreendimento com o bem jurídico que a lei em questão haja se proposto a resguardar liminarmente.
Embora seja característico das limitações administrativas apenas impor deveres de abstenção, não se pretendendo por meio delas captar do particular atuações positivas, em nosso Direito Constitucional há uma exceção notável, e que se constitui em candente expressão do artigo 170, inciso III da Constituição Federal, onde se impõe o princípio da função social da propriedade. Esta, na conformidade com o artigo 5º, inciso XXIII, cumprirá sua função social, em cujo nome o proprietário é obrigado a prepor seu imóvel a uma função socialmente útil, seja em área urbana, seja em área rural.
Por força do princípio estatuído no artigo 170, inciso IV, relativo à livre concorrência e no inciso V do mesmo artigo, que impõe a defesa do consumidor, é dever do Estado repelir o uso incorreto do poder econômico, isto é, de modo gravo para os princípios da ordem econômica.
O CADE é o sujeito que na esfera administrativa tem a função de julgar as infrações à ordem econômica. É o seu Plenário que compete decidir sobre a existência de infração à ordem econômica e aplicar as penalidades previstas em lei. Cabe-lhe ordenar providências que conduzam à cessação de infração à ordem econômica, dentro do prazo que determinar; decidir os processos instaurados pela Secretaria de Direito Econômico – SDE do Ministério da Justiça; assim como decidir os recurso de ofício do Secretário da SDE e apreciar em grau de recurso as medidas preventivas adotadas pela SDE ou pelo conselheiro-relator.
A SDE – órgão do Ministério da Justiça – é legalmente encarregada de zelar pelo cumprimento da Lei n.º 8.884/94. Compete-lhe proceder a averiguações preliminares para instauração de processo administrativo, em face de indícios de infrações da ordem econômica, bem como, sendo o caso, instaurá-lo para a competente repressão. Se isto ocorrer, encaminhará o processo ao CADE para julgamento, oferecendo a cabível instrução. Mesmo se a SDE, ao cabo de suas apurações, considerar que o processo deve ser arquivado, terá que submeter a matéria ao CADE, recorrendo de ofício.
Constituem-se em infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: i) limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa; ii) dominar mercado relevante de bens ou serviços, ressalvando-se que como tal não se caracteriza a conquista de mercado decorrente de processo natural fundado na maior eficiência do agente econômico em relação a seus competidores; iii) aumentar arbitrariamente os lucros; iv) exercer de forma abusiva posição dominante.
Para o infrator da ordem econômica a lei prevê as seguintes sanções: i) no caso de empresa, multa de um a trinta por cento do faturamento bruto no seu último exercício, excluídos os impostos, a qual nunca poderá ser inferior à vantagem auferida, quando quantificável; ii) no caso de administrador, direta ou indiretamente responsável por empresa, multa de dez a cinqüenta por cento do valor daquela aplicável à empresa, de responsabilidade pessoal a exclusiva ao administrador; iii) no caso das demais pessoas físicas ou jurídicas de Direito Público ou Privado, bem como quaisquer associações de entidades ou pessoas com ou sem personalidade jurídica, que não exerçam atividade empresarial, não sendo possível utilizar-se do critério do valor do faturamento bruto, a multa será de seis mil a seis milhões de UFIRs ou padrão superveniente. Em caso de reincidência, as multas serão aplicadas em dobro.
Ante a gravidade dos fatos ou em vista do interesse público, podem ser ainda impostos ao infrator outras penalidades prescritas no artigo 24 da Lei n.º 8.884/94. Pela continuidade de atos ou situações que configurem infração da ordem econômica após decisão do Plenário do CADE determinando sua cessação, ou pelo descumprimento de medida preventiva ou compromisso de cessação previstos na lei, o resposável fica sujeito a multa diária de valor não inferior a cinco mil UFIRs ou padrão superveniente, podendo ser aumentada e até vinte vezes se assim recomendarem a situação econômica e a gravidade da infração.
A Lei nº 8.884/94 (artigo 35-B) prevê a possibilidade de a SDE, perante certas situações e requisitos ali enunciados, celebrar acordo de leniência com os autores de infração à ordem econômica, para suspensão da ação punitiva a que se sujeitarem ou redução de dois terços da penalidade que lhes seria aplicável, se colaborarem efetivamente com as investigações e com o processo administrativo e desta colaboração resultar a identificação dos demais co-autores e a obtenção de informações e documentos que a comprovem.
Durante o acordo fica suspensa a prescrição dos crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo, previstos na Lei n.º 8.137/90 e impedida a correlata denúncia criminal. A punibilidade deles ficará extinta com o cumprimento do acordo.
Quando o Estado interfere, suplementarmente, na exploração de atividade econômica, ao desenvolver atividades desta natureza, estar-se-á diante de serviços governamentais e não de serviços públicos. Neste caso, empresas públicas e sociedades de economia mista, que para tal fim sejam criadas, submeter-se-ão, basicamente, ao mesmo regime aplicável às empresas privadas.
Importante destacar que a atividade de fomente se exerce por meio de incentivos fiscais ou financiamento.
Os incentivos fiscais são exonerações totais ou parciais da obrigação de pagamento de determinados tributos durante um certo lapso de tempo, como contrapartida da realização de investimentos em determinada atividade e sob certas condições, que o Poder Público repute úteis para a coletividade, em consonância com os valores estabelecidos no artigo 170 da Constituição Federal.
As atividades monopolizadas não se confundem com serviços públicos. Constituem-se, também elas, em serviços governamentais, sujeitos, pois, às regras do Direito Privado. Correspondem, pura e simplesmente, a atividades econômicas subtraídas do âmbito da livre iniciativa. Portanto, as pessoas que o Estado quer criar para estas atividades não serão prestadores de serviço público.
Política pública é um conjunto de atos unificados por um fio condutor que os une ao objetivo comum de empreender ou prosseguir dado projeto governamental para o país. É inequívoco que se pode controlar juridicamente políticas públicas. Com efeito, se é possível controlar cada ato estatal, deve ser também possível controlar o todo e a movimentação rumo ao todo.
Questão relevante, no que concerne aos direitos exigíveis pelos administrados, é a que diz respeito à chamada “reserva do possível”, em face da qual o Estado ver-se-ia desobrigado, pois não teria como acudir todas as necessidades sociais.
As subvenções sociais são transferências de recursos destinadas a acobertar despesas de custeio (manutenção) efetuadas em prol de serviços essenciais de assistência social, médica e educacional prestados por entidades sem fins lucrativos.
Diferem dos auxílios e contribuições, porque estas duas modalidades concernem a transferência para despesas de capital – que têm por finalidade investimentos, obras, equipamentos, e instalações previstos genericamente na lei de orçamento. Entre si, elas se apartam em que os auxílios são previstos genericamente na lei de orçamento e é a Administração que os distribui, ao passo que as contribuições decorrem de lei especial que as atribui ao beneficiário.


Fonte: Curso de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello.

domingo, 22 de maio de 2011

Ação Penal III

Ação Penal Privada Subsidiária da Pública
Com o objetivo de tutelar o mais amplamente possível os interesses da vítima, seja em razão da repercussão patrimonial eventualmente decorrente da ação criminosa, seja ainda em sede da própria exigência da resposta penal ao ilícito contra ela praticado, prevê a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LIX, que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.
Pressuposto, então, do exercício de tal direito, é precisamente a desídia do Ministério Público, isto é, a ausência de manifestação tempestiva de ato de ofício, no prazo previsto em lei. Não a caracterizam, portanto, o só não-oferecimento da denúncia, no prazo legal, desde que tenha ele, tempestivamente, pugnado pela necessidade de novas diligências a serem realizadas pela autoridade policial ou tenha se manifestado pelo arquivamento dos autos.
Na hipótese de requerimento de arquivamento não se poderá intentar a ação subsidiária pela simples razão de que a ação não desloca para o ofendido a iniciativa supletiva do exercício da ação penal. E assim é porque, mesmo instaurada a ação subsidiária da pública e oferecida a queixa em substituição à denúncia, em razão da inércia do Ministério Público, poderá este, além de aditá-la, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva (artigo 29 do CPP).
É bem verdade, porém, que, uma vez provocada a jurisdição penal, com a ação privada subsidiária, não poderá o Ministério Público manifestar-se, desde logo, pela inexistência de crime ou pela insuficiência de provas da autoria e da materialidade. Mas isso se deve ao fato de se tratar de verdadeira e originária ação pública, em que deverá ser observada a regra da indisponibilidade, como consequência do princípio da obrigatoriedade. Ao ofendido, nesses casos, reserva-se apenas a iniciativa de propositura da ação.
E também por esta razão não se pode falar na possibilidade de perempção ou de perdão na ação privada subsidiária da pública, cabendo ao Ministério Público intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.
Enquanto não ocorrer a hipótese do artigo 29, in fine do Código de Processo Penal, isto é, enquanto o Ministério Público não retomar a condição de titular exclusivo da ação, o particular manterá a iniciativa para interposição de recurso contra decisões desfavoráveis aos interesses da acusação. É de se notar, ainda, que, nesse caso, nada impede também a interposição de recurso do Ministério Público, cuja delimitação temática não se encontra igualmente subordinada à atuação do particular.
E porque o Ministério Público não poderia, uma vez oferecida a queixa subsidiária, repudiá-la e requerer o arquivamento da ação penal?
Ocorre que a Constituição Federal instituiu, como garantia fundamental, o oferecimento da ação penal privada subsidiária, conforme disposto em seu artigo 5º. Com isso, o que ali se previu foi verdadeiro direito de ação – e ação constitucional – ao particular, como instrumento de controle da atuação estatal do Ministério Público. Não se trata de direito de provocação do parquet, para que este “acorde” e manifeste-se sobre a matéria. Não. Trata-se de direito de ação, isto é, direito de submeter o caso penal à jurisdição, a quem compete dizer de sua pertinência, viabilidade ou procedência.
Podem, então, instaurar a ação privada subsidiária da pública, uma vez constatada a inércia do Ministério Público, o ofendido, ou seu representante legal, em caso de menoridade e incapacidade e, na hipótese de sua morte ou ausência judicialmente reconhecida, as pessoas mencionadas no artigo 31 do Código de Processo Penal (cônjuge, ascendente, descendente ou irmão).
O prazo para ingresso em Juízo é contado a partir do esgotamento do prazo do Ministério Público – ou seja, como regra, 15 dias, estando o acusado solto, e cinco dias, no caso de ele se encontrar preso – devendo ser lembrado que há prazos distintos previstos em legislação especial.
Vencido o prazo para o Ministério Público, passa a correr, também, o prazo decadencial para a propositura da aludida iniciativa do particular – o prazo decadencial das ações privadas.
Há também previsão legal (artigo 80 da Lei n.º 8.078/90) de legitimação para as associações constituídas há mais de um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos do consumidor, bem como das entidades e órgãos da Administração, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos do consumidor, quando se tratar de crimes praticados contra o consumidor, desde que previstos no Código de Defesa do Consumidor.


Considerações acerca da ação penal comuns a todos os tipos
Segundo o disposto no artigo 41 do Código de Processo Penal, a denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol de testemunhas.
A exposição do fato criminoso atende à necessidade de se permitir, desde logo, o exercício da ampla defesa. Mas, de outro lado, a correta delimitação temática, ou imputação do fato, presta-se, também, a viabilizar a própria aplicação da lei penal, na medida em que permite ao órgão jurisdicional dar ao fato narrado na acusação a justa e adequada correspondência normativa.
Na hipótese de crimes praticados por mais de um agente, o membro do Ministério Público ou o querelante deverão atentar para a necessidade de se individualizar o máximo possível as ações atribuídas aos acusados, quando não for o caso de conduta realizada de modo uniforme para todos.
Quando não houver a correta delimitação da modalidade de contribuição para a prática do fato (autoria ou participação), ao Juiz outra solução não restará senão a absolvição do partícipe, bastando que se comprove não ter ele realizado atos de execução, mas, sim, e por exemplo, de direção da atividade criminosa.
É preciso distinguir o que vem a ser acusação genérica e acusação geral.
Quando o órgão da acusação imputa a todos, indistintamente, o mesmo fato delituoso, independentemente das funções exercidas por eles na empresa ou sociedade (e, assim, do poder de gerenciamento ou de decisão sobre a matéria), a hipótese não será nunca de inépcia da inicial, desde que seja certo e induvidoso o fato a eles atribuídos. A questão relativa à efetiva comprovação de eles terem agido da mesma maneira é, como logo se percebe, matéria de prova, e não pressuposto de desenvolvimento válido e regular do processo.
Quando se diz que todos os sócios da determinada sociedade, no exercício da gerência e administração, com poderes de mando e decisão, em data certa, teriam deixado de recolher, no prazo legal, contribuição ou pagamento efetuados a segurados, a terceiros (artigo 168-A do CP), está perfeitamente delimitado o objeto da questão penal, bem como a respectiva autoria. Não há, em tais situações, qualquer dificuldade para o exercício da defesa ou para a correta capitulação do fato imputado aos agentes. A hipótese não seria de acusação genérica, mas geral.
Questão diversa poderá ocorrer quando a acusação, depois de narrar a existência de vários fatos típicos, ou mesmo de várias condutas que contribuem ou estão abrangidas pelo núcleo de um único tipo penal, imputá-las, genericamente, a todos os integrantes da sociedade, sem que se possa saber, efetivamente, quem teria agido de tal ou qual maneira. Nesse caso, e porque na própria peça acusatória estaria declinada a existência de várias condutas diferentes na realização do crime (ou crimes), praticadas por vários agentes, sem especificação da correspondência concreta entre uma (conduta) e outro (agente), seria possível constatar a dificuldade tanto para o exercício da ampla defesa quanto para a individualização das penas. A hipótese seria de inépcia da inicial, por ausência de especificação da medida da autoria ou participação, por incerteza quanto à realização dos fatos.
O aditamento da peça acusatória pode ocorrer tanto para fins de inclusão de co-autores ou partícipes quanto para a inclusão de fatos novos.
No que se refere às ações penais públicas, nenhuma dificuldade, já que, enquanto não prescrito o crime, a denúncia poderá ser aditada, devendo apenas ser observada a questão relativa à conveniência procedimental do aditamento, já que este, seja para a inclusão de fatos novos (ação penal pública), seja de outros réus, poderá ensejar, via de regra, a reabertura de fase instrutória já em curso ou encerrada. Assim, embora perfeitamente possível o aditamento, é preciso que seja ele também oportuno e conveniente.
A mutatio libelli, prevista no artigo 384 do Código de Processo Penal implica em aditamento, que pode ser feito pelo Ministério Público, em ação penal pública, e decorrerá da apresentação de elementos ou circunstâncias não contidas na acusação e que modificam os fatos imputados ao acusado. A alteração não será unicamente da questão de direito (capitulação legal dos fatos), como ocorre na emendatio libelli (art. 383 do CPP), mas do próprio fato ou fatos, mantendo-se, porém, o núcleo essencial da conduta. Nessa modalidade, o aditamento (art. 384 do CPP), o próprio Código de Processo Penal já prevê as previdências a serem adotadas, não havendo necessidade de reinício da ação.
Prevalece, na doutrina e jurisprudência, a impossibilidade de o Ministério Público poder aditar a queixa para fins de nela incluir co-autor ou partícipe não apontado pelo querelante. Sustenta-se que faltaria a ele legitimidade ativa.
Eugênio Pacelli de Oliveira entende que é perfeitamente possível o aditamento da queixa pelo querelante, ainda que para a inclusão de co-autores ou partícipes cuja autoria e participação não tenha sido percebida ou constatada no oferecimento da queixa, isto é, desde que não tenha havido renúncia tácita.
O prazo decadencial para início da ação privada somente tem início na data em que o ofendido ou legitimado vem a saber quem é o autor do fato. Por isso, se a autoria somente é revelada na fase de ação já em curso, não haveria qualquer impedimento ao aditamento da queixa para a inclusão do co-autor ou partícipe, se no prazo.
No que se refere ao aditamento para inclusão de fatos novos, não há impedimento algum para tal, desde que se trate de fato cuja persecução deva ser feita por meio de ação privada e desde que não tenha operado, em relação a ele, a decadência do direito de ação.
É de se anotar que a queixa poderá ser aditada pelo Ministério Público, no prazo de 3 dias (artigo 46, § 2º do CPP), conforme prevê expressamente o artigo 45 do Código de Processo Penal, para fins de inclusão de dados não essenciais, mas importantes, para o julgamento da causa.
O que é expressamente vedado ao Ministério Público é o aditamento da queixa para inclusão de fatos novos, cuja persecução somente seja possível via ação privada. Aí, sim, faltaria a ele legitimação ativa.
Tratando-se de ação penal privada subsidiária da pública, o Ministério Público tem ampla margem para o aditamento, podendo incluir tanto fatos novos quanto novos autores e partícipes.
Não há vedação a que se instaure litisconsórcio ativo entre o Ministério Público e o querelante, devendo, porém, cada um oferecer a respectiva peça de acusação, isto é, manifestar a correspondente iniciativa penal. A formação do litisconsórcio poderá resultar também da aplicação das regras processuais relativas à conexão e à continência, conforme artigo 79 do Código de Processo Penal, em relação às ações penais já instauradas e em curso, ou mesmo, em tese, por meio do ingresso conjunto da acusação.
Em regra, o prazo para oferecimento da denúncia ou queixa é de 15 dias, estando solto o acusado, ou de 5 dias, quanto se tratar de réu preso (art. 46 do CPP). Atente-se, ainda, para o disposto no artigo 530 do Código de Processo Penal, que prevê o prazo de 8 dias para o oferecimento da denúncia, em caso de réu preso, nos crimes contra a propriedade imaterial, se houver prisão em flagrante e for pública a ação.
O prazo é de natureza processual, começa a correr da data em que o órgão de acusação recebe os autos do inquérito ou peças de informação devidamente concluídos, de 10 dias (Justiça Estadual); de 15 dias prorrogáveis (Justiça Federal). Tratando-se de réu solto, se, no prazo legal, entender o órgão do Ministério Público ser necessária a adoção de novas diligências, o novo prazo somente terá início na data em que os autos retornarem com as investigações concluídas.
Tratando-se de réu preso, o prazo para oferecimento da denúncia não poderá, em regra, ser prorrogado por meio de requerimentos de novas diligências, como ocorre quando se cuida de réu solto.
A superação de tal prazo somente poderá ocorrer em casos excepcionais, diante da especial gravidade do delito e da complexidade das investigações, sobretudo no que respeita à correta individualização da autoria e das respectivas condutas.
A Lei n.º 11.343/2006, prevê o prazo de 10 dias para o oferecimento da denúncia, estando preso ou solto o acusado (artigo 54, inciso III), nos crimes de tráfico de drogas.
Embora se saiba que o acusado defende-se dos fatos, e não da classificação que faz dele o órgão da acusação, o Código de Processo Penal inclui entre os requisitos da denúncia ou queixa a classificação do crime, isto é, a menção feita ao tipo penal em que o fato se enquadraria (art. 41 do CPP).
A exigência visa atender a duas ordens distintas de interesses. A primeira é relativa à afirmação inicial da competência jurisdicional. A segunda razão da exigência se localizaria no âmbito da ampla defesa, vedando, de um lado, acusações não lastreadas em convencimento explícito quanto ao direito a ser aplicado, na ausência da capitulação, e, de outro, permitindo ao acusado, desde logo, o conhecimento, o mais completo possível da pretensão punitiva contra ele instaurada (ainda que inadequada ou incorreta a capitulação).
Seja como for, o equívoco, e não a ausência, na capitulação ou tipificação, não é causa de inépcia da denúncia ou queixa, precisamente em razão de a lei prever a possibilidade de emendatio libelli, ou seja, a correção e adequação da classificação do crime a ser feita pelo Juiz da causa, no momento da sentença.
Nos termos do artigo 395 do Código de Processo Penal, a denúncia ou queixa será rejeitada quando for manifestamente inepta, faltar pressuposto processual ou condição para o exercício efetivo da ação penal, ou faltar justa causa para o exercício da ação penal.
Por inércia da peça acusatória, se deve entender justamente a não satisfação das exigências legais apontadas no artigo 41 do Código de Processo Penal. Inepta é a acusação que diminui o exercício da ampla defesa, seja pela insuficiência da descrição dos fatos, seja pela ausência de identificação precisa de seus autores. Equívocos na tipificação não inviabilizam a apreciação da causa penal, exatamente pelo fato de não turbarem o exercício da ampla defesa. O prejuízo, porém, haverá de ser aferido pelo exame cuidadoso de cada situação concreta, de modo a se poder apontar a deficiência ou até a impossibilidade da atuação defensiva, se e quando decorrente da fragilidade da peça acusatória. Tal ocorrerá, sobretudo, em relação à narração dos fatos imputados ao acusado.
Quanto à rejeição da denúncia por ilegitimidade de parte ou pela ausência de qualquer outra condição exigida pela lei (as chamadas condições de procedibilidade), impende ressaltar que, ainda que equivocadamente recebida a peça acusatória, poderá o Juiz posteriormente extinguir o processo sem julgamento do mérito, na forma do artigo 267, inciso IV do Código de Processo Civil, perfeitamente aplicável à espécie, por analogia.
Outra questão relevantíssima sobre o tema diz respeito ao chamado controle judicial do recebimento de denúncia. Embora a classificação dada ao fato na denúncia ou queixa não implique a vinculação do Juiz a ela, casos ocorrerão em que, da simples narrativa da imputação, poder-se-á perceber o erro na classificação, daí resultado alterações significativas no processo. Nos casos, por exemplo, em que é vedada a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, nada impede o Juiz de, provisoriamente, alterar a tipificação dada, para ampliar a tutela de direito fundamental (a liberdade).
No caso de rejeição da peça acusatória, tendo sido interposto recurso em sentido estrito (art. 581, I do CPP), deve-se intimar o réu para a apresentação de contrarrazões ao recurso, conforme jurisprudência sumulada pelo Supremo Tribunal Federal – Súmula n.º 707.
Em processo penal, a citação do réu é prevista para o recebimento da inicial (art. 396 do CPP). Assim, e como a intimação é o meio pelo qual ocorre conhecimento ao acusado acerca da existência e da prática de qualquer ato do processo (art. 370 do CPP), não há porque endereçar mais objeções à referida opção.
Nos termos do artigo 569 do Código de Processo Penal, as omissões da denúncia, queixa ou da representação poderão ser supridas a qualquer tempo, antes da sentença final.
Por omissões, devem-se entender aqueles dados não essenciais não constantes da denúncia ou queixa, passíveis apenas de esclarecimentos quanto à matéria de fato e de direito, e desde que não impliquem a modificação da imputação (mutatio libelli).
Em relação à ação pública condicionada à representação, relava notar que a jurisprudência dos Tribunais vem admitindo o aproveitamento da ação penal já instaurada, ainda que mediante representação oferecida por quem não tinha tal capacidade, desde que a ratificação dela seja feita por quem a tenha antes da decisão final.
No que tange aos reflexos das causas extintivas da punibilidade, registre-se o ato de poder o Juiz, em qualquer fase do processo, reconhecer presente a causa (art. 61 do CPP), podendo fazê-lo de ofício ou mediante provocação do Ministério Público, do querelante ou do réu. Nesta última hipótese (por iniciativa dos interessados), o procedimento será autuado em apartado, ouvindo-se a parte contrária e permitindo-se, se conveniente, a produção de provas no prazo de 5 dias, seguida de decisão em igual prazo.
Cuidando-se de hipótese de extinção de punibilidade pela morte do agente, somente à vista da certidão de óbito, e depois da oitiva do Ministério Público, é de que se poderá declarar extinta a punibilidade (art. 62 do CPP).
Os casos previstos para a extinção de punibilidade, que implicam a perda superveniente da pretensão punitiva, fundados em razão exclusivamente de política criminal, vê, em regra, arrolados no artigo 107 (prescrição, decadência, perempção, renúncia, perdão, morte do agente etc.) do Código Penal e também na legislação não codificada.
A partir da Lei n.º 11.719/2008 não mais haverá rejeição da denúncia em razão de causa extintiva da punibilidade. Em tais situações, e segundo o disposto no artigo 397, inciso IV do Código de Processo Penal, o Juiz deverá absolver sumariamente o acusado. A mudança atende à exigência técnicas do processo, dado que a extinção da punibilidade é, de fato, matéria relativa ao mérito da ação (autoria, materialidade, ser o fato criminoso e punível).
Indaga-se: será que o Ministério Público, ainda que convencido da extinção da punibilidade, dever apresentar denúncia, com o rol de testemunhas e tudo o mais, unicamente para delimitar em detalhes os fatos acobertados pela extinção de punibilidade? Deve o Juiz determinar a citação do réu para apresentação de defesa?
Ainda que se reconheça o mérito da medida, no ponto em que a apresentação da peça acusatória delimitaria com maior precisão os fatos objeto da extinção de punibilidade, não se pode deixar reconhecer, porém, que o procedimento pode se tornar excessivamente burocrático, com prejuízo a todos. Mais em relação à defesa que propriamente ao dever de apresentação de denúncia pelo Ministério Público.
Quando o Ministério Público entender já prescrito o fato, ou, de qualquer modo, extinta a punibilidade, deverá ele requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, sob tal fundamentação.
Quando houver o oferecimento da denúncia e, posteriormente, se reconhecer qualquer causa da extinção de punibilidade, a solução será aquela preconizada nos artigos 396 e 397 do Código de Processo Penal, com a citação, defesa e absolvição sumária.
Entendimento contrário obrigará o Ministério Público a oferecer denúncia também nas hipóteses de atipicidade manifesta, já que, pela nova sistemática processual, a decisão que a reconhece é igualmente a de absolvição sumária (art. 397, IV do CPP).


Fonte: Curso de Processo Penal. Eugênio Pacelli de Oliveira.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

A Preclusão no Processo Civil

A preclusão é definida como a perda de uma situação jurídica ativa processual: seja a perda do poder processual das partes, seja a perda de um poder do Juiz.
O processo é uma marcha para frente, uma sucessão de atos jurídicos ordenados e destinados a alcançar um fim, que é a prestação da tutela jurisdicional. Trata-se de um método de solução de conflitos, que se vale de um conjunto de regras que ordenam a participação e o papel dos sujeitos do processo. A esse conjunto de regras, dá-se o nome de formalismo processual.
A preclusão é instituto fundamental para o bom desenvolvimento do processo, sendo uma das principais técnicas para a estruturação do procedimento e, pois, para a delimitação das regras que compõem o formalismo processual. A preclusão apresenta-se, então, como um limitador do exercício abusivo dos poderes processuais das partes, bem como impede que questões já decididas pelo magistrado possam ser reexaminadas, evitando-se, como isso, o retrocesso e a insegurança jurídica.
Não há processo sem preclusão. É possível que o formalismo processual minimize a preclusão em certas situações, sem, porém, eliminá-la.
Com base na conhecida classificação proposta por Chiovenda, fala-se em três espécies de preclusão: temporal, consumativa e lógica.
A classificação é feita com base no fato gerador (fato jurídico) da preclusão (perda do prazo, ato incompatível com o exercício do poder). A preclusão, nesta classificação, é efeito jurídico que decorreria sempre da prática de atos lícitos ou em razão de um ato-fato lícito. Exatamente por causa disso, a doutrina costuma relacionar a preclusão aos ônus processuais e repelir a identificação do instituto com a sanção (conseqüência da prática do ato).
Sucede que é possível cogitar de preclusão decorrente da prática de um ato ilícito. Cabe ao legislador determinar a eficácia jurídica que pretende ver produzida a partir de um fato jurídico. Nada impede que o legislador atribua uma mesma eficácia a um ato lícito e a um ato ilícito: veja, por exemplo, o dever de indenizar, que tanto pode decorrer de um ato ilícito (artigo 186 do CC) como de um ato lícito (artigo 188, inciso II c/c artigo 929 do CC).
Assim, a preclusão é efeito jurídico que pode decorrer dos seguintes fatos jurídicos (em sentido amplo):
a) um ato-fato lícito caducificante: a inércia, pouco importa se culposa ou não, por um lapso temporal, que conduz à perda de uma faculdade/poder processual (preclusão temporal);
b) um ato jurídico em sentido estrito lícito de cunho impeditivo: de um lado, a adoção de um comportamento pela parte ou pelo Juiz impede, de imediato, a adoção de outro com ele incompatível, (perda dessa faculdade/poder processual por preclusão lógica); de outro, a consumação de uma faculdade/poder atribuído pela lei, obsta que esse mesmo poder volte a ser exercido (preclusão consumativa);
c) ato ilícito caducificante, um ato contrário ao direito, que conduz à perda de um poder/faculdade processual.
A preclusão temporal consiste na perda do poder processual em razão do não exercício no momento oportuno; a perda do prazo é inércia que implica preclusão (art. 183 do CPC).
Nossos doutrinadores têm certa dificuldade de visualizar preclusão temporal para o Juiz, como perda do poder processual por não tê-lo exercido no momento oportuno. Isso porque os prazos para o Juiz são impróprios e não-preclusivos.
A preclusão lógica consiste na perda de faculdade/poder processual por se ter praticado ato incompatível com seu exercício. Advém, assim, da prática de ato incompatível com exercício da faculdade/poder processual.
Também há preclusão lógica em relação ao magistrado. Dá-se, por exemplo, quando o Juiz concede uma tutela antecipada com base no abuso do direito de defesa, o que é incompatível com uma recusa em condenar o réu por litigância de má-fé com base no mesmo comportamento abusivo. Também não se permite que o magistrado, no julgamento antecipado da lide, conclua pela improcedência, sob o fundamento de que o autor não provou o alegado. Se o magistrado convoca os autos para julgamento antecipado, é porque entende provados os fatos alegados.
Importante que se perceba que a preclusão lógica está intimamente ligada à vedação ao venire contra factum proprium (regra que proíbe o comportamento contraditório), inerente à clausula geral de proteção da boa-fé. Considera-se ilícito o comportamento contraditório, por ofender os princípios da lealdade processual (princípio da confiança ou proteção) e da boa-fé objetiva.
A preclusão não é efeito do comportamento contraditório (ilícito); a preclusão incide sobre o comportamento contraditório, impedindo que ele produza qualquer efeito.
A preclusão consumativa consiste na perda de faculdade/poder processual, em razão de ter sido exercido, pouco importa se bem ou mal exercido. Já se praticou o ato processual pretendido, não sendo possível corrigi-lo, melhorá-lo ou repeti-lo. Observa-se quando já se consumou a faculdade/poder processual.
É possível que a preclusão decorra da prática de um ato ilícito. Neste caso, a preclusão terá natureza jurídica de sanção.
Há ilícitos que geram a perda de um poder ou direito (na verdade, perda de qualquer categorial eficacial ou situação jurídica ativa). São chamados de ilícitos caducificantes. Os atos ilícitos que não têm eficácia de dever indenizativo e importam em perda de direitos, pretensões, ações ou exceções são ditos caducifantes, espécie de fato precludente. Quer dizer: a sua eficácia consiste em que direitos, pretensões, ações ou exceções caiam.
Há alguns exemplos no direito positivo, em que se vislumbra a perda de um poder processual (preclusão), como sanção decorrente da prática de um ato ilícito: a) perda da situação jurídica de inventariante, em razão da ocorrência dos ilícitos apontados no artigo 995 do Código de Processo Civil; b) a confissão ficta, decorrente do não-comparecimento ao depoimento pessoal, que é considerado um dever da parte, implica preclusão do direito de provar fato confessado, mas, desta feita, como decorrência de um ilícito (descumprimento de um dever processual).
A partir deste panorama das diferentes espécies de preclusão, é fácil concluir que, de regra, se está diante de um efeito jurídico. Mas nem sempre é efeito a preclusão. Ela pode compor o suporte fático de algum fato jurídico.
Veja o caso da coisa julgada (efeito jurídico). A preclusão é elemento do suporte fático do fato jurídico composto consistente na prolação de decisão de mérito, fundada em congnição exauriente, acobertada pela coisa julgada formal (preclusão temporal máxima), cujo efeito é a formação da coisa julgada material.
A preclusão também pode compor o suporte fático de fato jurídico invalidante de ato processual: é o que ocorre com a interposição intempestiva de um recurso.
Questiona-se se a preclusão seria uma sanção.
A maior parte da doutrina, baseada em Chiovenda, entende que não. Entende-se que a preclusão está intimamente relacionada com o ônus, que, como se sabe, é situação jurídica consistente em um encargo do direito. A parte detentora do ônus deverá praticar o ato processual em seu próprio benefício, no prazo legal, e de forma correta: se não o fizer, possivelmente este comportamento poderá acarretar conseqüências danosas para ela. Nada teria a ver, porém, com a sanção.
A sanção decorre da prática dos atos ilícitos, já a preclusão é conseqüência da prática de determinados atos lícitos.
Cabe, ainda, diferenciar preclusão temporal, prescrição e decadência. Isso porque confusões podem ser feitas entre tais institutos pelo fatos de todos eles relacionarem-se à idéia de tempo e de inércia.
Caducidade é designação genérica para a perda de uma situação jurídica. A preclusão e a decadência são exemplos de caducidade.
A decadência é a perda do direito potestativo, em razão do seu não-exercício dentro do prazo legal ou convencional. Aproxima-se da prelcusão temporal por também se referir à perda de um direito decorrente da inércia do titular – ou seja, em razão de ato-fato caducificante. Distancia-se, contudo, por se referir, em regra, à perda de direitos pré-processuais, enquanto a preclusão temporal refere-se sempre à perda de faculdades/poderes processuais. Além disso, a preclusão pode decorrer, como visto, de outros fatos jurídicos, além da inércia, inclusive de um ato ilícito (a decadência sempre decorre de um ato-fato lícito).
Já a prescrição é o encobrimento (ou extinção, conforme artigo 189 do CC) da eficácia de determinada pretensão (perda do poder de efetivar do direito a uma prestação), por não ter sido exercitada no prazo legal. Apesar de decorrer de uma inércia do titular do direito – também ato-fato caducificante –, não conduz à perda de direitos, faculdades ou poderes (materiais ou processuais), como a preclusão e a decadência, mas sim, ao encobrimento de sua eficácia, à neutralização da pretensão – obstando que o credor obtenha a satisfação da prestação almejada.
Enquanto a prescrição relaciona-se, em princípio, aos direitos de uma prestação de cunho material, a preclusão temporal refere-se, tão-somente, a faculdades/poderes de cunho processual.
Demais disso, prescrição e decadência são institutos de direito substantivo, enquanto a preclusão é instituto de direito processual. A prescrição e a decadência ocorrem extraprocessualmente – malgrado sejam ambas reconhecidas, no mais das vezes, dentro de um processo –, e suas finalidades projetam-se, também fora do processo: visam à paz e à harmonia sociais, bem como à segurança das relações jurídicas. Já a preclusão temporal ocorre, sempre e necessariamente, no bojo do processo, e sua finalidade precípua restringe-se, igualmente, à esfera processual; visa, sobretudo, ao impulso do desenvolvimento, de forma segura e ordenada, para que chega ao seu ato final (prestação da jurisdição).
A doutrina e a jurisprudência têm por sinônimas as designações preclusão judicial ou preclusão pro judicato, que nada mais seriam do que a perda de um poder do Juiz.
A observância das preclusões simples, que ocorre ao longo do processo, funciona como uma forca motriz deste efeito, impulsionando-o obstinadamente rumo ao seu destino final (provimento jurisdicional). Chegado ao seu fim, tem-se a preclusão máxima – a irrecorribilidade da decisão final, chamada por alguns de coisa julgada formal – que, recaindo sobre provimento jurisdicional de mérito e fundado em cognição exauriente, projeta efeitos para fora do processo: forma-se a coisa julgada material.
A inobservância da preclusão pode conduzir a invalidades processuais.
Acaso a parte/Juiz, ao arrepio da preclusão, insista em exercer o poder processual perdido, praticando ato processual que não mais caberia praticar, este ato (extemporâneo, contraditório ou repetitivo) será defeituoso. E ato processual defeituoso, quando gera prejuízos para as partes ou para o interesse público deve ser invalidado.
Constata-se, assim, que a preclusão tem um cunho eminentemente preventivo/inibitório. Visa inibir a prática de ato ilícito processual invalidante: a) ao obstar que alguém adote conduta contraditória com aquela outra anteriormente adotada – o que denotaria sua deslealdade; b) ao impedir que reproduza o ato praticado; c) ao evitar a prática de atos intempestivos, inadmissíveis por lei. Mas, praticado o ilícito invalidante prejudicial às partes ou ao interesse público, inevitável é a imputação da sanção de invalidade.

Fonte: Curso de Direito Processual Civil. Fredie Didier Júnior.

domingo, 1 de maio de 2011

Suspensão do Processo Cível

A suspensão do processo não significa suspensão dos efeitos jurídicos do processo (efeitos da litispendência); não há suspensão do conteúdo da relação jurídica processual. Não obstante suspenso o processo, a coisa ou direito ainda é litigioso, permitindo a incidência do artigo 42 do Código de Processo Civil.
Suspensão do processo é, apenas, a suspensão do curso do procedimento, a paralisação da marcha processual, com o veto a que se pratiquem atos processuais.
É preciso perceber, ainda, que a suspensão do processo pode dizer respeito à prática apenas de alguns atos processuais.
A suspensão do processo depende de decisão judicial. Costuma-se dizer que essa decisão teria conteúdo declaratório, pois o processo “já estaria suspenso” desde a data de ocorrência do fato jurídico causador da suspensão, ressalvadas as hipóteses do inciso IV do artigo 265, em que a decisão seria constitutiva.
Fredie Didier Jr. entende que a decisão que suspende o processo é constitutiva, pois, paralisa a atividade processual, ainda que se dê a essa decisão, como corretamente se costuma a dar, uma eficácia retroativa até a data da ocorrência do fato jurídico que ensejou a suspensão.
A suspensão do processo é, ao lado da sua extinção sem resolução do mérito, manifestação daquilo que se convencionou chamar de crise do procedimento ou crise da instância, pois são situações em que o processo não atinge seu objetivo principal, que é a solução do seu objeto litigioso.
As primeiras hipóteses de suspensão do processo relacionam-se com as partes, seus representantes legais ou seus advogados.
O Código de Processo Civil menciona apenas representante da arte, não se compreendendo nessa rubrica o representante da pessoa jurídica litigante.
Suspende-se o processo quando houver morte ou perda da capacidade processual das partes, representante legal e do advogado (art. 265, I do CPC). Onde se lê morte das partes, deve-se ler, também, extinção de uma pessoa jurídica. A morte do autor dá ensejo à extinção do processo, se o direito objeto do litígio for intransmissível.
Verificada a morte ou a incapacidade processual da parte ou de seu representante legal, o magistrado suspenderá o processo, determinando o suprimento da capacidade processual ou a sucessão processual (habilitação dos herdeiros ou do espólio), desde que o fato tenha ocorrido antes do início da audiência (ou sessão do Tribunal). É que, na forma do artigo 265, § 1º do Código de Processo Civil, se a morte da parte ocorrer após o início da audiência de instrução e julgamento (ou sessão do Tribunal), o processo prosseguirá até a prolação da decisão final, sendo o advogado do falecido o seu substituto processual (passará a atual em nome próprio, defendendo interesse do conjunto de bens do falecido); publicada a decisão, o processo só então será suspenso. Se a incapacidade processual da parte ou do representante ou a morte do representante ocorrer logo após o início da audiência de instrução e julgamento, o advogado da parte continuará no processo, não na qualidade de substituto processual, como ocorre na hipótese de morte da parte, mas, sim, na de representante processual.
Constatada a morte do advogado, ainda que iniciada a audiência de instrução e julgamento, o Juiz marcará, a fim de que a parte constitua novo mandatário, o prazo de 20 dias, findo o qual extinguirá o processo sem julgamento do mérito, se o autor não nomear novo mandatário, ou mandará prosseguir o processo, à revelia do réu, tendo falecido o advogado deste (artigo 265, § 2º do CPC).
Falecido o réu antes da citação, não é o caso de suspensão do processo, cabe ao autor promover a citação do espólio ou sucessores.
É lícita a suspensão convencional do processo (artigo 265, II do CPC). De acordo com o § 3º do artigo 265, esta suspensão nunca poderá exceder seis meses; findo o prazo, o escrivão fará os autos conclusos ao Juiz, que ordenará o prosseguimento do processo. Se as partes não convencionaram expressamente o prazo, subentende-se que optaram pelo prazo máximo. Trata-se de negócio jurídico processual, que se submete à aprovação do magistrado para que possa produzir o seu efeito típico.
Não há necessidade de motivação para a suspensão convencional do processo, de modo que o magistrado não pode, em regra, recusá-la. Mas não é possível a suspensão convencional do processo com o objetivo de aumentar prazo dilatório (artigo 182 do CPC).
A oposição de exceção de incompetência relativa do Juízo e de impedimento ou suspeição do Juiz ou órgão colegiado é causa de suspensão do processo.
Em alguns casos pode haver conexão/continência entre causas pendentes sem que haja reunião de processos. Nessas situações, a melhor solução é determinar a suspensão do andamento de um dos processos.
O artigo 265, inciso IV, alínea “a” do Código de Processo Civil permite a suspensão do processo, quando a sentença de mérito “depender do julgamento de outra causa, ou da declaração da existência ou inexistência da relação jurídica, que constitua o objeto principal de outro processo pendente”.
A relação de dependência entre causas pendentes pode ocorrer de duas maneiras: a) uma causa é prejudicial da outra: a solução que se der a uma causa pode interferir na solução que se der a outra; b) uma causa é preliminar da outra: a solução que se der uma pode impedir o exame da outra.
Importa frisar é que a suspensão do processo deve ocorrer sempre que se verificar a relação de subordinação entre causas pendentes, pouco importa se essa relação é de prejudicialidade ou preliminaridade.
A suspensão do processo tem um pressuposto negativo quando ocorrer se não for possível a reunião de causas pendentes em um mesmo Juízo.
Suspende-se o processo se a sentença não puder ser proferida senão depois de verificado determinado fato, ou produzida certa prova, requisitada a outro Juízo (artigo 265, IV, “b”, CPC). Trata-se de suspensão em razão de questão preliminar ao exame de mérito: a questão prévia que condiciona o próprio exame da questão de mérito.
Antes da reforma de 2006, as cartas precatórias e rogatórias não suspenderiam o processo, salvo se requerida antes do despacho saneador. Após a Lei n.º 11.280/2006, não basta ter sido requerida a expedição da carta antes da decisão de saneamento. É preciso que o objeto da carta apresente-se como imprescindível ao correto deslinde do processo. Essa suspensão deve durar no máximo um ano.
A alínea “c” do inciso IV do artigo 265 do Código de Processo Civil dispõe que o processo será suspenso se a sentença “tiver por pressuposto o julgamento de questão de estado, requerido como declaração incidente”. Trata-se de prejudicial interna de declaração de estado, objeto de ação declaratória incidental, que, uma vez proposta, suspende o curso do procedimento principal, até a sua solução (seria o caso de suspensão parcial).
Admite-se a suspensão do processo em razão de força maior. Aplica-se, neste caso, a regra de que, determinada a suspensão, a eficácia dessa decisão retroage à data da ocorrência do evento, considerando-se suspenso o processo desde então.
Há outras hipóteses de suspensão do processo prevista do Código de Processo Civil e leis extravagantes: para regularizar a representação processual; em razão de nomeação à autoria; em razão de denunciação da lide e do chamamento ao processo; para verificação de fato delituoso; em razão do incidente de falsidade; efeito da sentença de atentado; na execução; na execução fiscal.
O artigo 21 da Lei n.º 9.868/99 permite que o relator determine aos Juízes e Tribunais que suspendem o julgamento dos processos que envolvam a aplicação da lei ou ato normativo objeto da ação até seu julgamento definitivo pelo Supremo Tribunal Federal. Uma vez deferida esta específica providência cautelar, ela conservará sua eficácia até o julgamento definitivo da questão pelo Supremo Tribunal Federal, desde que esse julgamento ocorra dentro de 180 dias, contados da publicação da decisão na imprensa oficial.
O artigo 266 do Código de Processo Civil prescreve ser proibida a prática de qualquer ato processual durante a suspensão do processo, ressalvando a possibilidade de o magistrado determinar a realização de atos urgentes, para evitar dano irreparável. Atos urgentes é designação genérica, que abrange as medidas cautelares e a tutela antecipada.
A prática de ato na pendência da suspensão do processo pode ser considerada conduta ilícita e, eventualmente, causar a invalidação ou a simples ineficácia momentânea do ato processual que se realizou.
Convém lembrar, porém, que só é permitido invalidar um ato processual se não for possível aproveitá-lo. Assim, mais comum e recomendável é retirar a eficácia do ato praticado durante o período de suspensão, mantendo-o, porém, incólume (sem invalidá-lo), reputando-o praticado “no exato momento em que findo o período de espera, economizando-se a atividade processual já despendida”.

Fonte: Curso de Direito Processual Civil. Fredie Didier Júnior.