segunda-feira, 29 de junho de 2009

"Entrar" com uma ação em Juízo - I

Quando ingressamos em Juízo, corriqueiramente dizemos que “entramos com uma ação”. Mas o que seria essa ação? Mais do que um calhamaço de documentos envoltos em uma capa com cores diferentes, a ação é o direito ao exercício da atividade jurisdicional ou o poder e exigi-lo exercício. Por meio do exercício da ação provoca-se a jurisdição, que por sua vez se exerce através de um complexo de atos que é o processo.

Várias teorias buscam uma definição para a ação.

Para a escola clássica ou imanentista a ação seria uma qualidade de todo direito ou o próprio direito reagindo a uma violação. Foi a teoria acolhida por Savigny. Desse conceito defluem-se três conseqüências: não há ação sem direito; não há direito sem ação; a ação segue a natureza do direito.

A teoria imanentista foi alvo de críticas e o ponto de partida para o questionamento da definição clássica, que culminou com a reelaboração do conceito de ação, foi a polêmica entre os romanistas Windscheid e Muther, qual, combatendo algumas idéias de Windscheid, distinguiu nitidamente direito lesado e ação. Para Muther da ação nascem dois direitos, ambos de natureza pública: o direito do ofendido à tutela jurídica do Estado e contra ele dirigido, bem como o direito do Estado à eliminação da lesão, exercido contra o ofensor. Ao final, Windscheid acabou por aceitar algumas idéias de Muther, admitindo o direito de agir, exercitável contra o Estado e o devedor.

Em razão das novas idéias capitaneadas por Windscheid e Muther, novos autores passaram a distinguir o direito de ação do direito subjetivo material a ser tutelado e reconhecendo, em princípio, seu caráter público subjetivo. Duas principais correntes buscaram a explicar a natureza jurídica do direito de ação: a teoria do direito concreto à tutela jurídica e a teoria do direito abstrato de agir.

A doutrina do direito concreto à tutela jurídica foi elaborada pelo alemão Wach. Para ela, a ação é um direito autônomo, não pressupondo necessariamente o direito subjetivo material violado ou ameaçado (v. g. as ações meramente declaratórias). O direito de ação dirige-se contra o Estado, haja vista exigir a proteção jurídica, mas também contra o adversário, do qual se exige a sujeição. Entretanto, como a existência da tutela jurisdicional só pode ser satisfeita através da proteção concreta, o direito de ação só existiria quando a sentença fosse favorável.

O célebre Chiovenda alinha-se à teoria concreta. Pela construção o ilustre doutrinador, a ação configura um direito autônomo, diverso do direito material que se pretende fazer valer em Juízo. Contudo, o direito de ação não é subjetivo – pois não corresponde a uma obrigação do Estado – e muito menos de natureza pública. Pela teoria de Chiovenda, a ação não deixa de ser um direito à obtenção de uma sentença favorável, pois configura o poder jurídico de dar vida à condição para atuação da vontade da lei. O direito de ação exaure-se com seu exercício tendente à produção de um efeito jurídico em favor de um sujeito e com ônus para o outro, o qual não deve e não pode fazer nada a fim de evitar tal efeito.

A teoria da ação como direito abstrato de agir foi criada na Alemanha pelo notável Degenkolb. Por essa concepção, o direito de ação independe da existência efetiva do direito material invocado: não deixa de haver ação quando uma sentença justa nega a pretensão do autor ou quando uma sentença injusta a acolhe sem que exista na realidade o direito subjetivo material. A demanda ajuizada pode ser até mesmo temerária, sendo suficiente, para caracterizar o direito de ação que o autor mencione um interesse seu protegido, em abstrato, pelo direito. É com referência a esse direito que o Estado fica obrigado a exercer a função jurisdicional, proferindo uma decisão. Sendo a ação dirigida contra o Estado, é este o sujeito passivo de tal direito. Para que se configure o direito de ação é suficiente que o indivíduo se refira a um interesse primário, juridicamente protegido.

Carnelutti filiou-se à teoria abstrata, no entanto, o Mestre configura a ação como direito abstrato e de natureza pública, mas dirigida contra o Juiz e não contra o Estado.

A maior parte dos processualistas modernos abraçou a doutrina da ação como direito abstrato, porém houve espaço para surgimento de teorias denominadas ecléticas. Pela concepção de Liebman, a ação seria um direito subjetivo instrumental, um poder correlato com a sujeição e instrumentalmente conexo a uma pretensão material. Afirma também que o direito de ação de natureza constitucional (emanação do status civitatis), em sua extrema abstração e generalidade, não pode ter nenhuma relevância para o processo, constituindo o simples fundamento ou pressuposto sobre o qual se baseia a ação em sentido processual. Liebman dá por exercida a função jurisdicional somente quando o Juiz pronuncia uma sentença sobre o mérito, seja ela favorável ou não.

Uma análise das teorias apresentadas não as isenta de críticas.

As idéias da concepção imanentista em relação à ação infundada e à ação declaratória não podem ser aceitas. Mesmo que o direito subjetivo do autor é declarado inexistente, fica claro que houve o exercício do direito de ação, em outras palavras, houve ação sem direito material. No que concerne à ação declaratória negativa, o pedido do autor não tem por fundamento um direito subjetivo, busca-se a declaração da inexistência de uma relação jurídica (inexistência de um direito material).

Não há como acolher a teoria da ação como direito concreto à tutela jurídica haja vista a existência de ações julgadas improcedentes, hipóteses que, para essa teoria, não seria possível explicar satisfatoriamente os atos processuais praticados até a sentença. A mesma situação ocorre quando uma decisão injusta acolhe a pretensão infundada do autor.

Outra idéia impossível de ser acolhida é a do Juiz como titular passivo da ação, porque ele é mero agente do Estado, desinteressado na lide. A ação não pode ser entendida como manifestação do direito de petição, pois este instituto é remédio constitucional que visa levar aos órgãos públicos representações contra abusos de poder.

A doutrina dominante conceitua a ação como um direito subjetivo. Aqueles que defendem ser ela um poder partem da premissa de serem o direito subjetivo e a obrigação situações jurídicas necessariamente opostas, presente um conflito de interesses; e, existindo um conflito de interesses entre o autor e o Estado, não se poderá falar em direito subjetivo, senão em poder. Os que sustentam ser a ação um direito subjetivo admitem que o Estado também tem interesse no exercício da função jurisdicional. Não aceitam que a configuração do conflito de interesses seja essencial à noção de obrigação e o obrigado pode ter interesse em cumpri-la e nem por isso ficará isento dela.

A ação caracteriza-se como uma situação jurídica de que desfruta o autor perante o Estado, seja ela um direito público subjetivo ou um poder. Nessa concepção, a ação é dirigida contra o Estado. Sendo um direito ou um poder de natureza pública, que tem por conteúdo o exercício da jurisdição, a ação tem inegável natureza constitucional (artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal). A garantia constitucional da ação tem por objeto o direito ao processo, assegurando às partes não somente a resposta do Estado, mas, ainda, o direito de sustentar suas razões, ao contraditório, enfim, ao devido processo legal. Trata-se de direito ao provimento jurisdicional, qualquer que seja a natureza deste, sendo ela, portanto, abstrata. É, também, um direito autônomo e instrumental, porque independe da existência de um direito subjetivo material com o fim de dar solução a uma pretensão de direito material. Assim, o direito de ação é conexo a uma situação jurídica concreta.

No campo penal, o jus puniedi do Estado permanece em abstrato enquanto a lei não é violada. Contudo, com a infração, caracteriza-se o descumprimento da obrigação preestabelecida na lei por parte do transgressor, o direito de punir sai do plano abstrato e se apresenta no concreto. Assim, da violação efetiva ou aparente da norma penal nasce a pretensão punitiva do Estado, que se opõe a pretensão do indigitado infrator à liberdade. A pretensão estatal somente poderá ser atendida por sentença judicial precedida de regular instrução processual, observando-se o devido processo legal.

O Estado não pode exercer seu direito de punir senão quando autorizado pelo órgão jurisdicional. Esse princípio é posto como limitação ao poder punitivo do Estado, bem como à vontade do infrator e da vítima. A proibição da autodefesa criou o direito de ação para os particulares (facultas exigendi), a proibição da autoexecutoriedade e do direito de punir fez nascer o direito de agir para o Estado. A ação penal não difere da civil quanto à sua natureza, mas somente quanto ao seu conteúdo: é direito público subjetivo a um provimento do órgão jurisdicional sobre a pretensão punitiva.

Embora abstrato e ainda que até certo ponto genérico, o direito de ação está submetido a condições para que se possa legitimamente exigir o provimento jurisdicional. A existência das condições da ação deve-se ao princípio da economia processual: quando se percebe, em tese, que a tutela jurisdicional requerida não será possível, ela deverá ser negada. São condições da ação: possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimação ad causam.

A possibilidade jurídica do pedido não demanda maiores questionamentos.

Sob o prisma do interesse de agir, de acordo com o caso concreto, a prestação jurisdicional solicitada deve ser necessária (impossibilidade de se obter a satisfação por outros meios, sem a intervenieêcia do Estado) e adequada (o provimento deve ser apto a corrigir o mal de que o autor se queixa).

Em relação à legitimação ad causam, em princípio, é titular de ação apenas a própria pessoal que se diz titular do direito subjetivo material cuja tutela pede (legitimidade ativa), podendo ser demandado apenas aquele que seja titular da obrigação correspondente (legitimidade passiva).

Na falta de qualquer condição da ação, diz-se que o autor é carecedor de ação. A conseqüência disso é que o Juiz, embora exercendo o poder constitucional, não chegará a apreciar o mérito. É dever do Magistrado verificar, de ofício, o mais cedo possível a presença das condições da ação para evitar que o processo caminhe inutilmente.

Se a inexistência das condições da ação for verificada só ao final, diante da prova produzida (não há preclusão nesta matéria, podendo o Juiz rever sua manifestação anterior), duas posições podem ser adotadas: a primeira, de acordo com a teoria da apresentação, mesmo que venha a decisão final, ela será de carência de ação; para a teoria da prospectação, a sentença nesse caso será de mérito. A segundo teoria prevalece na doutrina brasileira, não obstante o pronunciamento contrário de Cândido Rangel Dinamarco.

São elementos da ação: partes, causa de pedir e pedido.

Quando o autor vem a Juízo, ele narra os fatos dos quais deduz ter o direito que alega, são os fatos constitutivos ou causa petendi.

O pedido é o provimento jurisdicional buscado pelo autor. Terá natureza congnitiva quando caracterizar o julgamento da pretensão deduzida em Juízo, tratando-se de uma sentença de mérito (meramente declaratória, constitutiva ou condenatória). Possuirá natureza executiva quando se tratar de medida através da qual o Juiz realiza, na prática, os resultados determinados pela vontade concreta do direito. Há também o provimento cautelar que visa resguardar eventual direito pelo decurso do tempo.

Registre-se que todo provimento jurisdicional refere-se a determinado objeto, um bem da vida. As ações distinguem-se entre si não só pela natureza do provimento que o autor pede, como também pelo objeto do seu alegado direito material. Variando um deles, já não se trata da mesma ação. Pela “teoria dos três eadem” (mesmas partes, mas causa de pedir ou título, mesmo pedido) permite-se aferir a conexidade de ações – para o Código de Processo Civil, deve-se ter a mesma causa de pedir ou do mesmo pedido; para a lei processual penal, ocorre quando se tratar de suas infrações ligadas entre si em termos de fato. Na ação penal o pedido é sempre genérico, pois o que se pleiteia é a imposição de uma pena, a ser individualizada pelo Magistrado.

A identificação das ações é de extrema utilidade em direito processual, seja para delimitar a extensão do julgamento a ser proferido, seja para caracterizar a coisa julgada ou a litispendência.

A ação não se resume a um processo físico, é um direito público subjetivo – ou um poder – dirigido ao Estado. O exercício do direito não depende de uma situação material concreta e está sujeito a determinadas condições para, enfim, a atividade jurisdicional ser efetivada.

Assim, ao “entramos com uma ação”, estamos exercendo um direito em face do Estado que nos foi conferido constitucionalmente, exigindo, quando presentes as condições, um provimento que pode ser de mérito, executivo ou cautelar. Contudo, se o autor tem direito a buscar em Juízo a tutela em razão de uma alegada violação ao seu direito, o réu tem direito a opor-se, atividade esta que é exercida por meio das exceções.

Fonte: Teoria Geral do Processo. Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco.

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