quarta-feira, 24 de junho de 2009

A gênese do crime - I

Quem nunca, em um momento de fúria ou mesmo de brincadeira pensou “eu seria capaz de matar fulano!!”? Sejamos sinceros, ter um pensamento como este não é nenhuma aberração. Seríamos mesmo capazes de cometer crimes? O que leva uma pessoa a infringir as normas de conduta? As respostas para estas questões são as mais variadas possíveis. O operador do Direito pode se valer da criminologia, uma ciência que estuda o fenômeno criminal, a vítima, as determinantes endógenas e exógenas que atuam sobre a pessoa e a conduta do delinquente.

O delito pode ser encarado sob vários enfoques; para o jurista é um fato típico, antijurídico e culpável; para o filósofo, crime é todo ato que não se ajusta aos padrões éticos; o psicólogo, no entanto, está mais preocupado com os motivos que levaram o indivíduo a cometer o crime do que estabelecer uma definição.

Descobrir a gênese do delito não é importante apenas para o psicólogo, imiscuir-se neste território é essencial para o Magistrado, pois, de posse destes conhecimentos, uma conduta aparentemente idêntica praticada por pessoas diferentes, pode resultar em um julgamento distinto.
Deve o Magistrado examinar os fatos que antecederam o delito, uma vez que delitos podem ser iguais em sua aparência e circunstâncias, mas, via de regra, possuem antecedentes inteiramente distintos. Analisar o que aconteceu antes da prática do delito é o trabalho psicológico do aplicador do Direito ao caso concreto.

E quanto a pena? Ao mesmo tempo em que o pensamento moderno não acolhe a tese da pena como mero castigo ou fruto da vingança, é temerário sancionar o criminoso em razão dos motivos que o levaram a infringir a lei, haja vista que eles raramente são conhecidos. Compreender e explicar o delito equivale a descortinar a conduta pessoal perante a situação delituosa. É curial que o jurista, ao julgar um ato criminoso, examine o sujeito levando em consideração: constituição corporal; temperamento; inteligência; caráter; experiência anterior; situação externa desencadeante; atitude e modo de percepção do homem médio em face da situação. No caso concreto, cada um destes fatores pode apresentar-se de modo diverso, influindo positiva ou negativamente, na decisão do Juiz, somando-se ou contrapondo-se, para formar o denominado “complexos determinantes de ações delituosas”.

Uma transgressão legal nunca é totalmente impulsiva, nem completamente premeditada, pois ambas atitudes passam pelas mesmas fases, que vão desde a simples “gnosia” (vaga sugestão ou intuição do fim possível) a sua realização ativa.

As fases da ação delituosa podem ser consolidadas da seguinte forma: interlecção ou “gnosia”; desejo ou tendência; deliberação (ou dúvida, se houver conflito de motivos); intenção (propósito ou delito potencial); decisão; execução ou realização.

A primeira fase é aquela que nos referimos no início, ou seja, é o vago pensamento (que bom seria se...; e se não fizesse....). Nas etapas posteriores, os delitos começam a ganhar corpo, porquanto o mero substrato gnóstico se converte em tentação que se avoluma até se tornar um desejo. Neste ponto o agente começa a gostar da idéia. Passa-se à terceira fase, a qual não se apresenta nos delinqüentes ou criminosos habituas, pois neste momento surge a dúvida e o indivíduo oscila entre o desejo e o temor, entrando na deliberação do conflito. Neste estágio, se não houver um freio, a intenção delituógena começa a condensar-se e, incontinenti, adentraremos à quarta fase. O indivíduo se torna um criminoso potencial, o que era um propósito transforma-se na idéia “vou fazer!”. Por último, temos a decisão, momento em que a ação é executada. A passagem do propósito à decisão é de vital interesse, pois, uma vez identificadas estas fases, o julgador pode verificar se houve ou não desistência voluntária.

Ao falarmos do abandono da ação delitiva no limiar de sua prática, um observador mais apressado logo diria que a execução do delito seria mera questão de oportunidade, pois o agente já estaria em uma fase “pré-crime”. Este pensamento pode ser acolhido nos crimes omissivos, contudo, nos denominados delitos comissivos, a questão não dever ser vista de maneira tão simplista. O dito popular enuncia: “do dizer ao fazer há uma grande distância”.

Quando a prática do delito ainda está no íntimo do indivíduo, a decisão por executá-lo não demanda maiores dificuldades, contudo, no momento em que é necessário exteriorizar este pensamento, expô-lo a todas hostilidades dos mundo, por menos previdente que seja o intelecto da pessoa, ela ao menos considerará os perigos que a ameaçam, sejam as possíveis falhas na execução ou a forma de fugir das responsabilidades advindas do ato. Em face destas questões que afligem o indivíduo na ocasião da prática de um delito, muitos criminosos em potencial não chegam a perpetrar seus crimes.

Outro motivo que pode levar o agente a parar na fase pré-positiva é que, ao surgir a oportunidade de converter seu propósito em realidade, todo conjunto das tendências contrárias que estavam reprimidas (porém não suprimidas) se reativa.

Desta feita, os delitos serão tanto mais considerados quanto maior for a violência e obcecação demonstradas nas últimas fases do processo delituógeno, pois evidencia-se a impossibilidade de mantê-lo reprimido pela censura ética do indivíduo.

Em face desta visão do crime, o direito penal perdeu o caráter exclusivamente repressivo, intimidativo e retributivo e passou a exercer ação educativa e preventiva, pois a Justiça passou a ser um problema social, cuja solução exige do Magistrado a individualização da pena e preocupação com a reeducação e reinserção social do criminoso. O Juiz deixa de ser um técnico, mero aplicador da letra fria da lei, para se tornar o árbitro entre os direitos do indivíduo e da sociedade. O adágio nullum crimen sine lege, nulla poena sine lege já não pode mais ser visto de modo absoluto, pois este dogma tornava o Magistrado um autômato, postura que não pode ser aceita face da impossibilidade de tratar igualmente os desiguais.

A individualização da pena deve basear-se na valorização profunda da personalidade e do perfil psicológico completo do delinquente, como critério essencial para que o Juiz possa tratar a situação de forma justa. Merece consignar que nos Estados Unidos, a pre-sentence investigation é um dado fundamental e indispensável como preliminar para a Corte, tendo como finalidade analisar e enfocar o caráter e a personalidade do acusado, avaliação que auxilia a Justiça Penal a decidir sobre o caso, bem como em relação à concessão de benefícios que atendam aos interesses dos indivíduos e da coletividade.

Se é certo que a personalidade do indivíduo deve ser estudada para subsidiar o Magistrado no julgamento da causa, até que ponto fatores corporais, tais como secreções endócrinas, atuam sobre as funções psíquicas, as emoções e os sentimentos. As glândulas endócrinas lançam diretamente seus produtos no sangue, influenciando o estado emocional das pessoas, podem produzir modificações de condutas normais ou patológicas e, por conseqüência, ensejar psicoses e influenciar no cometimento de crimes.

Certas glândulas segregam hormônios que afetam o funcionamento de outras e excitam o sistema nervoso. As glândulas sexuais têm papel ativo na determinação do equilíbrio psíquico; a insuficiência ovariana priva a mulher da graça feminina, da ternura e da abnegação; os eunucos se mostram excessivamente pobres de espírito, tímidos, invejosos, fanáticos e excessivamente místicos. Surtos de hipertireoidia são notados em mulheres jovens após desilusões amorosas, cenas de ciúmes e, inclusive após a gestação, tudo acompanhado de disfunção ovariana. A hipertireoidia também é conhecida como Síndrome de Graves-Basedow e as perturbações mentais mais registradas são: hiperemotividade, instabilidade e irritabilidade. Desvios endócrinos com repercussão nas glândulas sexuais e parassexuais dão lugar a perversões da libido, surgindo um estado de debilitação geral, com torpor intelectual e depressão.

Notamos uma relação entre as secreções internas e o sistema nervoso em geral, que pode ser alterado por elas. Estudos endócrinos relacionados com as modificações que o funcionamento das glândulas internas podem produzir no plano das emoções e do sentimento são utilizados para a explicação de certos crimes passionais. A chamada Endrocrinologia Criminal, além de suas análises referentes ao criminoso considerado doente mental, deve pesquisar e investigar outros tipos de infratores para definir se uma hiper-secreção das glândulas internas podem influenciar ou não no cometimento do ato delituoso.

A prática do ato criminoso exige duas condicionantes: de um lado as condições solicitadoras (desencadeantes) e de outro, a condição de personalidade do agente (predispondo e resistindo). Os fatores individuais e sociais se juntam e passam por uma triagem psíquica, que conduzirá ou não à prática do ato. A personalidade global, em dado momento, será impelida a cometer a ação ou, diversamente, freará os impulsos e impedirá que ela aconteça e o produto final deste entrechoque de forças redundará ou não na configuração do delito.

A personalidade do indivíduo é estruturada desde a infância por fatores constitucionais e evolutivos, uns são biológicos, outros psicológicos e alguns sociais. Por constituírem a base da estruturação da personalidade são chamados de fatores primários. Por outro lado, em determinado momento, ocorre um chamamento que leva alguém a agir e tais fatores atuarão sobre uma estrutura já pronta, razão pela qual são chamados de secundários, sendo eles os responsáveis pelo desencadeamento da ação.

Uma pessoa de boa formação moral e bons princípios poderá ter seu equilíbrio rompido e praticar um crime, por reação. Malgrado seja típica no aspecto jurídico, na esfera psicológica ela é atípica, trata-se de crime eventual, pois o agente tem personalidade normal. Em outros casos o indivíduo detém personalidade mórbida e o ato chega a ser sintoma de perturbação, trata-se de delinqüência sintomática. Há casos ainda em que existem desvios ou defeito de personalidade e o ato delituoso chega a ser uma expressão do caráter: é o que ocorre com as personalidades sintomáticas.

Verifica-se, portanto, que, além de fatores externos, o funcionamento do próprio organismo do indivíduo atua de forma tenaz nas ações, as quais podem resultar na pratica de atos delituosos, não se podendo olvidar que a personalidade do agente está umbilicalmente ligada à prática do crime. A teoria psicológica do crime busca explicar o papel da personalidade no delito, contudo, este é assunto para o próximo post.

Fonte: Criminologia Integrada. Newton Fernandes e Valter Fernandes.

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