terça-feira, 31 de maio de 2011

Vícios do Negócio Jurídico: Fraudes Contra Credores

A fraude contra credores é um dos defeitos dos atos jurídicos, um dos chamados vícios sociais. É, portanto, princípio assente que o patrimônio do devedor constitui garantia comum de seus credores. Se estes dispensam garantias reais ou especiais para assegurar o adimplemento de seu crédito, o fazem pressupondo que o devedor aja dentro dos princípios da boa-fé.
Ao contrair a obrigação, contentam-se os credores com a existência do patrimônio do devedor como garantia suficiente. Assim, quando o devedor age com malícia, para depauperar seu patrimônio, há fraude, podendo dos credores insurgir-se contra os atos por meio da ação pauliana.
Na fraude contra credores, o preceito a ser protegido é a defesa dos credores, a igualdade entre eles e o patrimônio do devedor, enfim, a garantia dos créditos. Trata-se, pois, de aplicação do conceito mais amplo.
O objeto da ação pauliana é anular o ato tido como prejudicial ao credor. Melhor será falar em ineficácia do ato em relação aos credores do que propriamente em anulação, como defende com razão a doutrina mais moderna. Essa não é, porém, a diretriz do nosso Código Civil, embora os efeitos sejam típicos de ineficácia do ato ou do negócio. Na realidade, o que ocorre em concreto é um processo ou conduta fraudatória.
É fraude contra credores qualquer ato praticado pelo devedor já insolvente ou por esse ato levado à insolvência com prejuízo de seus credores.
São três os requisitos para a tipificação da fraude contra credores: a anterioridade do crédito, o consilium fraudis e o eventus damni.
A anterioridade do crédito, em face da prática fraudulenta está expressamente prevista no artigo 158, § 2º do Código Civil.
Quanto aos créditos condicionais, no que tange ao crédito sob condição resolutiva, não há dúvida que o ato fraudulento o atinge. Com relação aos créditos sob condição suspensiva, há divergências na doutrina, pois, sendo seu implemento futuro, resta saber como colocar o requisito da anterioridade do crédito. Há autores defensores da tese de que, mesmo no caso de suspensividade da condição, há direito eventual do credor; existe, portanto, anterioridade; já pode ser resguardada qualquer violação do direito, como é a fraude contra credores.
Outra hipótese trazida pela doutrina diz respeito à fraude que objetiva o futuro. O credor posterior conhecia ou devia conhecer os atos ditos fraudulentos; não pode, pois, impugná-los. Caso não conhecesse as manobras, o vício seria outro, dolo ou simulação; nesse caso, a ação pauliana seria imprópria.
Da mesma forma, o eventus damni necessita estar presente para ocorrer a fraude tratada. Sem o prejuízo, não existe legítimo interesse para propositura da ação pauliana.
Verifica-se o eventus damni sempre que o ato for a causa do dano, tendo determinado a insolvência ou a agravado. Protege-se o credor quirografário, bem como aquele cuja garantia se mostrar insuficiente.
O dano constitui elemento da fraude contra credores.
O terceiro requisito é elemento subjetivo, ou seja, o consilium fraudis. Em nosso direito, esse elemento subjetivo dispensa a intenção precípua de prejudicar, bastando para existência da fraude o conhecimento dos danos resultantes da prática do ato.
No que diz respeito aos casos de transmissão gratuita e de remissão de dívidas, nos termos do artigo 158 do Código Civil, a fraude constitui por si mesma, independentemente do conhecimento ou não do vício. Basta o estado de insolvência do devedor para que o ato seja tido como fraudulento, pouco importando que o devedor ou o terceiro conhecesse o estado de insolvência.
A insolvência deve ser notória ou deve haver motivo para ser conhecida do outro lado contratante.
A notoriedade e a ciência da insolvência pelo outro contratante dependem, exclusivamente, do caso concreto, podendo, no entanto, ser traçadas balizas para essa prova, mas nunca de forma inflexível.
Tal notoriedade de insolvência deve ser provada na ação pauliana, não se confundindo com os fatos notórios que eventualmente podem ser utilizados tanto nessa ação como em qualquer outra.
O conceito atual de fraude não implica em utilização de meios ilícitos. Pode o vício consistir em atos plenamente válidos, perfeitos e lícitos, mormente porque, sempre que desaparecer a insolvência, ainda que no curso da ação pauliana, desaparece o interesse para a demanda.
A intenção de prejudicar também não é requisito.
Quem compra o bem de agente insolvente, ou em vias de se tornar tal, deve prever que esse ato pode lesar credores. Não lhe é lícito ignorar que a lei proíbe a aquisição nessas circunstâncias, na proteção dos respectivos credores. Esse é o princípio legal.
Contudo, o erro de fato aproveita ao terceiro adquirente se provar que a insolvência não era notória e que não possuía motivos para conhecê-la. Mas a prova lhe compete. Quanto ao próprio devedor, a fraude, nessas circunstâncias, era presumida.
Os credores que movem a ação pauliana o fazem em seu nome, atacando ato fraudulento como direito seu.
Quanto à natureza da ação, a doutrina diverge. Dizem uns ser direito real, enquanto outros a entendem como direito pessoal. Essa última é a corrente majoritária. Sua finalidade é anular ato fraudulento, visando ao devedor alienante e ao adquirente, participantes da fraude. Na verdade, a real finalidade da ação é tornar o atou ou negócio ineficaz, proporcionando que o bem alienado retorne à massa patrimonial do devedor, beneficiando, em síntese, todos os credores. Se o ato houver sido gratuito, seu intento é evidentemente evitar o enriquecimento ilícito.
A natureza da ação é revocatória e tem por fim a recomposição do patrimônio. Assim, não pode a ação ser proposta contra atos que não levaram o devedor à insolvência nem contra aqueles atos praticados pelos quais o devedor deixou de ganhar algo.
De acordo com nosso estatuto civil, só os credores quirografários podem exercer a ação. O credor com garantia pode também ajuizar a ação se a garantia for insuficiente: nesse caso, ele será um credor quirografário no montante no qual a garantia não o protege. Incumbe a esse provar que a garantia não é suficiente para cobrir a integralidade do crédito. A ação deverá ser movida contra todos os participantes do ato em fraude.
O terceiro adquirente pode ser chamado à relação em diversas hipóteses, desde que se constate o conluio e sua má-fé. Esta existirá sempre que a insolvência for notória ou sempre que esse terceiro tiver motivos para conhecê-la.
Nos termos do artigo 165 do Código Civil, a anulação aproveita a todos os credores sem distinção, quirografários ou privilegiados. Ainda que não exista concurso de credores aberto, o resultado da ação beneficia a todos os credores.
A anulação só será acolhida até o montante do prejuízo dos credores.
Se o escopo dos atos revogados era apenas atribuir preferências a determinado credor, o efeito da ação importará tão só no desaparecimento de dita preferência, como diz o parágrafo único do artigo 165 do Código Civil.
O artigo 160 do Código Civil trata do meio que possui o adquirente de evitar a anulação do ato, mediante ação pauliana. São requisitos de acordo com esse dispositivo: que o adquirente não tenha pago o preço; que o preço do negócio seja aproximadamente o corrente; que seja feito depósito desse preço em Juízo, com citação de todos o interessados. O vigente Código suprime a citação por edital. Deverá ser obtida a citação pessoal dos interessados; a citação por edital será válida e necessária desde que obedecidos os princípios processuais para o caso concreto que a propicia.
O adquirente só ode valer-se desse meio se o preço contratado foi o justo, devendo consignar em Juízo e citar todos os interessados.
O meio processual é a ação de consignação em pagamento, na qual algum credor poderá contestar e alegar que o preço não é real, não é o valor corrente de mercado. O deslinde caberá à perícia que dirá se o preço é real ou não. Não deve ser negado, contudo, ao adquirente o direito de complementar o justo preço alcançado pela perícia, atingindo-se, então, a intenção da lei.
De acordo com o dispositivo ora em estudo, o adquirente que ainda não ultimou o pagamento pode optar por restituir o objeto comprado e desfazer o negócio ou depositar o preço. Essa opção é exclusivamente sua, não podendo os credores se insurgir contra a escolha, pois dela não lhes advirá prejuízo.
Pelo princípio do artigo 162 do Código Civil, o credor quirografário que receber do devedor insolvente o pagamento da dívida ainda não vencida fica obrigado a repor o que recebeu, em benefício do acervo. São requisitos para a ação pauliana, sob o fundamento do citado artigo: que a dívida não esteja vencida, que tenha sido paga por credor insolvente e que o pagamento seja feito a credor quirografário. Se a dívida for vencida, o pagamento subsistirá.
Na dação em pagamento pode surgir a fraude, mesmo no caso de dívida vencida. É o caso do bem dado em pagamento suplantar a dívida; evidentemente, haverá excesso em prejuízo dos credores. Esse excesso ou é doação ou negócio oneroso e, nesse caso, cabível a ação pauliana.
Também nesse dispositivo exige-se a ciência da insolvência por parte do credor que recebe antecipadamente. O princípio do artigo 159 do Código Civil é geral, aplicável a todos os negócios jurídicos onerosos.
O pagamento antecipado feito a credor privilegiado também pode ocasionar dano aos credores, quando o pagamento for em valor superior ao bem dado em garantia. Nesse caso, o que superar em valor do bem deve ser entendido como pagamento feito a credor quirografário e, portanto, anulável.
Cumpre anotar que, uma vez procedente a ação pauliana com fundamento no artigo 162 do Código Civil, deve o credor então beneficiado repor o que recebeu, não para o autor da ação, mas para o acervo de bens. Reside nesse aspecto, processualmente, uma das particularidades interessantes da ação pauliana, tanto que se defende que se trata de ineficácia do ato. Qualquer credor pode ingressar como assistente do autor.
O artigo 163 do Código Civil dispõe que “presumem-se fraudatórias dos direitos dos outros credores as garantias de dívidas que o devedor insolvente tiver dado a algum credor”. A ação pauliana com fundamento nesse dispositivo tem por fim anular as garantias dadas. Aqui, a ação pode ser intentada ainda que o credor não conheça o estado de insolvência, pois se trata de presunção absoluta.
Uma vez que as garantias pessoais em nada afetam o patrimônio do devedor, o texto refere-se evidentemente às garantias reais. Não importa estar vencida ou não.
Por fim, o artigo 164 do Código Civil dispõe sobre atos não passíveis de ação pauliana: “presumem-se, porém, de boa-fé e valem os negócios ordinários indispensáveis à manutenção de estabelecimento mercantil, rural, ou industrial do devedor, ou à subsistência do devedor e de sua família”.
De acordo com o artigo 1.813 do Código Civil, podem os credores aceitar herança renunciada pelo devedor. Essa aceitação é feita com a autorização do Juiz, em nome do herdeiro, até o montante suficiente para cobrir o débito. O saldo eventualmente remanescente não ficará com o herdeiro renunciante, pois ocorreu sua renúncia, mas será devolvido ao monte, para a partilha entre os demais herdeiros.
Em face do princípio da saisine, o herdeiro que renuncia à herança abre mão do direito praticamente adquirido (trata-se de ficção legal), diminui seu patrimônio e prejudica, portanto, seus credores. Basta provar a insolvência, sendo desnecessária a intenção de fraudar.
O princípio da aceitação por parte dos credores é exclusivo da herança, não se aplicando às doações e aos legados sob o fundamento de que nesses casos o repúdio ao benefício pode ocorrer por motivos de ordem moral.
Pelo artigo 193 do Código Civil, qualquer interessado pode alegar prescrição. Desse modo, podem os credores apelar para a prescrição na hipótese de quedar-se inerte o devedor quando demandado, como também podem interromper a prescrição de acordo com o artigo 203. Ingressam os credores no processo por meio do instituto da assistência. A renúncia à prescrição deve receber tratamento análogo ao da herança.
Na fraude contra credores, o devedor adianta-se a qualquer providência judicial de seus credores para dissipar seus bens, surrupiá-los, remir dívidas, beneficiar certos credores etc. Nessa hipótese, o credor ainda não agiu em Juízo, pois a obrigação pode estar em curso, sem poder ser exigido seu cumprimento. O interesse na fraude contra credores é de âmbito privado. A insolvência do devedor é requisito fundamental para o instituto.
Na fraude de execução, o interesse é público, porque já existe demanda em curso; não é necessário, portanto, que tenha sido proferida a sentença. O interesse é público porque existe processo, daí por que vem a matéria disciplinada no estatuto processual.
Na fraude de execução, o elemento má-fé é indiferente, tendo do devedor como do adquirente a qualquer título, pois é presumido. Nessa hipótese, existe mera declaração de ineficácia dos atos fraudulentos. Não se trata de anulação, como na fraude contra credores; conforme já mencionado, a moderna doutrina tende a considerar esses negócios ineficazes.
Não sobra dúvida, no entanto, que ambos os institutos buscam a mesma finalidade, ou seja, proteger o credor contra os artifícios do devedor que procura subtrair seu patrimônio. Ocorre na fraude de execução um procedimento mais simplificado para o credor, que não necessita do remédio pauliano para atingir seus fins. O fato, porém, de o ato inquinado ser anulado na ação pauliana ou declarado ineficaz na fraude de execução não terá maior importância prática, desde que o credor seja satisfeito.
Tanto na fraude de execução, como na fraude contra credores, a alienação ou oneração, por si só, pode não configurar fraude, se o devedor possuir outros bens que suportem as dívidas. Nesse caso, não haverá dano.
Sustentada e provada a fraude no curso da ação, pode o credor pedir a penhora do bem fraudulentamente alienado, pois tal alienação para o direito público é ineficaz em relação a terceiros. Estes, é claro, terão ação regressiva contra o transmitente para se ressarcirem do que pagaram, emulada com perdas e danos, se presentes seus requisitos.
A jurisprudência majoritária entende que a fraude de execução pode ocorrer a partir da citação, quando se tem a ação por proposta e ajuizada.
Em que pese a ação revocatória na falência ter o mesmo objeto, esta não tem por finalidade anular o ato, mas simplesmente torná-lo ineficaz em relação à massa. Não se confunde, portanto, com a ação pauliana. A ação revocatória falencial existe tão só em razão da quebra.

Fonte: Direito Civil – Parte Geral. Sílvio de Salvo Venosa