segunda-feira, 29 de junho de 2009

"Entrar" com uma ação em Juízo - I

Quando ingressamos em Juízo, corriqueiramente dizemos que “entramos com uma ação”. Mas o que seria essa ação? Mais do que um calhamaço de documentos envoltos em uma capa com cores diferentes, a ação é o direito ao exercício da atividade jurisdicional ou o poder e exigi-lo exercício. Por meio do exercício da ação provoca-se a jurisdição, que por sua vez se exerce através de um complexo de atos que é o processo.

Várias teorias buscam uma definição para a ação.

Para a escola clássica ou imanentista a ação seria uma qualidade de todo direito ou o próprio direito reagindo a uma violação. Foi a teoria acolhida por Savigny. Desse conceito defluem-se três conseqüências: não há ação sem direito; não há direito sem ação; a ação segue a natureza do direito.

A teoria imanentista foi alvo de críticas e o ponto de partida para o questionamento da definição clássica, que culminou com a reelaboração do conceito de ação, foi a polêmica entre os romanistas Windscheid e Muther, qual, combatendo algumas idéias de Windscheid, distinguiu nitidamente direito lesado e ação. Para Muther da ação nascem dois direitos, ambos de natureza pública: o direito do ofendido à tutela jurídica do Estado e contra ele dirigido, bem como o direito do Estado à eliminação da lesão, exercido contra o ofensor. Ao final, Windscheid acabou por aceitar algumas idéias de Muther, admitindo o direito de agir, exercitável contra o Estado e o devedor.

Em razão das novas idéias capitaneadas por Windscheid e Muther, novos autores passaram a distinguir o direito de ação do direito subjetivo material a ser tutelado e reconhecendo, em princípio, seu caráter público subjetivo. Duas principais correntes buscaram a explicar a natureza jurídica do direito de ação: a teoria do direito concreto à tutela jurídica e a teoria do direito abstrato de agir.

A doutrina do direito concreto à tutela jurídica foi elaborada pelo alemão Wach. Para ela, a ação é um direito autônomo, não pressupondo necessariamente o direito subjetivo material violado ou ameaçado (v. g. as ações meramente declaratórias). O direito de ação dirige-se contra o Estado, haja vista exigir a proteção jurídica, mas também contra o adversário, do qual se exige a sujeição. Entretanto, como a existência da tutela jurisdicional só pode ser satisfeita através da proteção concreta, o direito de ação só existiria quando a sentença fosse favorável.

O célebre Chiovenda alinha-se à teoria concreta. Pela construção o ilustre doutrinador, a ação configura um direito autônomo, diverso do direito material que se pretende fazer valer em Juízo. Contudo, o direito de ação não é subjetivo – pois não corresponde a uma obrigação do Estado – e muito menos de natureza pública. Pela teoria de Chiovenda, a ação não deixa de ser um direito à obtenção de uma sentença favorável, pois configura o poder jurídico de dar vida à condição para atuação da vontade da lei. O direito de ação exaure-se com seu exercício tendente à produção de um efeito jurídico em favor de um sujeito e com ônus para o outro, o qual não deve e não pode fazer nada a fim de evitar tal efeito.

A teoria da ação como direito abstrato de agir foi criada na Alemanha pelo notável Degenkolb. Por essa concepção, o direito de ação independe da existência efetiva do direito material invocado: não deixa de haver ação quando uma sentença justa nega a pretensão do autor ou quando uma sentença injusta a acolhe sem que exista na realidade o direito subjetivo material. A demanda ajuizada pode ser até mesmo temerária, sendo suficiente, para caracterizar o direito de ação que o autor mencione um interesse seu protegido, em abstrato, pelo direito. É com referência a esse direito que o Estado fica obrigado a exercer a função jurisdicional, proferindo uma decisão. Sendo a ação dirigida contra o Estado, é este o sujeito passivo de tal direito. Para que se configure o direito de ação é suficiente que o indivíduo se refira a um interesse primário, juridicamente protegido.

Carnelutti filiou-se à teoria abstrata, no entanto, o Mestre configura a ação como direito abstrato e de natureza pública, mas dirigida contra o Juiz e não contra o Estado.

A maior parte dos processualistas modernos abraçou a doutrina da ação como direito abstrato, porém houve espaço para surgimento de teorias denominadas ecléticas. Pela concepção de Liebman, a ação seria um direito subjetivo instrumental, um poder correlato com a sujeição e instrumentalmente conexo a uma pretensão material. Afirma também que o direito de ação de natureza constitucional (emanação do status civitatis), em sua extrema abstração e generalidade, não pode ter nenhuma relevância para o processo, constituindo o simples fundamento ou pressuposto sobre o qual se baseia a ação em sentido processual. Liebman dá por exercida a função jurisdicional somente quando o Juiz pronuncia uma sentença sobre o mérito, seja ela favorável ou não.

Uma análise das teorias apresentadas não as isenta de críticas.

As idéias da concepção imanentista em relação à ação infundada e à ação declaratória não podem ser aceitas. Mesmo que o direito subjetivo do autor é declarado inexistente, fica claro que houve o exercício do direito de ação, em outras palavras, houve ação sem direito material. No que concerne à ação declaratória negativa, o pedido do autor não tem por fundamento um direito subjetivo, busca-se a declaração da inexistência de uma relação jurídica (inexistência de um direito material).

Não há como acolher a teoria da ação como direito concreto à tutela jurídica haja vista a existência de ações julgadas improcedentes, hipóteses que, para essa teoria, não seria possível explicar satisfatoriamente os atos processuais praticados até a sentença. A mesma situação ocorre quando uma decisão injusta acolhe a pretensão infundada do autor.

Outra idéia impossível de ser acolhida é a do Juiz como titular passivo da ação, porque ele é mero agente do Estado, desinteressado na lide. A ação não pode ser entendida como manifestação do direito de petição, pois este instituto é remédio constitucional que visa levar aos órgãos públicos representações contra abusos de poder.

A doutrina dominante conceitua a ação como um direito subjetivo. Aqueles que defendem ser ela um poder partem da premissa de serem o direito subjetivo e a obrigação situações jurídicas necessariamente opostas, presente um conflito de interesses; e, existindo um conflito de interesses entre o autor e o Estado, não se poderá falar em direito subjetivo, senão em poder. Os que sustentam ser a ação um direito subjetivo admitem que o Estado também tem interesse no exercício da função jurisdicional. Não aceitam que a configuração do conflito de interesses seja essencial à noção de obrigação e o obrigado pode ter interesse em cumpri-la e nem por isso ficará isento dela.

A ação caracteriza-se como uma situação jurídica de que desfruta o autor perante o Estado, seja ela um direito público subjetivo ou um poder. Nessa concepção, a ação é dirigida contra o Estado. Sendo um direito ou um poder de natureza pública, que tem por conteúdo o exercício da jurisdição, a ação tem inegável natureza constitucional (artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal). A garantia constitucional da ação tem por objeto o direito ao processo, assegurando às partes não somente a resposta do Estado, mas, ainda, o direito de sustentar suas razões, ao contraditório, enfim, ao devido processo legal. Trata-se de direito ao provimento jurisdicional, qualquer que seja a natureza deste, sendo ela, portanto, abstrata. É, também, um direito autônomo e instrumental, porque independe da existência de um direito subjetivo material com o fim de dar solução a uma pretensão de direito material. Assim, o direito de ação é conexo a uma situação jurídica concreta.

No campo penal, o jus puniedi do Estado permanece em abstrato enquanto a lei não é violada. Contudo, com a infração, caracteriza-se o descumprimento da obrigação preestabelecida na lei por parte do transgressor, o direito de punir sai do plano abstrato e se apresenta no concreto. Assim, da violação efetiva ou aparente da norma penal nasce a pretensão punitiva do Estado, que se opõe a pretensão do indigitado infrator à liberdade. A pretensão estatal somente poderá ser atendida por sentença judicial precedida de regular instrução processual, observando-se o devido processo legal.

O Estado não pode exercer seu direito de punir senão quando autorizado pelo órgão jurisdicional. Esse princípio é posto como limitação ao poder punitivo do Estado, bem como à vontade do infrator e da vítima. A proibição da autodefesa criou o direito de ação para os particulares (facultas exigendi), a proibição da autoexecutoriedade e do direito de punir fez nascer o direito de agir para o Estado. A ação penal não difere da civil quanto à sua natureza, mas somente quanto ao seu conteúdo: é direito público subjetivo a um provimento do órgão jurisdicional sobre a pretensão punitiva.

Embora abstrato e ainda que até certo ponto genérico, o direito de ação está submetido a condições para que se possa legitimamente exigir o provimento jurisdicional. A existência das condições da ação deve-se ao princípio da economia processual: quando se percebe, em tese, que a tutela jurisdicional requerida não será possível, ela deverá ser negada. São condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimação ad causam.

A possibilidade jurídica do pedido não demanda maiores questionamentos.

Sob o prisma do interesse de agir, de acordo com o caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada deve ser necessária (impossibilidade de se obter a satisfação por outros meios, sem a intervenieêcia do Estado) e adequada (o provimento deve ser apto a corrigir o mal de que o autor se queixa).

Em relação à legitimação ad causam, em princípio, é titular de ação apenas a própria pessoal que se diz titular do direito subjetivo material cuja tutela pede (legitimidade ativa), podendo ser demandado apenas aquele que seja titular da obrigação correspondente (legitimidade passiva).

Na falta de qualquer condição da ação, diz-se que o autor é carecedor de ação. A conseqüência disso é que o Juiz, embora exercendo o poder constitucional, não chegará a apreciar o mérito. É dever do Magistrado verificar, de ofício, o mais cedo possível a presença das condições da ação para evitar que o processo caminhe inutilmente.

Se a inexistência das condições da ação for verificada só ao final, diante da prova produzida (não há preclusão nesta matéria, podendo o Juiz rever sua manifestação anterior), duas posições podem ser adotadas: a primeira, de acordo com a teoria da apresentação, mesmo que venha a decisão final, ela será de carência de ação; para a teoria da prospectação, a sentença nesse caso será de mérito. A segundo teoria prevalece na doutrina brasileira, não obstante o pronunciamento contrário de Cândido Rangel Dinamarco.

São elementos da ação: partes, causa de pedir e pedido.

Quando o autor vem a Juízo, ele narra os fatos dos quais deduz ter o direito que alega, são os fatos constitutivos ou causa petendi.

O pedido é o provimento jurisdicional buscado pelo autor. Terá natureza congnitiva quando caracterizar o julgamento da pretensão deduzida em Juízo, tratando-se de uma sentença de mérito (meramente declaratória, constitutiva ou condenatória). Possuirá natureza executiva quando se tratar de medida através da qual o Juiz realiza, na prática, os resultados determinados pela vontade concreta do direito. Há também o provimento cautelar que visa resguardar eventual direito pelo decurso do tempo.

Registre-se que todo provimento jurisdicional refere-se a determinado objeto, um bem da vida. As ações distinguem-se entre si não só pela natureza do provimento que o autor pede, como também pelo objeto do seu alegado direito material. Variando um deles, já não se trata da mesma ação. Pela “teoria dos três eadem” (mesmas partes, mas causa de pedir ou título, mesmo pedido) permite-se aferir a conexidade de ações – para o Código de Processo Civil, deve-se ter a mesma causa de pedir ou do mesmo pedido; para a lei processual penal, ocorre quando se tratar de suas infrações ligadas entre si em termos de fato. Na ação penal o pedido é sempre genérico, pois o que se pleiteia é a imposição de uma pena, a ser individualizada pelo Magistrado.

A identificação das ações é de extrema utilidade em direito processual, seja para delimitar a extensão do julgamento a ser proferido, seja para caracterizar a coisa julgada ou a litispendência.

A ação não se resume a um processo físico, é um direito público subjetivo – ou um poder – dirigido ao Estado. O exercício do direito não depende de uma situação material concreta e está sujeito a determinadas condições para, enfim, a atividade jurisdicional ser efetivada.

Assim, ao “entramos com uma ação”, estamos exercendo um direito em face do Estado que nos foi conferido constitucionalmente, exigindo, quando presentes as condições, um provimento que pode ser de mérito, executivo ou cautelar. Contudo, se o autor tem direito a buscar em Juízo a tutela em razão de uma alegada violação ao seu direito, o réu tem direito a opor-se, atividade esta que é exercida por meio das exceções.

Fonte: Teoria Geral do Processo. Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

A gênese do crime – II (o papel da personalidade no delito)

Embora esteja comprovado que fatores externos, aliados ao funcionamento do próprio organismo do indivíduo, contribuem para a prática criminosa, nunca se conseguiu comprovar a existência, nos seres humanos, de instintos sociais ou associais genéticos ou inatos. Ao revés do que ocorre com um formigueiro ou uma colméia, o homem não possui especificação genética para organizar-se individualmente ou em grupo. Observamos que a hereditariedade conserva para a formiga tudo quanto tem de geração a geração, contudo, se considerarmos os seres humanos, tal raciocínio não se aplica, porquanto o homem não é capaz de conservar nenhuma partícula da civilização e somente consegue saber das coisas através do binômio ensino-aprendizagem. Se os instintos sociais fossem conservados entre os seres humanos, tal qual como nos insetos, haveria um engessamento da sociedade, impedindo seu desenvolvimento.

Após o nascimento e em contanto com o meio ambiente, o homem inicia um processo de aprendizagem no qual haverá o desenvolvimento de tendências que irão marcar seu comportamento, na sua grande maioria para o bem. Estas tendências primárias do ser humano poderão modificar-se conforme as experiências a que ele será submetido, pois o ambiente pode continuar a atuando sobre as pessoas para acelerar ou retardar uma tendência, bem como para desviar, por inteiro, uma pessoa de uma tendência inicial, seja ela voltada para a sociabilidade ou associabilidade.

Não é inato ao homem um instinto direcionado à prática delituosa, contudo, permanece a questão: por que o crime acontece? Para responder a esta indagação, a Teoria Psicológica do crime busca explicação na personalidade, considerando-a como aquilo que permite uma predição de como uma pessoa agirá ou que fará em determinada situação. A personalidade pode ser compreendida como o caráter ou a qualidade do que é pessoal, aquilo que determina a individualidade de uma pessoa, enfim, uma organização constituída por todos os seus caracteres cognitivos, afetivos, volitivos e físicos. O temperamento é o núcleo central da personalidade. Na prática da ação delituosa os caracteres afetivos ou emocionais (temperamento) e os caracteres volitivos (vontade) exercem papel preponderante.

Não subsiste a idéia do determinismo pessoal, fruto de uma constituição biológica, para a consecução do crime conforme defendeu Lombroso e nem a predisposição, que igualmente adviria da compleição física, algo que, de uma maneira mais amena, poderia impelir o indivíduo ao crime. A tendência ou disposição para o delito é o resultado da aprendizagem, sem conotação genética.

Quando existem estímulos externos, estes têm que ser analisados em consonância com as características da personalidade e, lavando-se ambos em consideração, podemos compreender e predizer o comportamento humano, inclusive a conduta criminosa, e a experiência subjetiva.

Fazer deduções sobre a estrutura da personalidade, embasados apenas em um aspecto do comportamento, pode ensejar erros. A organização da personalidade é complexa e só pode ser completamente conhecida por inúmeras manifestações comportamentais, mormente quando estamos no limiar do cometimento do crime, situação em que se degladiam poderosos conflitos e estados emocionais.

A manutenção de um mesmo padrão de comportamento é traço característico da personalidade, contudo, modificações substanciais são observadas durante a adolescência e princípio da idade adulta, principalmente na sociedade moderna, onde as pessoas são diariamente bombardeadas com inúmeras informações e, dia a dia, são apresentadas a situações novas.

A personalidade concreta de cada indivíduo constitui o resultado da íntima combinação de múltiplos e variados fatores de comportamento, dentre os quais figuram os seguintes: fatores biológicos; grau de desenvolvimento biológico; condições, componente e fatores adquiridos; condições e fatores psíquicos constitucionais; condições e fatores psíquicos adquiridos; componentes e fatores sociais e culturais. O desenvolvimento da personalidade se efetua em relação ao tempo e ao espaço, através da interação das pessoas aos ambientes físicos, psíquicos, morais e culturais, nos quais elas estão inseridas.

O delito é um ato, entretanto, a conduta delituosa é composta por uma série de atos, dependentes do caráter (expoente da personalidade) e de outras causas endógenas e exógenas que motivam a prática da ação. Diante disso, não é plausível julgar um crime sem compreendê-lo intrínseca e extrinsecamente. Para tanto, é necessário compreender as circunstâncias externas que antecederam a prática do delito, bem como perquirir acerca da existência e a intensidade de todos os fatores determinantes da relação pessoal que contribuíram para a concretização do crime.

No julgamento do delito devem ser mensurados e avaliados os fatores exógenos, além do conhecimento da personalidade do delinqüente (fator endógeno), para aferirem-se os motivos de sua reação. O delinqüente deve ser submetido a exame criminológico, constituído por um conjunto de pesquisas científicas de natureza biopsicossocial, cujo resultado revelará, sem disfarces, a verdadeira dimensão da personalidade do criminoso, descobrindo sua intimidade psíquica. Vale ressaltar que não é possível passar ao largo das fases intrapsíquicas da ação delituosa (gnosia, desejo, deliberação, decisão e execução).

A biologia criminal inspirou Lombroso e objetiva o estudo do criminoso no que diz respeito a seus caracteres físicos e psíquicos, suas paixões e sentimentos, ou seja, fatores orgânicos e biológicos individuais do delito, inclusive as possíveis anomalias psíquicas e físico-orgânicas apresentadas pelo criminoso. A biologia criminal e a psiquiatria prestam um valioso auxilio para explicar o comportamento infrator em alguns casos, contudo, estas teorias não têm o condão de estabelecer uma justificativa ou explicação cabal e definitiva, pois não possuem o caráter de verdade incontroversa. Nesse mesmo sentido, aspectos sociológicos também não se prestam a justificar a prática do crime.

O criminoso deve ser analisado sob todos os seus aspectos, sejam eles estruturais, funcionais, racionais, psiquiátricos e sociais. Por meio desta análise completa será possível visualizar suas personalidade, pois é da forma como ela reage aos estímulos internos e externos, no momento imediatamente anterior à ação delituosa, resulta ou não no crime.

Por que o crime acontece? Por decisão e anuência da personalidade. Na ocorrência do crime, seja qual for sua natureza, sempre e invariavelmente haverá um fator interno representado pela personalidade, cujo núcleo central é o temperamento, o qual, por sua vez, é responsável pela formação da tendência ou disposição determinante da forma de reação do indivíduo aos embates da vida. A personalidade e suas disposições é que conduzem à prática delitiva.

Ultrapassadas as fases de intenção e vontade e, existindo a tendência para se cometer crimes, antes que ocorra a decisão, o indivíduo passa pela fase da deliberação ou dúvida, na qual pode surgir o chamado mecanismo de resistência.

A personalidade sempre decide, em última instância, pela perpetração ou não do crime. Registre-se, por oportuno, que temos como referência a personalidade de um indivíduo sadio. Nos casos de pessoas com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, bem como de personalidade psicopáticas, alguns ingredientes ou componentes da personalidade podem estar comprometidos, uma ou mais fase intrapsíquica do crime estaria com seu funcionamento desvirtuado, o que modifica a avaliação da personalidade na consecução do ato criminoso. O Código Penal não esta alheio a esta situação, tanto que o § 1º do artigo 26 prevê a imposição de medida de segurança, a depender do resultado do exame criminológico que poderá dizer se a personalidade encontrava-se em estado morbífico.

O crime ocorre também em razão do somatório de fatores internos com circunstâncias exógenas, aquelas relacionadas ao meio circundante (pobreza, miséria, infância abandonada, desemprego, etc), condições capazes de influenciar na personalidade, funcionando como desencadeantes do crime. Para a prática do delito o interfluxo entre os fatores internos e externos não sofre resistências ou inibições.

Nesse contexto, surge a explicação, sob o prisma da criminologia, para o apenamento mais brando dos atos infracionais praticados por crianças e adolescentes, o quais obedecem ao mesmo esquema formulado para os adultos, contudo, diante da estrutura psíquica em formação, os mecanismos de contensão da atividade criminosa são mais frágeis. A pouca experiência de vida, o menor temor às responsabilidades e o grau de desenvolvimento da personalidade explicam a tênue resistência à prática delitiva.

A prática do crime tem como elementos desencadeantes os fatores internos somados aos externos, sendo certo que a essência está na personalidade, pois ela, efetivamente, decide pela prática ou não do crime, haja vista o delito ocorrer por decisão interna do criminoso. Dada a possibilidade de escolha que se atribui à personalidade diante do mecanismo contensor, jamais poderá se acatar a idéia de qualquer determinismo, seja ele biológico, psicológico ou sociológico na verificação da delituosidade.

A gênese do crime está na personalidade do indivíduo, entretanto, para a prática da ação delituosa é necessária a convergência de diversos fatores, alguns externos, relacionados ao meio no qual o indivíduo está inserido e outros internos, afetos ao organismo do agente. Miséria, pouco acesso à cultura e ócio, considerados isoladamente, não explicam o crime.

Em face disto, podemos afirmar que qualquer pessoa pode cometer um crime, basta que as circunstâncias propícias ao ato estejam presentes no momento e que não haja nenhum mecanismo de contenção. Por isso, não raro, um mesmo delito de sancionado de forma diversa, haja vista que o julgador deve analisar a ação delituosa por completo, não apenas o ato final praticado para, dessa forma, aplicar a pena com a severidade necessária.

Fonte: Criminologia Integrada. Newton Fernandes e Valter Fernandes.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

A gênese do crime - I

Quem nunca, em um momento de fúria ou mesmo de brincadeira pensou “eu seria capaz de matar fulano!!”? Sejamos sinceros, ter um pensamento como este não é nenhuma aberração. Seríamos mesmo capazes de cometer crimes? O que leva uma pessoa a infringir as normas de conduta? As respostas para estas questões são as mais variadas possíveis. O operador do Direito pode se valer da criminologia, uma ciência que estuda o fenômeno criminal, a vítima, as determinantes endógenas e exógenas que atuam sobre a pessoa e a conduta do delinquente.

O delito pode ser encarado sob vários enfoques; para o jurista é um fato típico, antijurídico e culpável; para o filósofo, crime é todo ato que não se ajusta aos padrões éticos; o psicólogo, no entanto, está mais preocupado com os motivos que levaram o indivíduo a cometer o crime do que estabelecer uma definição.

Descobrir a gênese do delito não é importante apenas para o psicólogo, imiscuir-se neste território é essencial para o Magistrado, pois, de posse destes conhecimentos, uma conduta aparentemente idêntica praticada por pessoas diferentes, pode resultar em um julgamento distinto.
Deve o Magistrado examinar os fatos que antecederam o delito, uma vez que delitos podem ser iguais em sua aparência e circunstâncias, mas, via de regra, possuem antecedentes inteiramente distintos. Analisar o que aconteceu antes da prática do delito é o trabalho psicológico do aplicador do Direito ao caso concreto.

E quanto a pena? Ao mesmo tempo em que o pensamento moderno não acolhe a tese da pena como mero castigo ou fruto da vingança, é temerário sancionar o criminoso em razão dos motivos que o levaram a infringir a lei, haja vista que eles raramente são conhecidos. Compreender e explicar o delito equivale a descortinar a conduta pessoal perante a situação delituosa. É curial que o jurista, ao julgar um ato criminoso, examine o sujeito levando em consideração: constituição corporal; temperamento; inteligência; caráter; experiência anterior; situação externa desencadeante; atitude e modo de percepção do homem médio em face da situação. No caso concreto, cada um destes fatores pode apresentar-se de modo diverso, influindo positiva ou negativamente, na decisão do Juiz, somando-se ou contrapondo-se, para formar o denominado “complexos determinantes de ações delituosas”.

Uma transgressão legal nunca é totalmente impulsiva, nem completamente premeditada, pois ambas atitudes passam pelas mesmas fases, que vão desde a simples “gnosia” (vaga sugestão ou intuição do fim possível) a sua realização ativa.

As fases da ação delituosa podem ser consolidadas da seguinte forma: interlecção ou “gnosia”; desejo ou tendência; deliberação (ou dúvida, se houver conflito de motivos); intenção (propósito ou delito potencial); decisão; execução ou realização.

A primeira fase é aquela que nos referimos no início, ou seja, é o vago pensamento (que bom seria se...; e se não fizesse....). Nas etapas posteriores, os delitos começam a ganhar corpo, porquanto o mero substrato gnóstico se converte em tentação que se avoluma até se tornar um desejo. Neste ponto o agente começa a gostar da idéia. Passa-se à terceira fase, a qual não se apresenta nos delinqüentes ou criminosos habituas, pois neste momento surge a dúvida e o indivíduo oscila entre o desejo e o temor, entrando na deliberação do conflito. Neste estágio, se não houver um freio, a intenção delituógena começa a condensar-se e, incontinenti, adentraremos à quarta fase. O indivíduo se torna um criminoso potencial, o que era um propósito transforma-se na idéia “vou fazer!”. Por último, temos a decisão, momento em que a ação é executada. A passagem do propósito à decisão é de vital interesse, pois, uma vez identificadas estas fases, o julgador pode verificar se houve ou não desistência voluntária.

Ao falarmos do abandono da ação delitiva no limiar de sua prática, um observador mais apressado logo diria que a execução do delito seria mera questão de oportunidade, pois o agente já estaria em uma fase “pré-crime”. Este pensamento pode ser acolhido nos crimes omissivos, contudo, nos denominados delitos comissivos, a questão não dever ser vista de maneira tão simplista. O dito popular enuncia: “do dizer ao fazer há uma grande distância”.

Quando a prática do delito ainda está no íntimo do indivíduo, a decisão por executá-lo não demanda maiores dificuldades, contudo, no momento em que é necessário exteriorizar este pensamento, expô-lo a todas hostilidades dos mundo, por menos previdente que seja o intelecto da pessoa, ela ao menos considerará os perigos que a ameaçam, sejam as possíveis falhas na execução ou a forma de fugir das responsabilidades advindas do ato. Em face destas questões que afligem o indivíduo na ocasião da prática de um delito, muitos criminosos em potencial não chegam a perpetrar seus crimes.

Outro motivo que pode levar o agente a parar na fase pré-positiva é que, ao surgir a oportunidade de converter seu propósito em realidade, todo conjunto das tendências contrárias que estavam reprimidas (porém não suprimidas) se reativa.

Desta feita, os delitos serão tanto mais considerados quanto maior for a violência e obcecação demonstradas nas últimas fases do processo delituógeno, pois evidencia-se a impossibilidade de mantê-lo reprimido pela censura ética do indivíduo.

Em face desta visão do crime, o direito penal perdeu o caráter exclusivamente repressivo, intimidativo e retributivo e passou a exercer ação educativa e preventiva, pois a Justiça passou a ser um problema social, cuja solução exige do Magistrado a individualização da pena e preocupação com a reeducação e reinserção social do criminoso. O Juiz deixa de ser um técnico, mero aplicador da letra fria da lei, para se tornar o árbitro entre os direitos do indivíduo e da sociedade. O adágio nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege já não pode mais ser visto de modo absoluto, pois este dogma tornava o Magistrado um autômato, postura que não pode ser aceita face da impossibilidade de tratar igualmente os desiguais.

A individualização da pena deve basear-se na valorização profunda da personalidade e do perfil psicológico completo do delinquente, como critério essencial para que o Juiz possa tratar a situação de forma justa. Merece consignar que nos Estados Unidos, a pre-sentence investigation é um dado fundamental e indispensável como preliminar para a Corte, tendo como finalidade analisar e enfocar o caráter e a personalidade do acusado, avaliação que auxilia a Justiça Penal a decidir sobre o caso, bem como em relação à concessão de benefícios que atendam aos interesses dos indivíduos e da coletividade.

Se é certo que a personalidade do indivíduo deve ser estudada para subsidiar o Magistrado no julgamento da causa, até que ponto fatores corporais, tais como secreções endócrinas, atuam sobre as funções psíquicas, as emoções e os sentimentos. As glândulas endócrinas lançam diretamente seus produtos no sangue, influenciando o estado emocional das pessoas, podem produzir modificações de condutas normais ou patológicas e, por conseqüência, ensejar psicoses e influenciar no cometimento de crimes.

Certas glândulas segregam hormônios que afetam o funcionamento de outras e excitam o sistema nervoso. As glândulas sexuais têm papel ativo na determinação do equilíbrio psíquico; a insuficiência ovariana priva a mulher da graça feminina, da ternura e da abnegação; os eunucos se mostram excessivamente pobres de espírito, tímidos, invejosos, fanáticos e excessivamente místicos. Surtos de hipertireoidia são notados em mulheres jovens após desilusões amorosas, cenas de ciúmes e, inclusive após a gestação, tudo acompanhado de disfunção ovariana. A hipertireoidia também é conhecida como Síndrome de Graves-Basedow e as perturbações mentais mais registradas são: hiperemotividade, instabilidade e irritabilidade. Desvios endócrinos com repercussão nas glândulas sexuais e parassexuais dão lugar a perversões da libido, surgindo um estado de debilitação geral, com torpor intelectual e depressão.

Notamos uma relação entre as secreções internas e o sistema nervoso em geral, que pode ser alterado por elas. Estudos endócrinos relacionados com as modificações que o funcionamento das glândulas internas podem produzir no plano das emoções e do sentimento são utilizados para a explicação de certos crimes passionais. A chamada Endrocrinologia Criminal, além de suas análises referentes ao criminoso considerado doente mental, deve pesquisar e investigar outros tipos de infratores para definir se uma hiper-secreção das glândulas internas podem influenciar ou não no cometimento do ato delituoso.

A prática do ato criminoso exige duas condicionantes: de um lado as condições solicitadoras (desencadeantes) e de outro, a condição de personalidade do agente (predispondo e resistindo). Os fatores individuais e sociais se juntam e passam por uma triagem psíquica, que conduzirá ou não à prática do ato. A personalidade global, em dado momento, será impelida a cometer a ação ou, diversamente, freará os impulsos e impedirá que ela aconteça e o produto final deste entrechoque de forças redundará ou não na configuração do delito.

A personalidade do indivíduo é estruturada desde a infância por fatores constitucionais e evolutivos, uns são biológicos, outros psicológicos e alguns sociais. Por constituírem a base da estruturação da personalidade são chamados de fatores primários. Por outro lado, em determinado momento, ocorre um chamamento que leva alguém a agir e tais fatores atuarão sobre uma estrutura já pronta, razão pela qual são chamados de secundários, sendo eles os responsáveis pelo desencadeamento da ação.

Uma pessoa de boa formação moral e bons princípios poderá ter seu equilíbrio rompido e praticar um crime, por reação. Malgrado seja típica no aspecto jurídico, na esfera psicológica ela é atípica, trata-se de crime eventual, pois o agente tem personalidade normal. Em outros casos o indivíduo detém personalidade mórbida e o ato chega a ser sintoma de perturbação, trata-se de delinqüência sintomática. Há casos ainda em que existem desvios ou defeito de personalidade e o ato delituoso chega a ser uma expressão do caráter: é o que ocorre com as personalidades sintomáticas.

Verifica-se, portanto, que, além de fatores externos, o funcionamento do próprio organismo do indivíduo atua de forma tenaz nas ações, as quais podem resultar na pratica de atos delituosos, não se podendo olvidar que a personalidade do agente está umbilicalmente ligada à prática do crime. A teoria psicológica do crime busca explicar o papel da personalidade no delito, contudo, este é assunto para o próximo post.

Fonte: Criminologia Integrada. Newton Fernandes e Valter Fernandes.

sábado, 20 de junho de 2009

Aspectos jurídicos da falência – a sombra dos tempos de crise II

Continuando o post anterior....

A administração da falência é feita por três agentes; o Magistrado, o representante do Ministério Público e os órgãos da falência. O Juiz, em última análise, é o administrador da falência, haja vista que compete a ele superintender as ações do administrador judicial, cabendo-lhe, entre outros atos, autorizar a venda antecipada de bens, pagamentos, aprovar prestação de contas. O representante do Ministério Público intervém no feito no exercício de suas funções constitucionais. Os órgãos da falência são três: administrador judicial, assembléia de credores e comitê de credores.

O administrador judicial é agente auxiliar do Juiz, servidor público para fins penais, que em nome próprio (portanto, com responsabilidade) deve cumprir as funções impostas por lei e também representar a comunhão de interesses dos credores. O munus é indelegável, contudo, o administrador judicial, mediante autorização do Juiz, pode contratar profissionais para auxiliá-lo. As formas para o administrador judicial deixar suas funções são a substituição e destituição (pressupõe que as obrigações não foram cumpridas a contento e acarreta a impossibilidade para nova nomeação pelo prazo de cinco anos). Dentre as responsabilidades do administrador judicial destacam-se quatro: verificação dos créditos; relatório inicial; prestação mensal de contas; relatório final (informar o valor do ativo e do produto da realização, bem como do passivo e dos pagamentos feitos e, se não foram totalmente extintas as obrigações do falido, o saldo cabível a cada credor, especificando justificadamente as responsabilidades do falido que perduram). O administrador judicial deve prestar contas em três hipóteses: ordinariamente, a cada mês e ao término da liquidação e, extraordinariamente, quando deixa suas funções por destituição ou substituição.

A assembléia de credores é o órgão da falência composto por todos os credores da massa falida e que tem competência para: aprovar a constituição do comitê de credores e eleger os seus membros; adotar modalidades extraordinárias de realização do ativo do falido; deliberar sobre assuntos de interesse geral dos credores.

O comitê de credores é composto por um representante (cada qual com dois suplentes) dos credores trabalhistas, um dos titulares de direitos reais de garantia e privilégios especiais e um dos quirografários. Os representantes são eleitos pela assembléia e sua função mais importante é fiscalizar as atividades do administrador judicial.

A administração da falência pode ser resumida no seguinte esquema:


Após a prolação da sentença de falência, inicia-se a execução coletiva, ou seja, o processo de falência propriamente dito, cuja essência, visa a apuração do ativo e do passivo do devedor empresário.

A verificação de créditos é tarefa do administrador judicial e, se os credores divergirem da relação apresentada, cabe ao Juiz dirimir a questão. Após a publicação da relação de credores (no caso da autofalência é dever de o devedor apresentar, sob pena de desobediência e no prazo de cinco dias seguintes à falência, a lista dos credores com a indicação dos respectivos créditos e a classificação de cada um). A relação de credores é publicada no órgão oficial, se possível, concomitante à sentença que decreta a falência, tendo os credores o prazo de quinze dias para conferi-la. Aqueles que não foram relacionados pelo administrador judicial, devem promover a competente habilitação de crédito, exceto o credor fiscal e os titulares de créditos remanescentes da recuperação judicial que tinham sido definitivamente incluídos no quadro geral de credores já elaborado. O administrador judicial analisa as habilitações apresentadas, podendo rejeitar aquelas que julgar impertinente, republicando o quadro de credores.

No dez dias seguintes os credores e os demais sujeitos da falência (com exceção do Magistrado, é claro) podem apresentar impugnação à nova relação de credores. As impugnações são autuadas em apartado é podem ser reunidas em função da identidade de objeto. Os impugnados têm cinco dias para contestação, após, deverá ser promovida a intimação do falido e do comitê de credores (se existente) para, no prazo comum de cinco dias, manifestarem-se. Vencido o prazo, os autos são submetidos ao administrador judicial para exarar parecer em cinco dias. Depois da instrução do feito, os autos são conclusos ao Juiz para decidir se a relação republicada está correta ou se tem razão o impugnante. Quanto às demais, segue-se o procedimento comum ordinário para decisão. A sentença proferida na impugnação é atacável por agravo de instrumento.

A liquidação do processo falimentar inicia-se com sua instauração. Possui dois objetivos: a realização do ativo e o pagamento do passivo. A venda dos bens arrecadados pode ser feita englobada ou separadamente, por propostas ou pregão, segundo a conveniência da massa. É da competência do Juiz decidir entre as alternativas aquela que melhor atende ao interesse dos credores. Ressalte-se que a intimação do representante do Ministério Público é essencial para a regularidade do feito. No processo de falência é irrelevante a distinção feita pela lei civil entre a praça e o leilão, pois, neste caso, a venda dos bens móveis ou imóveis sempre se dará por hasta pública, na modalidade leilão. Se for escolhida a venda por propostas, deverá haver publicação na imprensa oficial e em jornal de grande circulação, intimando os interessados para apresentarem suas propostas ao escrivão em envelopes lacrados, os quais abertos pelo Magistrado em dia e hora previamente designados. 

O pregão consiste na combinação das modalidades anteriores. Se as proposta a diferença entre as proposta for de até 10% (dez por cento), os proponentes serão intimados entre eles para proferirem lances orais. 

A realização do ativo por forma diversa daquelas preceituadas em lei depende de autorização judicial ou a concorrência da vontade de, pelo menos, 2/3 do passivo admitido em assembléia geral convocada para esse fim. Nesta última hipótese, será indispensável a homologação pelo Juiz (apenas analisa-se o aspecto da legalidade, não se adentra no mérito da deliberação).

Nas sociedades com sócios de responsabilidade ilimitada, os bens destes serão arrecadados junto com os bens sociais, contudo, em face do princípio da subsidiariedade, somente ocorrerá venda se a alienação dos bens da sociedade não quitar os débitos. Se o acionista ou sócio da sociedade limitada não houver integralizado, totalmente, o seu capital social, caberá ao administrador ajuizar, independentemente da prova da insuficiência dos bens sociais, ação para integralização. Também neste caso os bens dos acionistas ou dos sócios serão vendidos após os da sociedade.

A realização do ativo envolve a cobrança dos créditos do falido, podendo, o administrador judicial, mediante autorização do Magistrado e após a oitiva do comitê de credores, oferecer abatimento para aquelas dívidas cujo recebimento seja considerado difícil. Nesse ponto, verifica-se que a LF buscou a satisfação, ainda que parcial, dos credores. O numerário auferido com a venda dos bens do falido será deposito em instituição financeira e a movimentação dependerá de autorização judicial.

Finalizada a venda dos bens arrecadados, o administrador judicial deve apresentar sua prestação de contas e, após o julgamento destas, o relatório final no prazo de dez dias, sob pena de crime de desobediência. Apresentado o relatório, será proferida sentença declarando o encerramento da falência, devendo ser publicada por edital, e, neste caso, o recurso cabível é a apelação.

Após o encerramento do processo, o falido poderá ter interesse em promover sua reabilitação, que e essencial para o exercício da atividade empresarial. A reabilitação compreende a extinção das responsabilidades civis e penais. Para fins civis, a extinção das obrigações compreende: pagamento (antes ou depois da sentença de encerramento da falência) dos créditos ou novação daqueles com garantia real; rateio de mais de 50% (cinqüenta por cento) do passivo, após a realização de todo o ativo, sendo facultado o depósito para se atingir esta porcentagem; decurso do prazo de cinco anos após o encerramento da falência, se não houve crime falimentar; decurso do prazo de dez anos após o encerramento da falência, se houve condenação em crime falimentar; prescrição das obrigações anteriormente ao decurso dos prazos decadenciais anteriormente citados (a declaração de falência suspende os prazos prescricionais das obrigações do falido, que recomeçam após o trânsito em julgado da sentença de encerramento).

O falido deverá apresentar prova da quitação dos tributos relativos ao exercício do comércio e, após a oitiva das partes e, se for o caso, o representante do Ministério Público, o Juiz proferirá a sentença. Caso tenha ocorrido condenação por crime falimentar, o falido deverá requerer sua reabilitação penal, a qual somente poderá ser concedida após o transcurso de dois anos, contados do cumprimento da pena. Se não for requerida a reabilitação penal, os efeitos da inabilitação limitam-se a cinco anos, contados da extinção de punibilidade.

Como foi visto, cerrar as portas de um estabelecimento comercial não indica a falência da sociedade, porquanto o processo falimentar comporta diversas peculiaridades e envolvem vários sujeitos, não se restringindo a um só devedor. 

Cumpre ressaltar que a Lei 11.101/2005, com o instituto da recuperação judicial, buscou impedir o uso indevido do processo de falência, tendo em vista que era inegável a sua utilização para coagir o empresário a saldar seus débitos por um modo mais célere (o volume de processos de uma Vara de Falências é flagrantemente menor do que de uma Vara Cível) e eficaz (o não pagamento do débito redundaria na extinção da pessoa jurídica), contudo isto é um tema para outro post...

Fonte: Manual de Direito Comercial – Direito da Empresa. Fábio Ulhoa Coelho.

Aspectos jurídicos da falência – a sombra dos tempos de crise I

Apesar dos efeitos da crise financeira internacional no Brasil trem sido menores que os esperados por muitos economistas (felizmente!), o tema falência vez ou outra ronda as manchetes dos jornais. De fato, a retração econômica está invariavelmente associada ao fechamento de empresas. Quando em estabelecimento comercial fecha suas portas é comum ouvirmos que ele faliu, contudo, nem sempre isso ocorre, pois a falência demanda um processo judicial, cujas particularidades exigem um procedimento especial. O ordenamento jurídico conferiu novo tratamento à falência por meio da Lei 11.101/2005 e atualizou o vetusto instituto, adaptando-o às modificações ocorridas ao longo das mais de seis décadas de vigência do Decreto-Lei 7.661/45.

Tal como a pessoa física, assumir obrigações perante terceiros faz parte da existência de uma pessoa jurídica e, da mesma forma, ela pode ter as dívidas superiores às suas possibilidades de pagamento.

Assim, para se evitar injustiça aos credores, é curial dar àqueles que estão em igualdade de condições as mesmas chances de recebimento do crédito – o princípio do par conditio creditorium – , razão pela qual a lei lhes confere uma proteção especial por meio do instituto da falência.

A princípio, é sujeito à execução concursal todo e qualquer exercente de atividade empresarial, contudo, por diversos motivos, a lei excluiu total ou parcialmente determinadas categorias de empresários do regime falimentar. Estão totalmente fora do alcance das regras falimentares: as sociedades civis; as empresas públicas, sociedades de economia mista; as câmaras prestadoras dos serviços de compensação e de liquidação financeira; as entidades fechadas de previdência complementar. No intuito de proteger os usuários dos serviços, estão parcialmente fora do regime da falência e sujeitas a regime especial de liquidação: as instituições financeiras; as sociedades arrendadoras que exclusivamente ofereçam leasing; as sociedades que se dediquem à exploração de consórcio, fundos de mútuo e serviços afins; as companhias de seguro; as entidades abertas de previdências complementar; as operadoras de planos privados de assistência à saúde.

Se a crise atingiu o empresário em cheio e não lhe sobrou alternativa senão recorrer ao Juízo falimentar, impende esclarecer o processo como se dá a execução concursal dos bens de uma pessoa jurídica no direito brasileiro.

O processo de falência é constituído por três etapas distintas: pedido de falência (etapa pré-falimentar); etapa falencial propriamente dita (inicia-se com a sentença declaratória de falência e perdura até o encerramento desta); reabilitação (declaração da extinção das responsabilidades de ordem civil do falido). No caso de omissão da Lei de Falências – Lei 11.101/2005, aplica-se subsidiariamente as normas comuns do direito civil, penal ou do processo civil. O Juízo da falência é universal, ou seja, atrai todas as ações referentes os bens, interesses e negócios da massa falida. São exceções a esta regra: ações não-reguladas pela lei falimentar em que a massa falida for autora ou litisconsorte ativa; reclamações trabalhistas; execuções tributárias; ações de conhecimento em que a União for interessada; ação que demanda obrigação ilíquida.

A LF determina que o empresário, quando não satisfizer os requisitos autorizadores da recuperação judicial, requeira a autofalência, contudo, é uma determinação desprovida de eficácia prática, pois o não atendimento ao comando legal não acarreta nenhuma sanção. Para o pedido de autofalência possuem legitimidade ativa concorrente o cônjuge sobrevivente, os herdeiros, o inventariante e o sócio da sociedade devedora, ainda que limitada ou anônima.

A regra geral é o pedido de falência feito pelo credor e a lida diária informa que tal instrumento tem servido de eficaz meio de cobrança, portanto, desvirtuando por completo a mens legis. Observa-se que o credor tem pouco interesse (quiçá nenhum) na falência da sociedade, pois o que se almeja é o recebimento do seu crédito, sem que para isso tenha que se instaurar uma execução coletiva, medida que acarretará a pulverização dos ativos entre todos os credores.

Para requerer o pedido de falência, o credor empresário deve comprovar sua condição. A ação deve ser instruída com o título, ainda que não vencido – no caso da prática de atos de falência ou quando o fundamento é outro título não pago no vencimento. Quando se tratar de autofalência, o pedido do devedor deve vir instruído com uma demonstração contábil dos três últimos exercícios, a relação dos credores e o contrato social, se inexistente, a relação dos sócios e outros indicados pelo artigo 105 da LF. O rito prevê a citação do empresário devedor para responder (contestar) no prazo de 10 (dez) dias. Se o pedido fundamentar-se na impontualidade injustificada ou execução frustrada, o devedor pode elidi-lo ao depositar em Juízo, no prazo da resposta, o valor correspondente ao débito, atualizado monetariamente e acrescido de juros e correção monetária.

Apesar do nome que o legislador impingiu, a sentença declaratória de falência tem caráter eminentemente constitutivo, uma vez que após a prolação, a pessoa, os bens, os atos jurídicos e os credores do empresário falido são submetidos a um regime jurídico específico. Além dos requisitos genéricos de qualquer sentença, aquela que declara a falência deve conter a identificação do devedor; a localização do estabelecimento principal; se for o caso, a designação dos sócios que responderão ilimitadamente ou dos representantes legais da sociedade falida; o termo legal da falência (lapso temporal anterior à decretação da quebra em que os atos do falido são ineficazes perante a massa – até noventa dias do primeiro protesto ou da petição inicial), se possível; a nomeação do administrador judicial; além de outros elementos indicados por lei. No momento da falência, o Juiz pode determinar a adoção de medidas cautelares no interesse da massa, v. g., o seqüestro de bens. A sentença declaratória de falência desafia agravo de instrumento. 

Observa-se que, não obstante à nomenclatura inicialmente adotada pelo Decreto-Lei 7.661/45 e encampada pela Lei 11.101/2005, a decisão que decreta a falência reveste-se de caráter interlocutório, haja vista que ela apenas encerra uma fase do procedimento falimentar, aquela em que um único credor questiona em Juízo a capacidade de o empresário cumprir suas obrigações, valendo-se para tanto do pedido de falência. Comprovada a impossibilidade de o empresário solver a dívida, tem início, nos mesmos autos, a fase da execução concursal. Logo, a sentença declaratória de falência é uma decisão interlocutória que põe fim a uma fase do processo falimentar, tanto que contra ela não e cabível o recurso de apelação.

Se o pedido de falência for julgado improcedente e comprovada a má-fé do requerente, o Juiz pode no ato da sentença condená-lo no pagamento de indenização em favor do requerido, além das verbas de sucumbência. A sentença que denega o pedido de falência pode ser objeto de recurso de apelação, no prazo de 15 (quinze) dias.

Fonte: Manual de Direito Comercial – Direito da Empresa. Fábio Ulhoa Coelho.

 

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: a segunda divisão do controle de constitucionalidade

Quando se fala em controle de constitucionalidade pela via da ação logo pensamos nos meios "clássicos": ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e, mais recentemente, a ação declaratória de constitucionalidade. Contudo, os meios de controle não se restringem a estes dois institutos. Devem ser citadas a ação direta de inconstitucionalidade interventivia (representação interventiva, tema para outro post) e a pouco lembrada arguição de descumprimento de preceito fundamental.
No que concerne a arguição de descumprimento de preceito fundamental - ADPF -, prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal, teve sua aplicabilidade prática somente com a promulgação da Lei 9.882/99, a qual dispôs sobre o processo e julgamento deste instituto.
A ADPF, originariamente, visou permitir a impugnação de qualquer ato do Poder Público que acarretasse lesão ou ameaça de lesão a preceito fundamental insculpido na Constituição Federal. O instrumento inovou ao permitir a impugnação de atos normativos municipais em face da Carta da República, bem como a discussão do direito pré-constitucional.
A ADPF pode ser autônoma, caso em que possui a natureza de ação; ou incidental, hipótese em que pressupõe a existência de uma original ajuizada em face de um dos legitimados da ADPF, os quais podem suscitar a questão para apreciação direta do Supremo Tribunal Federal. Registre-se que, por ausência de previsão constitucional, não há possibilidade de o incidente ser provocado pelas partes no caso concreto, a ADPF deve ser ajuizada em peça autônoma.
Insta observar que a ADPF pode ter como objeto tanto a prática de ato ou a omissão do Poder Público (exceto atos políticos), sejam atos normativos ou não, que acarretem lesão ou ameaça de lesão a preceito constitucional fundamental. Atos praticados por particulares no exercício delegado de parcela do Poder Público podem ser objeto da ADPF. Em relação à possibilidade de impugnação de atos normativos federais, estaduais e municipais, abrangidos os anteriores à Consituição Federal de 1988, é necessário que seja demonstrada relevante controvérsia constitucional e que a aplicação ou não dos referidos atos também lese ou tenha pontecial poder de violação de preceito fundamental. Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, os enunciados de sua Súmula constituem as orientações sintetizadas, razão pela qual não podem ser atacados via ADPF.
De suma importância é o fato de que a ADPF não se presta para declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade de atos normativos federais e estaduais pós-constitucionais. Podem ser objeto da ADPF atos infralegais regulamentares que qualquer esfera da Federação, pois eles não têm como ser questionados por ação declaratória de inconstitucionalidade.
Calha observar que a Lei 9.882/99 não delinou os proceitos fundamentais cuja lesão autoriza o ajuizamento da ADPF . É entendimento pacífico no Supremo Tribunal Federal que cabe àquela Corte identificar as normas que devem ser consideradas preceitos fundamentais para conhecimento da ADPF, conforme se depreende do seguinte julgado, in verbis:

EMENTA: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Lei nº 9882, de 3.12.1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da referida medida constitucional. 2. Compete ao Supremo Tribunal Federal o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental. 3. Cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Necessidade de o requerente apontar a lesão ou ameaça de ofensa a preceito fundamental, e este, efetivamente, ser reconhecido como tal, pelo Supremo Tribunal Federal. 4. Argüição de descumprimento de preceito fundamental como instrumento de defesa da Constituição, em controle concentrado. 5. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: distinção da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. 6. O objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental há de ser "ato do Poder Público" federal, estadual, distrital ou municipal, normativo ou não, sendo, também, cabível a medida judicial "quando for relevante o fundamento da controvérsia sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição". 7. Na espécie, a inicial aponta como descumprido, por ato do Poder Executivo municipal do Rio de Janeiro, o preceito fundamental da "separação de poderes", previsto no art. 2º da Lei Magna da
República de 1988. O ato do indicado Poder Executivo municipal é veto aposto a dispositivo constante de projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, relativo ao IPTU. 8. No processo legislativo, o ato de vetar, por motivo de inconstitucionalidade ou de contrariedade ao interesse público, e a deliberação legislativa de manter ou recusar o veto, qualquer seja o motivo desse juízo, compõem procedimentos que se hão de reservar à esfera de
independência dos Poderes Políticos em apreço. 9. Não é, assim, enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo - que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, - no conceito de "ato do Poder Público", para os fins do art. 1º, da Lei nº 9882/1999. Impossibilidade de intervenção antecipada do Judiciário, - eis que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo, - poder que a ordem jurídica, na espécie, não confere ao Supremo Tribunal Federal, em via de controle concentrado. 10. Argüição de descumprimento de preceito fundamental não conhecida, porque não admissível, no caso concreto, em face da natureza do ato do Poder Público impugnado(ADPF 1 QO, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/2000, DJ 07-11-2003 PP-00082 EMENT VOL-02131-01 PP-00001)

O princípio da subsidiariedade confere à ADPF um caráter de ação excepcional, com cabimento somente quando não for possível sanar a lesividade do ato ou sua ameaça mediante a utilização de qualquer outro meio eficaz para tanto. Abalizada doutrina (Gilmar Ferreira Mendes, Celso Ribeiro Bastos, Daniel Sarmento) defendem que o § 1º do art. 4º da Lei 9.882/99 não deve ser interpretado literalmente, sob pena de retirar a aplicabilidade da ADPF. Este posicionamento é a corrente dominante no Supremo Tribunal Federal. Já Celso Ribeiro Bastos posiciona-se no sentido de que o fator tempo seja levado em consideração para se verificar se existe outro meio de cessar ou impedir a lesão, de forma que, na ausência deste, ficaria autorizado o uso da ADPF.
A competência originária para processamento e julgamento da ADPF é do Supremo Tribunal Federal e, conquanto a Constituição não tenha arrolado os legitimados para proposição, os sujeitos autorizados a proporem Ação Direta de Inconstitucionalidade (artigo 103, incisos I a IX da Constituição Federal): I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Admite-se a concessão de medida liminar em sede de ADPF, desde que haja decisão da maioria absoluta dos membros do STF (cláusula da reserva de plenário, artigo 97 da Constituição Federal) e, em casos de urgência, a medida pode ser concedida pelo Relator, ad referendum do Tribunal Pleno. O Relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias. A liminar concedida possui eficácia geral e, se assim for decidido pelo Excelso Pretório, efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público. Nos termos do artigo 8º da Lei 9.882/99, a decisão sobre a ADPF somente será tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos Ministros.
Em relação ao efeito vincunlante da decisão proferida na ADPF, a doutrina entende que tal reflexo não atinge o Poder Legislativo no tocante ao exercício de sua função típica, sob pena de inibir, ad eternum, a produção legislativa. Não se admite ação rescisória contra a decisão proferida pelo STF na ADPF.
Verifica-se, portanto, que a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ao lado das tradicionais ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade, são meios consagrados pela Constituição Federal para o controle abstrato de constituicionalidade.
Não obstante seus efeitos, a ADPF é tratada pela doutrina como um meio secundário para a defesa da ordem constitucional, prova disso está na exígua produção literária a respeito do tema. Todavia, o fato de tal instrumento permitir o controle de normas pré-constitucionais e até mesmo municipais em face da Constituição Federal de 1988 confere a ADPF um grau de destaque no sistema do controle de constitucionalidade.
Fonte: Controle de Constitucionalidade, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino.

terça-feira, 16 de junho de 2009

O "Direito de Superfície" no caso concreto

Ontem, li uma notícia no site www.superesportes.com.br que traz para a prática um instituto do direito civil pouco falado, mas com efeitos interessantes: o direito de superfície. Vejamos trecho da indigitada notícia: 
"Desfeito o mistério: a coletiva convocada pelo presidente do Atlético, Alexandre Kalil, marcada para a manhã desta segunda-feira, serviu para que o dirigente anunciasse os números da proposta do novo contrato de arrendamento do Shopping Daimond Mall com o grupo Multiplan
O atual foi assinado em novembro de 1996.Segundo Kalil, o clube recebeu a proposta há três meses e vinha negociando os detalhes e os valores do novo compromisso, que prevê a prorrogação do arrendamento por mais 15 anos.
Os novos termos do contrato, que terá que ser votado pelo Conselho Deliberativo nesta quarta-feira, são:
- Reajuste do contrato atual (ainda em vigência por 17 anos e prorrogação por outros 15). Dos atuais R$ 72.714.916,68 para R$ 91.800.000,00, o que significa um aumento de receita de mais de R$ 19 milhões.
- Pagamento de luvas de R$ 16,5 milhões, em 30 parcelas mensais e sucessivas, além da cessão de 20 vagas de garagem de uso exclusivo do clube.
Segundo o presidente alvinegro, nos próximos 30 meses o contrato vai significar um aumento da receita mensal que o clube recebe do shopping. Os atuais R$ 356.444,67 vão subir para R$ 1 milhão. Após os 30 meses, a receita mínima passa a ser de R$ 500 mil."
Podemos ver que o glorioso Atlético Mineiro possui um terreno no qual foi edificado um shopping center e, como forma de retribuição pelo uso da área, o clube recebe uma determinada quantia. Mutatis mutandis, este é o direito de superfície expresso pelo artigo 1369 do Código Civil de 2002.
Pelo direito de superfície o proprietário concede a outrem (superficiário) o uso de sua propriedade (via de regra para edificações permanentes), seja para construção ou plantação. A concessão pode ser a título gratuito ou oneroso (mediante o pagamento do cânon). Ressalta-se que a escritura pública é essencial para o registro imobiliário, o qual torna o contrato eficaz perante terceiros.
Ainda que não primando pela boa técnica legislativa (sem citar as contradições com o ordenamento jurídico pátrio), o direito de superfície foi expressamente previsto pela Lei 10.257/2001 - o Estatuto das Cidades - contudo, em boa hora, o Código Civil de 2002 corrigiu algumas falhas da citada lei e disciplinou o direito de superfície nos artigos 1.369 e seguintes.
Não se pode olvidar que, ao contrário do inicialmente previsto pela Lei 10.257/2001, não se admite a concessão do direito de superfície por prazo indeterminado, tampouco a utilização do subsolo, salvo se inerente à atividade desenvolvida pelo superficiário, o qual responde pelos tributos e encargos que incidem sobre a propriedade. 
Além das causas comuns de extinção dos contratos, o direito de superfície também finda pela falta de pagamento do cânon, pelo termo final, pela infração de cláusulas contratuais.
Importante ressaltar que o fim do direito de superfície enseja a restituição ao proprietário da propriedade plena sobre o terreno, construção ou plantação, independentemente de indenização, exceto se o contrato dispuser em sentido contrário. Ocorrendo a desapropriação do imóvel concedido em superfície, a indenização cabe ao proprietário e ao superficiário, no valor correspondente o direito real de cada um. Se as obras e benfeitorias pertencerem integralmente ao superficiário, a ele caberá o seu respectivo valor.
Como se vê, ainda que o proprietário de um terreno não disponha de meios para promover a edificação, o direito de superfície revela-se como uma valiosa ferramenta para conferir à propriedade uma finalidade social, além de gerar renda para ambas as partes.
Os alvinegros mineiros agradeceriam se os dirigentes conservassem uma das fontes de rendas mais seguras do clube (seria bom que eles estudassem um pouco de direito civil).
Fonte: Sílvio de Salvo Venosa. Direito Civil - volume 5. 
 

Isso que é ser poliglota....

Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.

Quem é esse??? R.: João Guimarães Rosa

Post 01

Já dizia o velho sábio chinês: uma caminhada de mil quilômetros começa com o primeiro passo....