quarta-feira, 17 de junho de 2009

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: a segunda divisão do controle de constitucionalidade

Quando se fala em controle de constitucionalidade pela via da ação logo pensamos nos meios "clássicos": ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de inconstitucionalidade por omissão e, mais recentemente, a ação declaratória de constitucionalidade. Contudo, os meios de controle não se restringem a estes dois institutos. Devem ser citadas a ação direta de inconstitucionalidade interventivia (representação interventiva, tema para outro post) e a pouco lembrada arguição de descumprimento de preceito fundamental.
No que concerne a arguição de descumprimento de preceito fundamental - ADPF -, prevista no artigo 102, § 1º da Constituição Federal, teve sua aplicabilidade prática somente com a promulgação da Lei 9.882/99, a qual dispôs sobre o processo e julgamento deste instituto.
A ADPF, originariamente, visou permitir a impugnação de qualquer ato do Poder Público que acarretasse lesão ou ameaça de lesão a preceito fundamental insculpido na Constituição Federal. O instrumento inovou ao permitir a impugnação de atos normativos municipais em face da Carta da República, bem como a discussão do direito pré-constitucional.
A ADPF pode ser autônoma, caso em que possui a natureza de ação; ou incidental, hipótese em que pressupõe a existência de uma original ajuizada em face de um dos legitimados da ADPF, os quais podem suscitar a questão para apreciação direta do Supremo Tribunal Federal. Registre-se que, por ausência de previsão constitucional, não há possibilidade de o incidente ser provocado pelas partes no caso concreto, a ADPF deve ser ajuizada em peça autônoma.
Insta observar que a ADPF pode ter como objeto tanto a prática de ato ou a omissão do Poder Público (exceto atos políticos), sejam atos normativos ou não, que acarretem lesão ou ameaça de lesão a preceito constitucional fundamental. Atos praticados por particulares no exercício delegado de parcela do Poder Público podem ser objeto da ADPF. Em relação à possibilidade de impugnação de atos normativos federais, estaduais e municipais, abrangidos os anteriores à Consituição Federal de 1988, é necessário que seja demonstrada relevante controvérsia constitucional e que a aplicação ou não dos referidos atos também lese ou tenha pontecial poder de violação de preceito fundamental. Segundo entendimento do Supremo Tribunal Federal, os enunciados de sua Súmula constituem as orientações sintetizadas, razão pela qual não podem ser atacados via ADPF.
De suma importância é o fato de que a ADPF não se presta para declarar a inconstitucionalidade ou a constitucionalidade de atos normativos federais e estaduais pós-constitucionais. Podem ser objeto da ADPF atos infralegais regulamentares que qualquer esfera da Federação, pois eles não têm como ser questionados por ação declaratória de inconstitucionalidade.
Calha observar que a Lei 9.882/99 não delinou os proceitos fundamentais cuja lesão autoriza o ajuizamento da ADPF . É entendimento pacífico no Supremo Tribunal Federal que cabe àquela Corte identificar as normas que devem ser consideradas preceitos fundamentais para conhecimento da ADPF, conforme se depreende do seguinte julgado, in verbis:

EMENTA: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. Lei nº 9882, de 3.12.1999, que dispõe sobre o processo e julgamento da referida medida constitucional. 2. Compete ao Supremo Tribunal Federal o juízo acerca do que se há de compreender, no sistema constitucional brasileiro, como preceito fundamental. 3. Cabimento da argüição de descumprimento de preceito fundamental. Necessidade de o requerente apontar a lesão ou ameaça de ofensa a preceito fundamental, e este, efetivamente, ser reconhecido como tal, pelo Supremo Tribunal Federal. 4. Argüição de descumprimento de preceito fundamental como instrumento de defesa da Constituição, em controle concentrado. 5. Argüição de descumprimento de preceito fundamental: distinção da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade. 6. O objeto da argüição de descumprimento de preceito fundamental há de ser "ato do Poder Público" federal, estadual, distrital ou municipal, normativo ou não, sendo, também, cabível a medida judicial "quando for relevante o fundamento da controvérsia sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição". 7. Na espécie, a inicial aponta como descumprido, por ato do Poder Executivo municipal do Rio de Janeiro, o preceito fundamental da "separação de poderes", previsto no art. 2º da Lei Magna da
República de 1988. O ato do indicado Poder Executivo municipal é veto aposto a dispositivo constante de projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, relativo ao IPTU. 8. No processo legislativo, o ato de vetar, por motivo de inconstitucionalidade ou de contrariedade ao interesse público, e a deliberação legislativa de manter ou recusar o veto, qualquer seja o motivo desse juízo, compõem procedimentos que se hão de reservar à esfera de
independência dos Poderes Políticos em apreço. 9. Não é, assim, enquadrável, em princípio, o veto, devidamente fundamentado, pendente de deliberação política do Poder Legislativo - que pode, sempre, mantê-lo ou recusá-lo, - no conceito de "ato do Poder Público", para os fins do art. 1º, da Lei nº 9882/1999. Impossibilidade de intervenção antecipada do Judiciário, - eis que o projeto de lei, na parte vetada, não é lei, nem ato normativo, - poder que a ordem jurídica, na espécie, não confere ao Supremo Tribunal Federal, em via de controle concentrado. 10. Argüição de descumprimento de preceito fundamental não conhecida, porque não admissível, no caso concreto, em face da natureza do ato do Poder Público impugnado(ADPF 1 QO, Relator(a): Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 03/02/2000, DJ 07-11-2003 PP-00082 EMENT VOL-02131-01 PP-00001)

O princípio da subsidiariedade confere à ADPF um caráter de ação excepcional, com cabimento somente quando não for possível sanar a lesividade do ato ou sua ameaça mediante a utilização de qualquer outro meio eficaz para tanto. Abalizada doutrina (Gilmar Ferreira Mendes, Celso Ribeiro Bastos, Daniel Sarmento) defendem que o § 1º do art. 4º da Lei 9.882/99 não deve ser interpretado literalmente, sob pena de retirar a aplicabilidade da ADPF. Este posicionamento é a corrente dominante no Supremo Tribunal Federal. Já Celso Ribeiro Bastos posiciona-se no sentido de que o fator tempo seja levado em consideração para se verificar se existe outro meio de cessar ou impedir a lesão, de forma que, na ausência deste, ficaria autorizado o uso da ADPF.
A competência originária para processamento e julgamento da ADPF é do Supremo Tribunal Federal e, conquanto a Constituição não tenha arrolado os legitimados para proposição, os sujeitos autorizados a proporem Ação Direta de Inconstitucionalidade (artigo 103, incisos I a IX da Constituição Federal): I - o Presidente da República; II - a Mesa do Senado Federal; IV - a Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal; VI - o Procurador-Geral da República; VII - o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; VIII - partido político com representação no Congresso Nacional; IX - confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional.
Admite-se a concessão de medida liminar em sede de ADPF, desde que haja decisão da maioria absoluta dos membros do STF (cláusula da reserva de plenário, artigo 97 da Constituição Federal) e, em casos de urgência, a medida pode ser concedida pelo Relator, ad referendum do Tribunal Pleno. O Relator poderá ouvir os órgãos ou autoridades responsáveis pelo ato questionado, bem como o Advogado-Geral da União ou o Procurador-Geral da República, no prazo comum de cinco dias. A liminar concedida possui eficácia geral e, se assim for decidido pelo Excelso Pretório, efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público. Nos termos do artigo 8º da Lei 9.882/99, a decisão sobre a ADPF somente será tomada se presentes na sessão pelo menos dois terços dos Ministros.
Em relação ao efeito vincunlante da decisão proferida na ADPF, a doutrina entende que tal reflexo não atinge o Poder Legislativo no tocante ao exercício de sua função típica, sob pena de inibir, ad eternum, a produção legislativa. Não se admite ação rescisória contra a decisão proferida pelo STF na ADPF.
Verifica-se, portanto, que a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ao lado das tradicionais ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade, são meios consagrados pela Constituição Federal para o controle abstrato de constituicionalidade.
Não obstante seus efeitos, a ADPF é tratada pela doutrina como um meio secundário para a defesa da ordem constitucional, prova disso está na exígua produção literária a respeito do tema. Todavia, o fato de tal instrumento permitir o controle de normas pré-constitucionais e até mesmo municipais em face da Constituição Federal de 1988 confere a ADPF um grau de destaque no sistema do controle de constitucionalidade.
Fonte: Controle de Constitucionalidade, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino.

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