quinta-feira, 30 de setembro de 2010

A Sentença no Processo Penal


Por meio da sentença o magistrado julga definitivamente o mérito da pretensão penal, resolvendo-o em todas as suas etapas possíveis, a saber: a da imputação da existência de um fato (materialidade), a imputação da autoria desse fato e, por fim, o juízo de adequação ou valoração jurídico-penal da conduta.
O que importa distinguir nesta fase é efetivamente o conteúdo da decisão, que dará por apreciada, em toda a sua extensão e profundidade, a matéria relativa ao caso penal levado a Juízo, para o fim de absolver ou de condenar o acusado. Por isso se fala em decisão definitiva.
Enquanto a decisão que absolve sumariamente o réu por atipicidade (artigo 397, inciso III do CPP) somente impede a rediscussão do fato tal como ali narrado, a sentença absolutória, com fundamento no artigo 386, inciso III do Código de Processo Penal, faz coisa julgada material não em relação ao fato narrado, mas ao fato efetivamente ocorrido, isto é, ao fato ou realidade histórica. A primeira decisão é absolutória (sumária) antecipada, e a segunda, sentença absolutória definitiva (artigo 593, inciso I do CPP), impugnáveis ambas pela via da apelação.
As sentenças são condenatórias ou absolutórias (definitivas), merecendo registro, ainda, a sentença absolutória imprópria, por meio da qual se impõe medida de segurança ao inimputável, nos termos do artigo 386, parágrafo único, inciso III do Código de Processo Penal. Nesse caso, a decisão será absolutória pela ausência de culpabilidade do acusado.
A providência final que, em regra, espera-se no processo penal condenatório (excluída, por ora, a hipótese de transação penal realizada nos Juizados Especiais Criminais) é a absolvição ou a condenação do réu nas sanções em que se achar incurso, isto é, nas penas cominadas no tipo penal correspondente à conduta reconhecidamente praticada.
Afirma-se, com isso, que o pedido seria sempre genérico, no sentido de com ele se viabilizar a correta aplicação da lei penal, independentemente da alegação do direito cabível trazida aos autos pelas partes. O Juiz criminal estaria vinculado apenas à imputação dos fatos, atribuindo-lhes, uma vez reconhecidos, a consequência jurídica que lhe parecer adequada, tanto no que respeita à classificação (juízo de tipicidade) quanto à pena e à quantidade a ser imposta.
No processo penal cumpre ao autor delimitar unicamente a causa petendi, ou seja, o fato delituoso merecedor de reprimenda penal. O juízo de adequação típica, o enquadramento jurídico do fato, bem como a dosimetria da pena a ser aplicada, encontram-se, todos, na própria lei, cabendo ao Juiz a tarefa de revelar seu conteúdo.
O princípio da correlação funciona com garantia do indivíduo ao devido processo legal. Assim, o réu não poderá jamais ser condenado pela prática de fato não constante da denúncia ou queixa, ou ainda por fato diverso daquele ali mencionado, sem que antes se proceda à correção da inicial. O pedido no processo penal, rigorosamente falando, seria o de condenação. Nada mais.
A emendatio libelli não é outra coisa senão a correção da inicial (libelo, nessa acepção), para o fim de adequar o fato narrado e efetivamente provado (ou não provado, se a sentença não for condenatória, caso em que seria dispensável a emendatio) ao tipo penal previsto em lei.
Nos termos do artigo 383 do Código de Processo Penal, “o Juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em conseqüência, tenha de aplicar pena mais grave”.
Na redação da lei, deve-se entender por definição jurídica precisamente a capitulação ou classificação feita pelo autor na inicial, em cumprimento da exigência prevista no artigo 41 do Código de Processo Penal. Assim, dar definição diversa é alterar a capitulação, isto é, a conseqüência jurídica do fato imputado na denúncia ou queixa. O fato, evidentemente, há de permanecer o mesmo.
Não se exige, então, a adoção de quaisquer providências instrutórias, bastando a prolação da sentença com a capitulação jurídica (do fato) que parecer mais adequada ao Juiz. Nem mais, nem menos, sobretudo porque o réu não se defende da capitulação, mas da imputação da prática de conduta criminosa. Por isso, ainda que da nova definição jurídica resulte pena mais grave, não haverá qualquer prejuízo à defesa.
Embora possível, a emendatio libelli em segundo grau sofre as mesmas limitações pertinentes aos efeitos devolutivos dos recursos, em geral. Vige aqui a regra da proibição da reformatio in pejus, ou desfavorável que a decisão de primeira instância, em relação à impugnação ser mais da exclusivamente pelo recorrente.
Quando da emendatio libelli puder resultar modificação do rito procedimental, e, em prejuízo da ampla defesa, o caso será de nulidade do processo, exatamente porque essa razão (violação da ampla defesa) e não por suposta invalidade abstrata da emendatio.
Se da modificação de enquadramento jurídico do fato, resultar crime para o qual seja prevista a suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei n.º 9.099/95), deverá o Juiz abrir vista ao Ministério Público para a respectiva proposta. Caso a alteração da capitulação ensejar a modificação da competência do Juízo, para lá deverão ser encaminhados os autos.
A mutatio libelli encontra-se definida pelo artigo 384 do Código de Processo Penal, segundo o qual “encerrada a instrução probatória, se entender cabível nova definição jurídica do fato, em conseqüência de prova existente nos autos de elemento ou circunstância da infração penal não contida na acusação, o Ministério Público deverá aditar a denúncia ou queixa, no prazo de 05 (cinco) dias, se em virtude desta houver sido instaurado processo em crime de ação pública, reduzindo-se a termo o aditamento, quando feito oralmente”.
Enquanto na emendatio libelli a definição jurídica refere-se unicamente à classificação dada ao fato, na mutatio libelli, a nova definição será do próprio fato. Não se altera simplesmente a capitulação feita na inicial, mas a própria imputação do fato.
De acordo com a redação da lei processual penal, independentemente da pena, o novo delito somente poderá ser julgado se promovido o aditamento da acusação pelo órgão do Ministério Público. E, mais, que o Juiz ficará adstrito aos termos do aditamento (artigo 384, § 4º do CPP). A mutatio depende de aditamento, que somente será feito pelo Ministério Público, não se aplicando às ações privadas, a não ser à subsidiária da pública, instaurada em razão da inércia do parquet.
É importante salientar que nem sempre a alteração do elemento subjetivo, ou seja, do móvel ou motivo da conduta, poderá ser feita sem que, antes, promova-se alteração também da imputação. Isso porque poderá ocorrer que a modalidade de culpa revelada (em substituição do dolo imputado originariamente) exija descrição mais adequada da ação do agente. Nem sempre o que se alegou querido, desejado, doloso, portanto, pode subsumir-se, por exemplo, ao conceito de imperícia, embora, como regra, tal ocorra.
Na mutatio, o que ocorre não é a simples alteração do elemento subjetivo da conduta, mas a imputação em decorrência de novo fato. A espécie de desclassificação que dela surge não decorre também de simples juízo de adequação do fato à norma, mas de nova imputação fática.
A regra da mutatio libelli apresenta duas características, no âmbito dos atos judiciais. A primeira delas é o utilitarismo. Nessa modalidade, como não há substituição da acusação, mas a adição a ela de um fato ou circunstância agregado àquele fato principal já imputado, não haverá renovação integral da instrução e nem mesmo modificação da interrupção da prescrição. É dizer, na mutatio não há nova ação, mas aproveitamento daquela já instaurada, em razão de provas surgidas apenas na fase de instrução.
Com efeito, a inclusão de elemento ou circunstância novos não poderá significar a mudança completa da acusação. O fato novo, na realidade, deverá se agregar ao núcleo da conduta imputada, como ocorre no crime de furto ao qual acrescida a violência como fato novo, a nova definição passará a ser de roubo. O núcleo da ação, subtração da coisa, continuará o mesmo.
Excepcionalmente poderá até haver modificação do fato implicitamente contido na denúncia. Por exemplo: no crime de furto é possível apresentar, após a mutatio, o delito de apropriação indébita, mantendo-se, contudo, o núcleo da ação exercia sobre coisa certa e delimitada.
O aditamento da mutatio distingue-se do aditamento à denúncia. No caso da mutatio, o artigo 384, § 2º do Código de Processo Penal prevê a modalidade de instrução probatória que será adotada, tendo em vista tratar-se de alteração da acusação (mantido o núcleo da conduta), e não de nova imputação (fato integralmente novo). No caso do aditamento à denúncia, o que ocorrerá, salvo na hipótese do artigo 569 do Código de Processo Penal, referente à omissão de dados não essenciais, é a reabertura integral da instrução, incluindo novo interrogatório. E mais: enquanto na mutatio é feita na fase decisória, com o fim de aproveitar o processo em curso, sem o risco da prescrição, o aditamento pode ser realizado a qualquer momento, tudo a depender da conveniência procedimental e da inexistência da prescrição.
De outro lado, e por paradoxal que pareça, é possível apontar algumas vantagens para adoção da regra da mutatio libelli, até mesmo quanto aos interesses da defesa. É que a existência de um procedimento dessa natureza já justifica a elaboração de uma teoria da coisa julgada penal em bases absolutamente distintas da coisa julgada no horizonte cível.
E mais: uma teoria construída a partir do pressuposto do fato da realidade como fundamento da verdade e da certeza jurídica no âmbito penal, independentemente do acerto ou do equívoco cometido por ocasião da imputação feita na denúncia ou queixa.
A mutatio dependerá de iniciativa do Ministério Público. Diz o § 1º do artigo 384 do Código de Processo Penal que o Juiz, não concordando com o não aditamento, poderia submeter a questão ao órgão de revisão do Ministério Público, aplicando-se o artigo 28 do Código de Processo Penal. Se tal órgão mantiver a decisão do parquet, em última instância, o magistrado simplesmente julgará o processo nos termos da imputação feita, podendo daí resultar até a absolvição do réu, pela ausência de imputação típica.
Deve-se registrar que não caberá a mutatio para as ações privadas. Se no curso da ação penal privada com fundamento em estupro praticado com violência moral se constatasse, na instrução do feito, a existência de violência física, real e, como não há previsão de aplicação da mutatio, a alternativa seria a intimação do Ministério Público para o aditamento à queixa, com oferecimento da denúncia, se ainda não prescrita a ação.
Promovida a mutatio libelli, aditada então a denúncia ou queixa, o Juiz dará vista à defesa pelo prazo de cinco dias, ao final dos quais admitirá ou não o aditamento. Se aceito, designará no prazo de cinco dias o prosseguimento da audiência de instrução e julgamento, facultando-se à acusação e à defesa a inquirição de mais três testemunhas, tenham ou não sido ouvidas na ação.
Consta do artigo 384, § 3º do Código de Processo Penal que a emendatio libelli também se aplicaria na fase da mutatio.
A partir das provas colhidas na investigação e da possibilidade de aplicação da mutatio, após o aditamento pelo Ministério Público, o Juiz poderá reconhecer sua incompetência e enviar os autos ao Juízo competente.
Por força do princípio da identidade física do Juiz, acolhido no artigo 399, § 2º do Código de Processo Penal, deverá o magistrado, nas hipóteses de incompetência relativa, surgida com o aditamento, prorrogar sua competência e sentenciar o processo, ainda que possa reconhecer nele (Juiz) poderes para afirmação, de ofício, de semelhante incompetência (relativa), com fundamento no artigo 109 do Código de Processo Penal.
Já nos casos de incompetência absoluta a solução poderá ser distinta. Surgida nova definição de crime pelo aditamento da mutatio, e que implique a modificação do Juiz natural, deverá o magistrado encaminhar os autos ao Juízo competente. Neste ponto poderá surgir um problema. Se do aditamento puder surgir nova definição jurídica do fato e cuja conseqüência seja a alteração do Juiz natural, não poderá o órgão do Ministério Público oficiante promover o aditamento da peça acusatória, exatamente por faltar-lhe atribuição constitucional para a causa. Se ambos, Juiz e Ministério Público, estiverem de acordo, não haverá empecilhos: os autos serão encaminhados ao Juízo e ao órgão do Ministério Público competentes. Caso não haja consenso, se o parquet não aditar sob tal fundamentação, a única solução possível, então, seria a aplicação do artigo 28 do Código de Processo Penal, resultando no chamado arquivamento indireto. Já se for o Juiz que não concordar com a modificação de competência promovida pela mutatio, no aditamento, deverá rejeitá-lo e prosseguir com o julgamento.
A regra do artigo 384 do Código de Processo Penal somente poder ser aplicada em primeira instância. Admitir o contrário seria permitir que o Tribunal conhecesse de matéria não submetida à apreciação de primeiro grau, implicando, portanto, supressão de instância (Enunciado n.º 453 da Súmula do STF).
Diz o artigo 386 do Código de Processo Penal que o Juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: estar provada a inexistência do fato; não haver prova da existência do fato; não constituir o fato infração penal; estar provado que o réu não concorreu para a infração penal; não existir prova de o réu ter concorrido para a infração penal; existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena ou mesmo fundada dúvida sobre sua existência; não existir prova suficiente para sua condenação.
Note-se que aquilo que o Código chama de causa diz respeito à verdadeira motivação do julgado, na medida em que se presta a fundamentar a decisão de absolvição, essa, sim, indicativa da parte efetivamente dispositiva da sentença.
Para efeitos penais, é a decisão de absolvição que, passada em julgado, tem como efeito a preclusão de toda e qualquer via impugnativa de seu conteúdo, impedindo a instauração de nova persecução penal sob o mesmo fundamento de fato. Por isso, ainda que eventualmente a causa ou motivação da decisão absolutória não se enquadre perfeitamente nas hipóteses ali elencadas, como é o caso daquela que absolve sumariamente o réu em razão da extinção da punibilidade, ela não impedirá a coisa julgada, com todos os consectários a ela inerentes.
Aliás, cumpre registrar que, a partir da Lei n.º 11.690/2008, encontra-se inserida em nosso ordenamento jurídico a negativa de autoria, o que ocorrerá quando o Juiz afirmar, como motivação da absolvição, estar provado não ser o réu o autor da infração penal.
Ainda que o Ministério Público requeira a absolvição do acusado em alegações finais, o Juiz poderá proferir sentença condenatória, bem como reconhecer agravantes ou atenuantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
Parte da doutrina entende que a autorização do reconhecimento ex officio de agravantes não alegadas é inaceitável, quando se tratar de agravantes (de fatos) mencionados no artigo 62 do Código Penal, quando não constantes da peça acusatória, e sobre o quais, por essa razão, não se teria manifestado a defesa. A agravante do artigo 61, inciso I do Código Penal (reincidência) diz respeito à situação jurídica, daí porque pode ser reconhecida de ofício. As demais, ou são constitutivas, ou são qualificadoras de tipos penais, razão pela qual também não podem ser reconhecidas de ofício. Do mesmo modo ocorrerá com as qualificadoras e causas de aumento da pena constantes da parte especial do Código Penal ou que estejam agregadas ao respectivo tipo penal na legislação não codificada.
Além de revogar a antiga disposição relativa à periculosidade, a Lei n.º 11.719/2008 estabeleceu o dever de o Juiz incluir na condenação um valor mínimo para a reparação dos danos causados pela infração, a serem fixados segundo os prejuízos sofridos pelo ofendido. Naturalmente que não se trata de fixação do valor total para a recomposição patrimonial. Aqui, atenta-se apenas para o valor mínimo que se revele suficiente para recompor os prejuízos já evidenciados na ação penal. Eventuais acréscimos da responsabilidade civil, sob a rubrica dos lucros cessantes e eventuais danos morais, serão fixados na instância cível.
A fixação do valor mínimo para reparação dos danos não encerra uma cumulação de pedidos, cuida-se, ao contrário, de ampliação da regra da obrigação de reparação do dano prevista no artigo 91 do Código Penal, devendo ser observado apenas o valor sobre o qual não paire a mínima dúvida quanto à sua origem (do dano), a sua titularidade (o acusado) e sua liquidez. Assim, observadas as condições mencionadas, relativamente à exigência de contraditório e de ampla defesa, não se questiona a validade da aludida norma.
Com a revogação expressa do artigo 594 do Código de Processo Penal, a nova redação de seu artigo 387 exige ordem escrita e fundamentada do Juiz para: a) manutenção da prisão anteriormente decretada; b) a decretação da prisão preventiva daquele que se encontra solto; c) o conhecimento da apelação que vier a ser manejada, independentemente de recolhimento do réu ao cárcere.
O princípio constitucional da ampla defesa exige a intimação pessoal do acusado em qualquer hipótese, como o que estaria revogado o previsto no inciso II do artigo 392 do Código de Processo Penal, que permite a intimação por intermédio do defensor. Pelas mesmas razões, entende-se que a intimação deverá ser feita pessoalmente ao réu também no caso do inciso III do citado artigo, pelo que restaria inaplicável a restrição ali contida. Na hipótese de não ser encontrado o acusado solto, independentemente da natureza da infração e de se tratar, ou não, de defensor constituído, a intimação do réu deverá ser feita por meio de edital. O defensor do acusado sempre será intimado da sentença, pessoalmente, ou por edital se não for encontrado.
No que se refere à intimação da decisão de pronúncia nos procedimentos do Tribunal do Júri, que, tecnicamente não deve ser tratada como sentença, é importante registrar que a intimação será sempre feita ao réu pessoalmente, nos termos do artigo 420, inciso I do Código de Processo Penal.
O prazo para impugnação recursal da sentença, incluindo os embargos de declaração, terá início a partir da última impugnação.
A coisa julgada não é um efeito, mas uma qualidade da decisão judicial da qual não caiba mais recurso. É a imutabilidade da sentença nela contida.
A sentença condenatória passada em julgado pode ser rescindida a qualquer tempo, por meio da ação revisão criminal regulada no artigo 621 e seguintes do Código de Processo Penal.
O que efetivamente legitima a eficácia preclusiva da coisa julgada, cujo efeito é impedir novas investidas acusatórias contra o réu absolvido, é a necessidade de se exercer um rígido controle da atividade estatal persecutória, diante das graves conseqüências que normalmente derivam da só existência de uma imputação formalizada da prática de uma conduta delituosa, no âmbito dos interesses inerentes à dignidade humana, em todas as suas dimensões.
A vedação da revisão pro societate, que não é outra coisa senão a conseqüência prática dos efeitos da coisa julgada penal, cumpre exatamente essa função de controle, na medida em que impõe aos órgãos estatais responsáveis pela acusação criminal redobradas cautelas no exercício de suas funções.
Há decisões judiciais que, quando passadas em julgado, impedem a rediscussão da matéria unicamente em relação ao contexto em que foi proferida especificamente no processo em cujo curso foi prolatada. Fala-se, então, em coisa julgada formal. Por exemplo: a decisão que rejeita a denúncia por ausência dos pressupostos processuais ou de qualquer das condições exigidas na lei para o exercício da ação penal.
Atualmente, ressalvada a hipótese dos Juizados Especiais Criminais, não mais se rejeita a denúncia ou queixa por atipicidade manifesta do fato. Agora, com a redação do artigo 397 do Código de Processo Penal, tanto a atipicidade manifesta, quanto a extinção da punibilidade serão objeto de absolvição sumária e não mais rejeição da denúncia. Trata-se de coisa julgada tipicamente material, de modo a impedir a reapreciação da matéria em todo e qualquer processo, presente ou futuro. A decisão será, pois, de mérito.
O mesmo ocorrerá com a decisão que, atendendo a requerimento do Ministério Público, arquiva o inquérito com fundamento na extinção da punibilidade do delito, pela ocorrência da prescrição ou qualquer outra das causas previstas em lei. Embora não haja aqui apreciação do mérito, ou seja, embora, em regra, não se examine a ocorrência efetiva do fato, nem se o réu seria realmente o seu autor, tal decisão estará solucionando a pretensão penal, no ponto em que afirma expressamente a ausência de interesse estatal na punibilidade do delito, ainda que acaso existente.
Em relação aos limites subjetivos da coisa julgada, segundo dispositivo constitucional expresso, a pena não pode passar da pessoa do condenado, aplicando-se o que se convencionou a chamar de princípio da intranscendência da ação penal. Já em relação aos autores, mereceria registro a participação do particular (ofendido) nas ações privadas (como querelante) e nas ações públicas (como assistente), dado que o Ministério Público, seja como autor, seja quando intervém como custos legis esgota sua atuação no âmbito penal, no que respeita à execução da pena, somente atuando na instância civil, para fins de execução da decisão penal, enquanto não estiver funcionando a Defensoria Pública local.
Em relação ao ofendido, tanto a sentença penal condenatória quanto a absolutória poderão estender os seus efeitos a ele, independentemente de sua participação efetiva no processo (na ação pública), nos limites previstos em lei. O mesmo ocorre em relação ao réu da ação penal, cuja coisa julgada poderá levar seus efeitos (da parte dispositiva e da respectiva causa ou motivação) também para a instância civil, havendo a possibilidade, inclusive, de se impedir a reabertura da discussão sobre matéria decidida na instância penal também para terceiros (responsáveis civis) quando determinadas questões estiverem decididas no Juízo criminal.
A atividade estatal persecutória há de se desenvolver sob rígidos padrões de eficiência, diante do risco de afetação ao patrimônio moral de quem se achar submetido à acusação da prática de infração penal. Por isso, a imputação penal deve coincidir o mais completamente possível com a realidade histórica, ou seja, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente realizados no tempo.
Acrescida à possibilidade de aditamento da denúncia pelo Ministério Público e pelo querelante (desde que ainda dentro do prazo decadencial), a qualquer tempo antes da fase decisória, impõe-se a conclusão de que o que faz coisa julgada no Juízo criminal é o fato como efetivamente realizado, independentemente do acerto ou equivoco na sua imputação. Em outras palavras: a realidade histórica.
Ainda que o fato narrado na denúncia, sobre o qual se desenvolveu toda a atividade probatória, não se subsuma efetivamente àquele da realidade histórica, uma vez proferida a sentença definitiva nunca mais poderá instaurar nova persecução penal sob o mesmo fundamento, ou seja, sobre o mesmo fato.
A coisa julgada abarcará o núcleo, bem como quaisquer que tenham sido, na realidade, as suas circunstâncias e/ou circunstâncias elementares. Fala-se aqui em núcleo central com a finalidade de identificar o elemento comum nas diversas definições jurídicas passíveis de incidência sobre o mesmo fato da realidade.
Nem mesmo se poderia pensar em nova ação penal na qual se imputasse unicamente a prática de circunstâncias elementar integrante do tipo penal efetivamente ocorrido.
O núcleo da conduta funcionaria, assim, como o dado da realidade efetivamente julgado. As suas circunstâncias e/ou circunstâncias elementares estariam cobertas pela coisa julgada como desdobramentos lógicos-dedutivos do julgamento, ou seja, pela preclusão lógica dos demais fatos cuja ocorrência dependeria da existência do núcleo então julgado.
A ação de revisão criminal é somente manejável pelo réu em seu favor, é plenamente justificada pelos compromissos humanitários que informam o Estado Democrático de Direito. Não há mesmo como se rejeitar, abstrata e peremptoriamente, a possibilidade de qualquer instrumento que se revele apto a demonstrar a inocência de um condenado.
A decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido de se permitir a revisão da decisão extintiva da punibilidade, fundada em certidão de óbito falsa, pode ser perfeitamente explicada pelo princípio da revisão pro Estado. Ora, se a certidão foi criminosamente falsificada pelo interessado, não haveria razão alguma para não se a admitir a revisão do julgado, pois não teria havido sentença absolutória, como se exige para a formação da coisa julgada penal e como se dispõe expressamente do Pacto de San Jose da Costa Rica. Ademais, não teria havido negligência, nem ausência de serviço que pudesse ser imputada ao Estado, como ocorreria, por exemplo, em ação penal na qual o acusado seqüestrasse as testemunhas, logrando obter, assim, a absolvição.




Fonte: Curso de Processo Penal. Eugênio Pacelli de Oliveira.