quinta-feira, 30 de julho de 2009

Interpretação Constitucional

A hermenêutica jurídica é um domínio teórico, especulativo, cujo objeto é a formulação, o estudo e a sistematização dos princípios e regras de interpretação do Direito. A interpretação é a atividade prática de revelar o conteúdo, o significado e o alcance de uma norma, tendo por finalidade fazê-la incidir em um caso concreto. A aplicação de uma norma jurídica é o momento final do processo interpretativo, sua concretização, pela efetiva incidência do preceito sobre a realidade de fato.

As Constituições não costumam trazer regras sobre a sua própria interpretação ou para a do direito dela derivado. No sistema brasileiro, são escassas as regras de interpretação positivadas em texto legal. As existentes concentram-se na Lei de Introdução ao Código Civil, que, ao lado de normas sobre vigência das leis, direito intertemporal e direto internacional privado, consagrou apenas duas proposições afetas ao tem: uma sobre integração (art. 4º - quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito) e outra de cunho teleológico (art. 5º - na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum). A doutrina converge no sentido de atribuir às normas sobre interpretação cunho materialmente constitucional.

A posição de Konrad Hesse que nega o caráter de interpretação à atividade de revelar o conteúdo da norma constitucional quando não se suscitam dúvidas (in claris cessat interpretatio) há de ter, tão-somente, o sentido de reconhecimento de que a zona de clareza existente na lei enfraquece a atividade do intérprete, porém não o condena a uma acrítica interpretação literal.

O objeto da interpretação constitucional é a determinação dos significados das normas que integram a Constituição (no sentido formal e material), podendo assumir duas modalidades: a) a de aplicação direta da norma constitucional para uma situação jurídica; b) de uma operação de controle de constitucionalidade, em que se verifica a compatibilidade de uma norma infraconstitucional com a Constituição.

Conquanto seja uma lei e como tal deve ser interpretada, a Constituição possui quatro peculiaridades: I) superioridade hierárquica (confere o caráter paradigmático e subordinante de o todo o ordenamento); II) natureza de linguagem (normas com maior grau de abstração e menor densidade jurídica – ex. conceitos de igualdade, moralidade, bem comum); III) conteúdo específico (presença de normas programáticas, que visam estabelecer princípios e orientar programas de ação); IV) caráter político (quanto à origem, ao objeto e aos resultados de sua aplicação).

O poder constituinte é revolucionário em suas raízes históricas e político na sua essência. A despeito disso, a Constituição materializa a tentativa de conversão do poder político em poder jurídico (juridicização do fenômeno político). Dessa forma, não se pode neutralizar inteiramente a interferência de fatores políticos na interpretação constitucional. A racionalidade total, como bem atentou Konrad Hesse, é inatingível no Direito Constitucional, busca-se a “racionalidade possível”.

A interpretação da Constituição é uma tarefa jurídica e não política. Assim, se sujeita aos cânones da racionalidade, objetividade e motivação exigíveis das decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Uma Corte Constitucional não deve ser indiferente às conseqüências políticas de duas decisões, inclusive para impedir resultados injustos ou danosos ao bem comum. Entretanto, somente pode agir dentro dos limites e das possibilidades abertas pelo ordenamento. Contra o direito o juiz não deve decidir jamais. Em caso de conflito entre o direito e a política, deve o magistrado ficar ao lado do direito.

A interpretação das normas jurídicas irradia duas correntes, a dos subjetivistas e a dos objetivistas. Pela primeira corrente, busca-se identificar a mens legislatoris, enquanto os objetivistas almejam a mens legis. Atualmente, o debate encontra-se superado, pois há uma convergência quase total para a corrente objetivista, máxime se considerado o entendimento do Tribunal Constitucional alemão. Deveras, uma vez posta em vigor a lei se desprende do complexo de pensamentos e tendências que animaram seus autores e isso tanto é mais verdade quanto mais se distancie no tempo o início de vigência da lei. Para os objetivistas, a vontade do legislador não deve ser inteiramente desconsiderada, contudo, não é determinante e deve concorrer com outros fatores de igual relevância.

Vale registrar o ressurgimento nos Estados Unidos da discussão entre originalistas e não-originalistas. Fundando na tese de que o papel do intérprete da Constituição é buscar a intenção original (the original intent) dos elaboradores da Carta, os originalistas abstêm-se de impor suas próprias crenças ou preferências. Dessa forma, o ativismo judicial, as construções jurídicas para acudir situações não contempladas expressamente pela Constituição, seriam antidemocráticas. Verifica-se, portanto, que a crença originalista reveste-se de caráter eminentemente conservador.

De acordo com os métodos clássicos, a interpretação constitucional, quanto à sua origem, pode ser legislativa, administratiava e judicial. Alguns autores apontam a interpretação doutrinária e a autêntica. Quanto aos resultados ou à extensão, a interpretação pode ser declaratória, extensiva ou restritiva. Quanto aos métodos (elementos de interpretação), ela será gramatical, histórica, sistemática e teleológica.

Nesse particular, merece destacar o fato de que a interpretação judicial é final e vinculante para os outros Poderes. Apesar de citada, a possibilidade de interpretação autêntica é controvertida, devendo ser registrado que a doutrina brasileira e portuguesa a admite, desde que seja feita pelo órgão competente para a reforma constitucional, com observância do mesmo procedimento desta.

A respeito da interpretação constitucional tido como um processo aberto, não se circunscrevendo aos órgãos públicos, merece destaque a lição de Peter Härble:

“Todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indiretamente ou, até mesmo, diretamente, um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico Como não são apenas os intérpretes que vivem a norma, não detêm eles o monopólio da interpretação da Constituição” (in Hermnenêutica Constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e procedimental da Constituição, 1997, p. 42)

Quando exista congruência plena entre as palavras da norma e o sentido que lhes é atribuído pela razão, quando coincidem o elemento gramatical e o elemento lógico, a interpretação será declarativa (cum in verbis nulla ambiguitas est, non debet admitti voluntas quaestio). Todavia, havendo incongruência entre a interpretação lógica e a gramatical, caberá ao intérprete operar uma retificação do sentido verbal na conformidade e medida do sentido lógico. A imperfeição linguistica pode manifestar-se de duas formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer (impõe-se uma interpretação restritiva, lex plus scripsit, minus voluit), ou disse menos quando queria dizer mais (será necessária interpretação extensiva, lex minus scripsit quam voluit).

A doutrina, com certo consenso, entende que se interpretam restritivamente as normas que instituem as regras gerais, as que estabelecem benefícios, as punitivas em geral e as de natureza fiscal. Comportam interpretação extensiva as normas que asseguram direitos, estabelecem garantias e fixam prazos.

A interpretação constitucional é um fenômeno múltiplo sobre o qual exercem influência: a) o contexto cultural, social e institucional; b) a posição do intérprete; c) a metodologia jurídica.

Os métodos clássicos de interpretação surgem com Savigny, fundador da Escola Histórica do Direito, sendo ele o responsável por distinguir os métodos em: gramatical (se faz a partir do texto da norma), sistemático (a partir de sua conexão), histórico (a partir do processo de criação) e, posteriormente, em teleológico (a partir de sua finalidade). Nenhum método será absoluto, os diferentes meios empregados ajudam uns aos outros, combinando-se e controlando-se reciprocamente.

A tradição romano-germânica desenvolveu algumas diretrizes no processo de interpretação da norma. Em primeiro lugar, a atuação do intérprete deve conter-se sempre dentro dos limites e possibilidades do texto legal. A interpretação gramatical não pode ser inteiramente desprezada (interpretação conforme a Constituição). Não é possível distorcer ou ignorar o sentido das palavras para chegar a um resultado que delas esteja inteiramente dissociado. Em segundo lugar, os metidos objetivos, como o sistemático e o teleológico, têm preferência sobre o método tido como subjetivo, que é o histórico. A análise histórica desempenha um papel secundário, suplementar na revelação do sentido da norma.

Uma das singularidades das normas constitucionais é o seu caráter sintético, esquemático, de maior abertura. Disso resulta que a linguagem do texto constitucional é mais vaga, com o emprego de termos polissêmicos (tributos, servidores, isonomia) e conceitos indeterminados (assuntos de interesse local, dignidade da pessoa humana). Todavia, a mesma linguagem que confere abertura ao intérprete há de figurar como limite máximo de sua atividade criadora. As palavras têm sentidos mínimos que devem ser respeitados, sob o risco de se perverter o seu papel de transmissoras de idéias e significados.

É a interpretação gramatical ou literal que delimita o espaço dentro o qual se vai operar, embora isso possa significar zonas hermenêuticas muito extensas. Deve-se partir da premissa de que todas as palavras do texto constitucional têm uma função e um sentido próprios. Não há palavras supérfluas na Constituição, nem se deve partir do pressuposto de que o constituinte incorreu em contradição ou obrou com má técnica. Eventuais equívocos devem ser remediados com a busca do espírito da norma e o recurso a outros métodos de interpretação. O intérprete deve fiar-se na premissa segundo a qual quando a nova Constituição mantém em algum dispositivo a mesma linguagem da antiga, presume-se que não desejou modificar a interpretação anterior.

A interpretação histórica consiste na busca do sentido da lei através dos precedentes legislativos, dos trabalhos preparatórios e da ocasio legis. Esse esforço retrospectivo para revelar a vontade histórica do legislador pode incluir não só a revelação de suas intenções quando da edição da norma como também a especulação sobre qual seria a sua vontade se ele estivesse ciente dos fatos e idéias contemporâneos. Apesar de desfrutar de certa reputação em países que adotam o common law, o elemento histórico tem sido o menos prestigiado na moderna interpretação levada e efeito nos sistemas jurídicos da tradição romano-germânica.

Uma norma constitucional, vista isoladamente, pode fazer pouco sentido ou mesmo estar em contradição com outra. Não é possível compreender integralmente alguma coisa sem entender suas partes, assim como não é possível entender as partes de alguma coisa sem a compreensão do todo. A visão estrutural, a perspectiva de todo o sistema, é vital. O direito objetivo não é um aglomerado aleatório de disposições legais, mas um organismo jurídico, um sistema de preceitos coordenados ou subordinados, que convivem harmonicamente.

A interpretação sistemática é fruto da idéia de unidade do ordenamento jurídico. Através dela, o intérprete situa o dispositivo dentro do contexto normativo geral e particular, estabelecendo as conexões internas que enlaçam as instituições e as normas jurídicas. No centro do sistema, irradiando-se para todo o ordenamento, encontra-se a Constituição, porque a ela se reconduzem todas as normas no âmbito do Estado. A Constituição em si, em sua dimensão interna, constitui um sistema. A idéia de lei fundamental cunha o princípio da unidade da Constituição. A Carta deve ser interpretada de modo harmônico, onde nenhum dispositivo deve ser considerado isoladamente. A convivência harmônica entre a ordem jurídica infraconstitucional e a Constituição gera o princípio da continuidade da ordem jurídica.

As normas devem ser aplicadas atendendo, fundamentalmente, ao espírito e à sua finalidade. A interpretação teleológica procura revelar o fim da norma, o valor ou o bem jurídico visado pelo ordenamento com a edição de dado preceito. A ratio legis é uma “força vivente móvel” que anima a disposição e a acompanha em toda a sua vida e desenvolvimento. A finalidade da norma, portanto, não é perene, e pode evoluir sem modificação de seu texto. A Constituição e as leis visam acudir certas necessidades e devem ser interpretadas no sentido que melhor atenda à finalidade para a qual foi criada.

Há alguma controvérsia acerca da existência de lacunas constitucionais. Argumenta-se que onde o constituinte foi omisso é porque não quis cuidar da matéria, relegando-a à legislação infraconstitucional. No entanto, admitida a possibilidade da existência de lacuna constitucional, torna-se necessário recorrer aos dois principais meios de integração da ordem jurídica: a analogia e o costume.

Em matéria constitucional, não será possível buscar a integração analógica na legislação infraconstitucional. A solução do vazio normativo deve ser buscada nos princípios da própria Constituição. A analogia constitucional não cria direito nem coloca o intérprete na posição de legislador constituinte. Através dela se vai buscar no sistema constitucional um direito que já existe, em estado latente. Registre-se que não se admite analogia em matéria de direito penal e tributário, em obediência aos princípios constitucionais.

Não se confundem as lacunas (omissões não previstas) com as omisões legislativas (omissões previstas e dependentes de complementação do legislador ordinário). Por fim, deve ainda ser ressaltada a presença do silêncio eloqüente, conforme leciona o Ministro Barbosa Moreira, in verbis:

“Sucede, porém, que só se aplica a analogia quando, na lei, haja lacuna, e não o que os alemães denominam ‘silêncio eloquente’ (beredtes Schweigen), que é o silêncio que traduz que a hipótese contemplada é a única a que se aplica o preceito legal, não se admitindo, portanto, aí o emprego da analogia”

O costume, ensina a doutrina clássica, é a primeira fonte subsidiária do direito. Nele se destacam dois elementos: o externo ou objetivo, que é o uso, a repetição habitual de um dado comportamento, e o interno ou subjetivo, que é a opinio necessitatis, que se traduz na convicção de que aquele comportamento é necessário e obrigatório. Nos sistemas constitucionais escritos e rígidos, como o brasileiro, o costume não é fonte originária de qualquer norma constitucional. A doutrina aceita, sem maiores reservas, o costume secundum constitutionem e praeter constitutionem, mas rejeita, por inadmissível, o costume constitucional contra constitutionem.

A interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação de seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes.

Essa interpretação evolutiva se caracteriza, muitas vezes, através de normas constitucionais que se utilizam de conceitos elásticos ou indeterminados, como os de autonomia, função social da propriedade, redução das desigualdades etc., que podem assumir significado variados no tempo.

Existem alguns precedentes interessantes de aplicação da interpretação evolutiva da Constituição, pela intervenção criativa dos tribunais. Dentre elas se destaca a doutrina brasileira do habeas corpus, consubstanciada na extensão do instituto a outras situações de ilegalidade e abuso de poder que não aquelas relativas à liberdade de locomoção. Foi igualmente por construção pretoriana que se criaram regras de proteção à mulher, notadamente a que vivia maritalmente com um homem, sem ser casada.

A interpretação evolutiva, sem reforma da Constituição, há de encontrar limites. O primeiro deles é representado pelo próprio texto, pois a abertura da linguagem constitucional e a polissemia de seus termos não são absolutos, devem estancar diante de significados mínimos. Além disso, também os princípios fundamentais do sistema são intangíveis, assim como as alterações informais introduzidas pela interpretação não poderão contravir os programas constitucionais.

Fonte: Interpretação e Aplicação da Constituição. Luís Roberto Barroso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário