domingo, 18 de julho de 2010

Relação Jurídica de Consumo

O objetivo do Código de Defesa do Consumidor - CDC, ao proteger o consumidor, não é a simples proteção pela proteção em si, mas a busca permanente do equilíbrio do contrato entre o consumidor e o fornecedor de bens e serviços.


O CDC nada mais é do que uma tentativa de reequilibrar essa relação, tendo em vista a posição econômica favorável do fornecedor; impondo-se a necessidade de um equilíbrio mínimo em todas as relações contratuais de consumo.


Para que se dê a proteção do CDC, não basta simplesmente adquirir bens e serviços no mercado. Essa proteção só vai ser acionada se ocorrer a chamada relação de consumo. Relação esta onde deve estar presente um consumidor, como destinatário final de bens e serviços, e um fornecedor, que com habitualidade e profissionalidade fornece bens e serviços ao mercado.


A relação de consumo vai comportar dois elementos fundamentais: o subjetivo e o teleológico. O subjetivo manifesta-se na qualidade dos partícipes desta relação. É que necessariamente deverão estar envolvidos um fornecedor e um consumidor. Já o elemento teleológico se manifesta no fim da aquisição do bem ou serviço, qual seja, a destinação final. A doutrina fala também na presença de um elemento objetivo, que seria o produto ou serviço.


A lei brasileira procura definir juridicamente a pessoa do consumidor no artigo 2º do CDC: “consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”. Pela leitura do artigo, depreende-se que não basta que o cidadão retire o produto do mercado, importa que ele o utilize como destinatário final. De plano, o comerciante não pode ser considerado consumidor, já que adquire o produto para a sua revenda, sendo, portanto, um intermediário, e não um destinatário final; destinatário este que vai ser justamente a pessoa a quem ele vai revender o bem.


Quando se adquire um produto ou serviço para uso profissional, não há como estar presente a destinação econômica. A ausência desta destinação revela-se na finalidade da aquisição do bem ou serviço, ou seja, um fim profissional. Aqui, está presente uma atividade econômica com claro intuito de lucro. E o que é um fim não profissional? É a aquisição de qualquer produto ou serviço para uso pessoal, sem qualquer objetivo profissional.


No que concerne à possibilidade de a pessoa jurídica ser considerada consumidora, no Brasil, em razão da previsão no texto legal chega-se a um impasse. Pode a pessoa jurídica ser vulnerável? Teria sentido uma intervenção brutal do Estado no contrato firmado por uma grande empresa? O Código não responde literalmente a essas indagações. Tal resposta está sendo amadurecida no debate doutrinário e jurisprudencial. Duas correntes doutrinárias, os finalistas e os maximalistas, apresentam respostas diferentes para essas questões.


Os maximalistas entendem que consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire bens. Não importa que seja economicamente forte ou não, se adquiriu um produto ou serviço para utilizá-lo em sua atividade ou cadeia produtiva.


Para os finalistas é preciso fazer uma interpretação teleológica do conceito de destinação final, aproximando-o do conceito econômico de consumidor, que o qualifica como a ponta final da produção econômica do bem ou serviço, colocando fim à sua circulação no mercado. Daí ser necessário o desdobramento da destinação final em destinação fática e econômica.


A aquisição de produtos e serviços relacionados à atividade-fim da empresa a exclui do conceito de consumidora, bem como a aquisição de qualquer bem, fora da atividade-fim da pessoa jurídica, a inclui no conceito de consumidora.


A pessoa jurídica, em regra, só poderia ser considerada consumidora quando estivesse adquirindo um bem fora da sua atividade-fim. Evidente, então, que ela goza no mínimo da presunção de vulnerabilidade técnica, quando adquire um bem fora de sua atividade-fim. Pode não haver propriamente a sua vulnerabilidade econômica, mas ela pode vir a celebrar um mau contrato em face da falta de conhecimentos técnicos, por exemplo. Parece que a pessoa jurídica só deve ser chamada a demonstrar sua vulnerabilidade quando ela efetivamente requer a proteção não como consumidora stricto sensu, do artigo 2º, mas como consumidora equiparada do artigo 29. Isto porque o CDC, em nenhum de seus artigos, vincula à destinação final qualquer outro requisito.


É certo que o CDC, no artigo 4º, reconhece a vulnerabilidade do consumidor, e tal reconhecimento norteia toda política de proteção ao destinatário final de bens e serviços. Entretanto, esse reconhecimento não pode ser apenas para o consumidor pessoa física ou não profissional, quando o legislador não excepcionou a vulnerabilidade.


O CDC traz ainda mais três conceitos de consumidor, todos por equiparação, presentes no parágrafo único do artigo 2º e nos artigos 17 e 29. Consoante o parágrafo único do artigo 2º, “equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo”. No artigo 17, diz que, para efeito da responsabilidade pelo fato do produto ou serviço, “equiparam-se a consumidores todas as vítimas do evento”. Já o artigo 29 do CDC vai equiparar a consumidores, para efeito de merecer proteção contra as práticas comerciais abusivas, todas as “pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas”.


Pode-se dizer que contra os abusos cometidos pelo contrato de massa, que é o contrato de adesão, o legislador deu a consumidor um direito coletivo de “massa”.


Veja-se que com a concepção coletiva não só do direito material do parágrafo único do artigo 2º, mas também do direito processual, conforme se infere do artigo 81 e seguintes do CDC, uma simples ação intentada por qualquer dos legitimados do artigo 82 seria suficiente para a defesa de milhões de consumidores. Essa defesa pode amparar qualquer pretensão seja da simples retirada do produto do mercado seja do direito à indenização por danos morais e materiais em decorrência.


Ressalte-se, entretanto, que a equiparação do parágrafo único do artigo 2º impõe uma condicionante: que essa coletividade “haja intervindo nas relações de consumo”.


Aqui, então, o CDC não está tratando do consumidor em potencial, conforme faz no artigo 29, mas do consumidor stricto sensu ou standard do caput do artigo 2º, aquele que já adquiriu ou utilizou produtos ou serviços como destinatário final.


No artigo 29 do CDC, justamente por ser equiparado a consumidor, não é exigida a efetiva aquisição de bens e serviços. O simples fato de poder vir a contratar, estando exposto a uma prática abusiva, e suficiente para merecer uma proteção até mesmo por meio das chamadas ações coletivas, de que trata do artigo 81 do CDC.


A equiparação deve buscar a origem, a gênese da relação de consumo. De vários artigos do CDC depreende-se que não é necessário haver a relação jurídica contratual para que haja a proteção. Quando o legislador fala em consumidor equiparado, ele também está se referindo ao cidadão que não participou da relação jurídica originária e, ainda assim, tem a proteção legal.


Para proteger de fato a maioria social, evitando a exposição às práticas abusivas, o legislador, dentro de uma conduta preventiva, equipara ao consumidor até mesmo quem não consumiu, mas que poderá ir ao mercado de consumo adquirir um bem, ou seja, o consumidor potencial.


O CDC emprestou vínculo jurídico a qualquer tipo de negociação preliminar. O artigo 30 deixa bem claro essa vinculação, ao dispor que “toda informação ou publicidade, suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor a que fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.


O artigo 29 não permite a proteção, como equiparado, apenas o consumidor potencial, mas também a quem contratou a aquisição de bens e serviços, sem ser destinatário final. Este dispositivo também é a porta de entrada para a proteção contratual da pessoa jurídica, que não se qualifica como consumidor stricto sensu. Por essa equiparação, o CDC poderia ser perfeitamente aplicável ao contrato celebrado entre dois comerciantes.


Importante frisar que a demonstração da vulnerabilidade só se justifica para que a pessoa jurídica obtenha a proteção do CDC, como consumidora equiparada do artigo 29. É quando ela demonstraria que, mesmo sendo apenas destinatária fática do bem, acabou por celebrar um mau contrato com seu fornecedor, por conta de quaisquer das vulnerabilidades de que pode ser vítima: a econômica, a técnica ou a jurídica.


Outro conceito de consumidor equiparado está no artigo 17 do CDC, que, para efeito de responsabilização civil do fornecedor por fato do produto ou serviço, diz que “equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento”.


O CDC, ao adotar a responsabilidade objetiva, ou seja, a responsabilização sem culpa, protege o consumidor potencial que não adquiriu diretamente o produto, haja vista o fato de que a responsabilidade objetiva só seria afastada se provado que o dano ocorreu por culpa exclusiva da vítima.


Com o citado artigo, o CDC expandiu a abrangência do Código para aqueles que são consumidores, mas que não participam direta ou ativamente da relação negocial. Tal fato, pela redação do CDC é irrelevante, abrangendo a todos que possam usufruir dos bens ou serviços, tenham participado ou não da relação contratual.


Segundo o artigo 3º do CDC, fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou a prestação de serviços.


O CDC, na realidade, quis enquadrar como fornecedor todo aquele que “desenvolva atividades” econômicas no mercado. Da conjugação da profissionalidade com a habitualidade encontra-se juridicamente o fornecedor. Assim como não basta apenas a profissionalidade, a presença isolada da habitualidade juridicamente é irrelevante para o conceito de fornecedor.


Fornecedor é aquele que oferece ao mercado, habitualmente, bens e serviços visando ao lucro, que participa da cadeia produtiva, ou pratica alguns atos dentro desta cadeia, seja produzindo diretamente ou distribuindo, ou simplesmente intermediando o fornecimento de bens ou serviços. O que vai importar para o conceito de fornecedor é que ele esteja oferecendo bens e serviços, com habitualidade e profissionalidade, ao mercado.


Quanto ao fator remuneração, tal vai caracterizar tanto o fornecedor de produtos, como de serviços. Até porque os contratos sujeitos ao CDC, são, em regra, onerosos; a profissionalidade pressupõe onerosidade, afastado os contratos puramente gratuitos, onde não há intuito de lucro direto ou indireto. Ressalte-se que, havendo a presença de um objetivo indireto de lucro, estaria caracterizada a profissionalidade na forma de uma remuneração também indireta.


Majoritariamente, a doutrina se posiciona no sentido de que só pode haver relação de consumo quando esteja presente uma relação de mercado, onde o fornecedor busca o lucro.


Extrai-se do artigo 6º, inciso X que o CDC não estabeleceu distinção entre serviço público próprio e impróprio. A redação do artigo 22, que mais uma vez impõe ao Estado o dever de prestar serviços públicos eficientes, sem excepcionar nenhuma modalidade desses serviços, é clara ao dispor que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.”


Outra discussão, já pacificada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, diz respeito à presença da relação de consumo nos contratos bancários. Entretanto, ainda hoje a questão encontra-se pendente de manifestação do Supremo Tribunal Federal.


Em um primeiro momento, os que defendem não constituir o empréstimo bancário relação de consumo sustentam que dinheiro, salvo a situação do colecionador de moedas, é sempre bem intermediário na aquisição de outros bens.


Em um segundo momento, buscam aqueles defensores também desqualificar o empréstimo como relação de consumo, valendo-se do disposto no § 2º do artigo 3º, que diz que apenas os serviços bancários estaria sujeitos ao CDC. Como o empréstimo não encerra uma prestação de serviços, uma obrigação de fazer, mas uma obrigação de dar, estaria, portanto, fora do alcance do CDC.


Parece que seria um entendimento absolutamente incompatível com o espírito do CDC, que é justamente buscar o equilíbrio de toda relação contratual em que figure o consumidor vulnerável, deixa fora de seu alcance as operações bancárias, quando se sabe que as instituições financeiras sãos as que mais lançam mão dos chamados contratos de adesão, seja na simples prestação de serviços em si, seja as operações de concessão de créditos, deixando em flagrante desvantagem e desequilíbrio o outro contratante, que pode ser um consumidor.


Ainda que se conclua que é desinfluente o banco realizar uma operação ou prestar um serviço bancário para que haja relação de consumo, o fato é que no fornecimento de serviços o objeto da prestação é sempre uma obrigação da fazer. Na operação destinada à concessão de empréstimo não há que se falar em obrigação de fazer. A obrigação, nesses de mútuo, é sempre de dar.


Neste sentido, mostra-se incompatível com os institutos de direto obrigacional sustentar que na operação de crédito bancário tem-se um fornecimento de serviços, que, neste caso, não pode ocorrer porque a obrigação nuclear é a de dar; obrigação incompatível com o fornecimento de produtos.


Uma vez que o dinheiro pode ser objeto de consumo, não no sentido da destruição, mas de utilização, na concessão de empréstimos, a instituição financeira atua como fornecedora de bens e poderá atuar como também como fornecedora de serviços ou de produtos (no caso das operações bancárias), para efeito de proteção da Lei n.º 8078/90.


Com o julgamento final da ADIN 2592 foi reconhecida a constitucionalidade do artigo § 2º, do artigo 3º, que manda aplicar o CDC às operações bancárias.




Fonte: Direito do Consumidor. Paulo R. Roque A. Khouri.