sexta-feira, 26 de junho de 2009

A gênese do crime – II (o papel da personalidade no delito)

Embora esteja comprovado que fatores externos, aliados ao funcionamento do próprio organismo do indivíduo, contribuem para a prática criminosa, nunca se conseguiu comprovar a existência, nos seres humanos, de instintos sociais ou associais genéticos ou inatos. Ao revés do que ocorre com um formigueiro ou uma colméia, o homem não possui especificação genética para organizar-se individualmente ou em grupo. Observamos que a hereditariedade conserva para a formiga tudo quanto tem de geração a geração, contudo, se considerarmos os seres humanos, tal raciocínio não se aplica, porquanto o homem não é capaz de conservar nenhuma partícula da civilização e somente consegue saber das coisas através do binômio ensino-aprendizagem. Se os instintos sociais fossem conservados entre os seres humanos, tal qual como nos insetos, haveria um engessamento da sociedade, impedindo seu desenvolvimento.

Após o nascimento e em contanto com o meio ambiente, o homem inicia um processo de aprendizagem no qual haverá o desenvolvimento de tendências que irão marcar seu comportamento, na sua grande maioria para o bem. Estas tendências primárias do ser humano poderão modificar-se conforme as experiências a que ele será submetido, pois o ambiente pode continuar a atuando sobre as pessoas para acelerar ou retardar uma tendência, bem como para desviar, por inteiro, uma pessoa de uma tendência inicial, seja ela voltada para a sociabilidade ou associabilidade.

Não é inato ao homem um instinto direcionado à prática delituosa, contudo, permanece a questão: por que o crime acontece? Para responder a esta indagação, a Teoria Psicológica do crime busca explicação na personalidade, considerando-a como aquilo que permite uma predição de como uma pessoa agirá ou que fará em determinada situação. A personalidade pode ser compreendida como o caráter ou a qualidade do que é pessoal, aquilo que determina a individualidade de uma pessoa, enfim, uma organização constituída por todos os seus caracteres cognitivos, afetivos, volitivos e físicos. O temperamento é o núcleo central da personalidade. Na prática da ação delituosa os caracteres afetivos ou emocionais (temperamento) e os caracteres volitivos (vontade) exercem papel preponderante.

Não subsiste a idéia do determinismo pessoal, fruto de uma constituição biológica, para a consecução do crime conforme defendeu Lombroso e nem a predisposição, que igualmente adviria da compleição física, algo que, de uma maneira mais amena, poderia impelir o indivíduo ao crime. A tendência ou disposição para o delito é o resultado da aprendizagem, sem conotação genética.

Quando existem estímulos externos, estes têm que ser analisados em consonância com as características da personalidade e, lavando-se ambos em consideração, podemos compreender e predizer o comportamento humano, inclusive a conduta criminosa, e a experiência subjetiva.

Fazer deduções sobre a estrutura da personalidade, embasados apenas em um aspecto do comportamento, pode ensejar erros. A organização da personalidade é complexa e só pode ser completamente conhecida por inúmeras manifestações comportamentais, mormente quando estamos no limiar do cometimento do crime, situação em que se degladiam poderosos conflitos e estados emocionais.

A manutenção de um mesmo padrão de comportamento é traço característico da personalidade, contudo, modificações substanciais são observadas durante a adolescência e princípio da idade adulta, principalmente na sociedade moderna, onde as pessoas são diariamente bombardeadas com inúmeras informações e, dia a dia, são apresentadas a situações novas.

A personalidade concreta de cada indivíduo constitui o resultado da íntima combinação de múltiplos e variados fatores de comportamento, dentre os quais figuram os seguintes: fatores biológicos; grau de desenvolvimento biológico; condições, componente e fatores adquiridos; condições e fatores psíquicos constitucionais; condições e fatores psíquicos adquiridos; componentes e fatores sociais e culturais. O desenvolvimento da personalidade se efetua em relação ao tempo e ao espaço, através da interação das pessoas aos ambientes físicos, psíquicos, morais e culturais, nos quais elas estão inseridas.

O delito é um ato, entretanto, a conduta delituosa é composta por uma série de atos, dependentes do caráter (expoente da personalidade) e de outras causas endógenas e exógenas que motivam a prática da ação. Diante disso, não é plausível julgar um crime sem compreendê-lo intrínseca e extrinsecamente. Para tanto, é necessário compreender as circunstâncias externas que antecederam a prática do delito, bem como perquirir acerca da existência e a intensidade de todos os fatores determinantes da relação pessoal que contribuíram para a concretização do crime.

No julgamento do delito devem ser mensurados e avaliados os fatores exógenos, além do conhecimento da personalidade do delinqüente (fator endógeno), para aferirem-se os motivos de sua reação. O delinqüente deve ser submetido a exame criminológico, constituído por um conjunto de pesquisas científicas de natureza biopsicossocial, cujo resultado revelará, sem disfarces, a verdadeira dimensão da personalidade do criminoso, descobrindo sua intimidade psíquica. Vale ressaltar que não é possível passar ao largo das fases intrapsíquicas da ação delituosa (gnosia, desejo, deliberação, decisão e execução).

A biologia criminal inspirou Lombroso e objetiva o estudo do criminoso no que diz respeito a seus caracteres físicos e psíquicos, suas paixões e sentimentos, ou seja, fatores orgânicos e biológicos individuais do delito, inclusive as possíveis anomalias psíquicas e físico-orgânicas apresentadas pelo criminoso. A biologia criminal e a psiquiatria prestam um valioso auxilio para explicar o comportamento infrator em alguns casos, contudo, estas teorias não têm o condão de estabelecer uma justificativa ou explicação cabal e definitiva, pois não possuem o caráter de verdade incontroversa. Nesse mesmo sentido, aspectos sociológicos também não se prestam a justificar a prática do crime.

O criminoso deve ser analisado sob todos os seus aspectos, sejam eles estruturais, funcionais, racionais, psiquiátricos e sociais. Por meio desta análise completa será possível visualizar suas personalidade, pois é da forma como ela reage aos estímulos internos e externos, no momento imediatamente anterior à ação delituosa, resulta ou não no crime.

Por que o crime acontece? Por decisão e anuência da personalidade. Na ocorrência do crime, seja qual for sua natureza, sempre e invariavelmente haverá um fator interno representado pela personalidade, cujo núcleo central é o temperamento, o qual, por sua vez, é responsável pela formação da tendência ou disposição determinante da forma de reação do indivíduo aos embates da vida. A personalidade e suas disposições é que conduzem à prática delitiva.

Ultrapassadas as fases de intenção e vontade e, existindo a tendência para se cometer crimes, antes que ocorra a decisão, o indivíduo passa pela fase da deliberação ou dúvida, na qual pode surgir o chamado mecanismo de resistência.

A personalidade sempre decide, em última instância, pela perpetração ou não do crime. Registre-se, por oportuno, que temos como referência a personalidade de um indivíduo sadio. Nos casos de pessoas com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, bem como de personalidade psicopáticas, alguns ingredientes ou componentes da personalidade podem estar comprometidos, uma ou mais fase intrapsíquica do crime estaria com seu funcionamento desvirtuado, o que modifica a avaliação da personalidade na consecução do ato criminoso. O Código Penal não esta alheio a esta situação, tanto que o § 1º do artigo 26 prevê a imposição de medida de segurança, a depender do resultado do exame criminológico que poderá dizer se a personalidade encontrava-se em estado morbífico.

O crime ocorre também em razão do somatório de fatores internos com circunstâncias exógenas, aquelas relacionadas ao meio circundante (pobreza, miséria, infância abandonada, desemprego, etc), condições capazes de influenciar na personalidade, funcionando como desencadeantes do crime. Para a prática do delito o interfluxo entre os fatores internos e externos não sofre resistências ou inibições.

Nesse contexto, surge a explicação, sob o prisma da criminologia, para o apenamento mais brando dos atos infracionais praticados por crianças e adolescentes, o quais obedecem ao mesmo esquema formulado para os adultos, contudo, diante da estrutura psíquica em formação, os mecanismos de contensão da atividade criminosa são mais frágeis. A pouca experiência de vida, o menor temor às responsabilidades e o grau de desenvolvimento da personalidade explicam a tênue resistência à prática delitiva.

A prática do crime tem como elementos desencadeantes os fatores internos somados aos externos, sendo certo que a essência está na personalidade, pois ela, efetivamente, decide pela prática ou não do crime, haja vista o delito ocorrer por decisão interna do criminoso. Dada a possibilidade de escolha que se atribui à personalidade diante do mecanismo contensor, jamais poderá se acatar a idéia de qualquer determinismo, seja ele biológico, psicológico ou sociológico na verificação da delituosidade.

A gênese do crime está na personalidade do indivíduo, entretanto, para a prática da ação delituosa é necessária a convergência de diversos fatores, alguns externos, relacionados ao meio no qual o indivíduo está inserido e outros internos, afetos ao organismo do agente. Miséria, pouco acesso à cultura e ócio, considerados isoladamente, não explicam o crime.

Em face disto, podemos afirmar que qualquer pessoa pode cometer um crime, basta que as circunstâncias propícias ao ato estejam presentes no momento e que não haja nenhum mecanismo de contenção. Por isso, não raro, um mesmo delito de sancionado de forma diversa, haja vista que o julgador deve analisar a ação delituosa por completo, não apenas o ato final praticado para, dessa forma, aplicar a pena com a severidade necessária.

Fonte: Criminologia Integrada. Newton Fernandes e Valter Fernandes.

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