domingo, 25 de julho de 2010

Norma Penal – Interpretação e Integração

A norma jurídico-penal tem natureza interpretativa e endereça-se a todos os cidadãos genericamente considerados, através de mandados (imperativo positivo) ou proibições (imperativo negativo) implícita e previamente formulados, visto que a lei penal modernamente não contém ordem direta, mas vedação indireta, na qual se descreve o comportamento humano pressuposto da conseqüência jurídica.


De acordo com a Teoria de Binding, essa técnica de redação chega à conclusão de que o criminoso, na verdade, quando praticava a conduta descrita no núcleo do tipo, não infringia a lei – pois o seu comportamento se amoldava perfeitamente ao tipo penal incriminador –, mas, sim, a norma penal que se encontrava contida na lei e, por exemplo no artigo 121 do Código Penal, dizia não matarás.


Norma jurídica e lei são conceitos diversos. A primeira é o prius lógico da lei, sendo esta o revestimento formal daquela. A lei, segundo a Teoria de Binding, teria caráter descritivo da conduta proibida ou imposta, tendo a norma, por sua vez, caráter proibitivo ou mandamental.


Existem normas que, em vez de conterem proibições ou mandamentos os quais, se infringidos, levarão à punição do agente, possuem um conteúdo explicativo, ou mesmo têm a finalidade de excluir o crime ou isentar o réu de pena. São as chamadas normas penais não incriminadoras.


Às normas penais incriminadoras é reservada a função de definir as infrações penais, proibindo ou impondo condutas, sob a ameaça de pena. É a norma penal por excelência, visto que quando se fala em norma penal pensa-se, imediatamente, naquela que proíbe ou impõe condutas sob a ameaça de sanção. São elas, por isso, consideradas normas penais em sentido estrito, proibitivas ou mandamentais.


Quando analisamos os tipos penais incriminadores, podemos verificar que existem dois preceitos, o primário e o secundário. O primeiro deles, conhecido como preceito primário (preceptum iuris), é o encarregado de fazer a descrição detalhada e perfeita da conduta que se procura proibir ou impor; ao segundo, chamado preceito secundário (sanctio iuris), cabe a tarefa de individualizar a pena, cominando-a em abstrato.


As normas penais não incriminadoras, ao contrário, possuem as seguintes finalidades: a) tornar ilícitas determinadas condutas; b) afastar a culpabilidade do agente, erigindo as causas de isenção de pena; c) esclarecer determinados conceitos; d) fornecer princípios gerais para a aplicação da lei penal.


Portanto, podem ser as normas penais não incriminadoras subdivididas em: permissivas; explicativas ou complementares. As permissivas podem: justificantes, quando têm por finalidade afastar a ilicitude (antijuridicidade) da conduta do agente; exculpantes, quando se destinam a eliminar a culpabilidade, isentando o agente de pena. Normas penais explicativas são aquelas que visam esclarecer ou explicitar conceitos. Normas penais complementares são as que fornecem princípios gerais para a aplicação da lei penal.


Normas penais em branco ou primariamente remetidas são aquelas em que há uma necessidade de complementação para que se possa compreender o âmbito de aplicação de seu preceito primário. Isso significa que, embora haja uma descrição da conduta proibida, essa descrição requer, obrigatoriamente, um complemento extraído de outro diploma – leis, decretos, regulamentos, etc. - para que possam, efetivamente, ser entendidos os limites da proibição ou imposição dos efeitos pela lei penal, uma vez que, sem esse complemento, torna-se impossível a sua aplicação.


Muitas vezes o complemento de que necessita a norma penal em branco é fornecido por outra lei ou por outro diploma que não uma lei em sentido estrito. Por essa razão, a doutrina divide as normas penais em branco em dois grupos: homogêneas (em sentido amplo) e heterogêneas (em sentido estrito).


Diz-se homogênea a norma penal em branco quando o seu complemento é oriundo da mesma fonte legislativa que editou a norma que necessita desse complemento. É heterogênea a norma penal em branco quando o seu complemento é oriundo de fonte diversa daquela que a editou.


Discute-se na doutrina se as normas penais em branco heterogêneas ofendem ao princípio da legalidade. Parte da doutrina entende que sim, visto que o conteúdo da norma penal poderá ser modificado sem que haja uma discussão amadurecida da sociedade a seu respeito, como acontece quando os projetos de lei são enviados para o Congresso Nacional, sendo levada em consideração a vontade do povo, além do necessário controle do Poder Executivo, que exercita o sistema de freios e contrapesos.


Nilo Batista, Zaffaroni, Alagia e Slokar ensinam que não é o simples demonstrar que a lei penal em branco não configura uma delegação legislativa constitucionalmente proibida. Argumenta-se que há delegação legislativa indevida quando a norma complementar provém de um órgão sem autoridade legiferante penal, ao passo que quando emergem da fonte geradora constitucionalmente legítima não se faz outra senão respeitar a distribuição da potestade legislativa estabelecida nas normas fundamentais.


Quando assim se teorizou, as leis penais em branco eram escassas e insignificantes. A massificação provoca uma mudança qualitativa: através das leis penais em branco o legislador penal estará renunciando à sua função programadora de criminalização primária, assim transferida a funcionários e órgãos do Poder Executivo, e incorrendo, ao mesmo tempo, na abdicação da cláusula ultima ratio, própria do Estado de Direito.


Tem prevalecido, no entanto, a posição doutrinária que entende não haver ofensa ao princípio da legalidade quando a norma penal em branco prevê aquilo que se denomina núcleo essencial da conduta.


A amplitude das regulamentações jurídicas que dizem respeito sobre as mais diversas matérias, sobre as quais pode e deve pronunciar-se o Direito Penal, impossibilita manter o grau de exigência de legalidade que se podia contemplar no século passado ou inclusive a princípio do presente.


Normas penais incompletas ou imperfeitas (secundariamente remetidas) são aquelas que, para saber a sanção imposta pela transgressão de seu preceito primário, o legislador nos remete a outro texto da lei. Assim, pela leitura do tipo penal incriminador, verifica-se o conteúdo da proibição ou mandamento, mas para saber a conseqüência jurídica é preciso se deslocar para outro tipo penal.


A anomia pode ser concebida de duas formas: em virtude da ausência de normas, ou ainda, embora existindo essas normas, a sociedade não lhes dá o devido valor, continuando a praticar as condutas por elas proibidas como se tais normas não existissem, pois que confiam na impunidade.


Antinomia é aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento jurídico e tendo o mesmo âmbito de validade. Se houver uma relação de contrariedade entre normas existentes num mesmo ordenamento jurídico, qual delas deverá ser aplicada? Com a finalidade de resolver o problema da antinomia jurídica, propõe-se a aplicação dos seguintes critérios: a) critério cronológico; b) o critério hierárquico; c) o critério da especialidade.


Fala-se em concurso aparente de normas quando, para determinado fato, aparentemente, existem duas ou mais normas que poderão sobre ele incidir. Diz-se, porém, que esse conflito é tão-somente aparente, porque se duas ou mais disposições se mostram aplicáveis a um dado caso, só uma dessas normas, na realidade, é que o disciplina.


O conflito, porque aparente, deverá ser resolvido com a análise dos seguintes princípios: especialidade, subsidiariedade, consunção e alternatividade.


Pelo princípio da especialidade, a norma especial afasta a aplicação da norma geral. É a regra expressa pelo brocardo lex specialis derrogat generali. Há, pois, em a norma especial um plus, isto é, um detalhe que sutilmente a distingue da norma geral.


Pelo princípio da subsidiariedade, a norma dita subsidiária é considerada como um “soldado de reserva”, isto é, na ausência ou impossibilidade de aplicação da norma principal mais grave, aplica-se a norma subsidiária menos grave. É a aplicação do brocardo lex primaria derrogat subsidiariae. A subsidiariedade pode expressa ou tácita. Diz-se expressa quando a própria lei faz a sua ressalva, deixando transparecer seu caráter subsidiário. Fala-se em subsidiariedade tácita ou implícita quando o artigo, embora não se referindo expressamente ao caráter subsidiário, somente terá aplicação nas hipóteses de não-ocorrência de um delito mais grave, que, neste caso, afastará a aplicação da norma subsidiária.


A diferença que existe entre especialidade e subsidiariedade é que, nesta, ao contrário do que ocorre naquela, os fatos previstos em uma e outra norma não estão em relação de espécie a gênero, e se a pena do tipo principal (sempre mais grave que a do tipo subsidiário) é excluída por qualquer causa, a pena do tipo subsidiário pode apresentar-se como “soldado reserva” e aplicar-se pelo residum.


Pode-se falar em princípio da consunção nas seguintes hipóteses: a) quando um crime é meio necessário ou norma fase de preparação ou de execução de outro crime; nos casos de antefato e pós-fato impuníveis. Os fatos não se acham de species a genus, mas de minus a plus, de parte a todo, de meio a fim. Assim, a consunção absorve a tentativa e este absorve o incriminado ato preparatório.


O princípio da alternatividade terá aplicação quando estivermos diante de crimes tidos como de ação múltipla ou de conteúdo variado, ou seja, crimes plurinucleares, nos quais o tipo penal prevê mais de uma conduta de variados núcleos. Mirabete assevera que o princípio da alternatividade indica que o agente só será punido por uma das modalidades inscritas nos chamados crimes de ação múltipla, embora possa praticar duas ou mais condutas do mesmo tipo penal. A rigor, o princípio da alternatividade não diz respeito à hipótese de conflito aparente de normas.


Interpretação e Integração da Lei Penal


Numa primeira abordagem, pode-se dividir a interpretação em: a) objetiva (voluntas legis); b) subjetiva (voluntas legislatoris). Por meio da chamada interpretação objetiva busca-se descobrir a suposta vontade da lei; ao contrário, com a interpretação subjetiva procura-se alcançar a vontade do legislador.


A interpretação pode ser distinguida, ainda, quanto ao órgão (sujeito) de que emana, quanto aos meios que são utilizados para alcançá-la e, ainda, quanto aos resultados obtidos.


A interpretação, no que diz respeito ao sujeito que a realiza, pode ser: autêntica, doutrinária e judicial (vinculante e não vinculante).


Diz-se autêntica a interpretação realizada pelo próprio texto legal. Em determinadas situações, a lei, com a finalidade de espancar qualquer dúvida quanto a este ou aquele tema, resolve, ela mesma, no seu corpo, fazer a sua interpretação.


A interpretação autêntica ainda pode ser considerada: contextual e posterior. A primeira, é a interpretação realizada no mesmo momento em que é editado o diploma legal que se procura interpretar. Posterior a interpretação realizada pela lei, depois da edição de um diploma legal anterior.


Não sendo efetivamente uma lei, as conclusões e explicações levadas a efeito na exposição de motivos não podem ser consideradas como interpretações autênticas, mas sim doutrinárias.


Interpretação doutrinária é aquela realizada pelos aplicadores do Direito, ou seja, pelos Juízes de primeiro grau e magistrados que compõem os Tribunais.


Quanto aos meios empregados, a interpretação pode ser: literal (gramatical), teleológica, sistêmica (sistemática) ou histórica.


Interpretação literal ou gramatical é aquela em que o exegeta se preocupa, simplesmente, em saber o real e efetivo significado das palavras. O intérprete, obrigatoriamente, deve buscar o verdadeiro sentido e alcance das palavras para que possa dar início ao seu trabalho de exegese.


Já na interpretação teleológica busca alcançar a finalidade da lei, aquilo ao qual ela se destina regular. O método teleológico fundamentado na análise da finalidade da regra geral, no seu objetivo social, faz seu espírito prevalecer sobre sua letra, ainda que sacrificando o sentido terminológico das palavras.


Com a interpretação sistêmica, o exegeta analisa o dispositivo legal no sistema no qual ele está contido, e não de forma isolada. Interpreta-se com os olhos voltados para o todo, e não somente para as partes.


Por meio da interpretação histórica, o intérprete volta ao passado, ao tempo em que foi editado o diploma que se quer interpretar, buscando os fundamentos de sua criação, o momento pelo qual atravessada a sociedade.


Quanto aos resultados, a interpretação pode ser: declaratória, extensiva ou restritiva.


Na interpretação declaratória, o intérprete não amplia nem restringe o seu alcance, mas apenas declara a vontade da lei.


Interpretação restritiva é aquela em que o intérprete diminui, restringe o alcance da lei, uma vez que esta, à primeira vista, disse mais do que efetivamente pretendia (lex plus dixit quam voluit), buscando, dessa forma, apreender o seu verdadeiro sentido.


Ocorre a interpretação extensiva, para que se possa conhecer a exata amplitude da lei, o intérprete necessita alargar seu alcance, haja vista ter aquela dito menos do que efetivamente pretendia (lex minus dixit quam voluit).


Um recurso que amplia o alcance da norma penal é a interpretação analógica que quer dizer que a uma fórmula casuística, que servirá de norte para o exegeta, segue-se uma fórmula genérica. Primeiramente, o Código, atendendo ao princípio da legalidade, detalha todas as situações que quer regular e, posteriormente, permite que tudo aquilo que a elas seja semelhante possa também ser abrangido pelo mesmo artigo.


Por exemplo, no artigo 121, § 2º, inciso III do Código Penal, pode-se perceber que a uma fórmula casuística – com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura – o Código fez seguir uma fórmula genérica – outro meio insidioso ou cruel, ou de que possa regular perigo comum.


Percebe-se que, da mesma forma que a interpretação extensiva, a interpretação analógica amplia o conteúdo da lei penal, com a finalidade de nela abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador, mas que por ele também foram desejadas.


A interpretação extensiva é o gênero, no qual são espécies a interpretação extensiva em sentido estrito e a interpretação analógica. Se, para abranger situações não elencadas expressamente no tipo penal, o legislador nos fornecer uma fórmula casuística, seguindo-se a ela uma fórmula genérica, faz-se, aqui, uma interpretação analógica. Caso contrário, se, embora o legislador não nos tenha fornecido o padrão a ser seguido, tiver que se ampliar o alcance do tipo penal para alcançar hipóteses não previstas expressamente, mas queridas por ele, estar-se diante de uma interpretação extensiva em sentido estrito.


A interpretação conforme a Constituição é método de interpretação através do qual o intérprete, de acordo com uma concepção penal garantista, procura aferir a validade das normas mediante o seu confronto com a Constituição.


Mesmo depois de utilizados todos os meios necessários e adequados a fim de buscar o verdadeiro alcance da lei, se ainda persistir a dúvida no âmago do intérprete, pode-se aplicar o princípio in dubio pro reo.


No entanto, há correntes doutrinárias que divergem desse entendimento. A primeira delas aduz que, em caso de dúvida de interpretação, esta deve pesar em prejuízo do agente (in dubio pro societate). Já a segunda corrente preleciona que a dúvida de interpretação teria de ser resolvida pelo julgador, podendo ser contrária ou a favor do réu. A última corrente, de posição mais adequada aos métodos de interpretação da lei penal, preconiza que, havendo dúvida em matéria de interpretação, deve esta ser resolvida em benefício do agente (in dubio pro reo), posição defendida por Nelson Hungria.


Define-se analogia como uma forma de autointegração da norma, consistente em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição legal relativa a um caso semelhante, atendendo-se, assim, ao brocardo ubi eadem ratio, ubi eadem legis dispositivo.


Tudo aquilo que não for expressamente proibido é permitido em Direito Penal. As condutas que o legislador deseja proibir ou impor, sob a ameaça de sanção, devem vir descritas de forma clara e precisa, de modo que o agente as conheça e as entenda sem maiores dificuldades. O campo de abrangência do Direito Penal, dado o seu caráter fragmentário, é muito limitado.


É terminantemente proibido, em virtude do princípio da legalidade, o recurso à analogia quando esta for utilizada do modo a prejudicar o agente, seja ampliando o rol de circunstâncias agravantes, seja ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador.


A aplicação da analogia in bonam partem, além de ser perfeitamente viável, é muitas vezes necessária para que ao se interpretar a lei penal não chegar a soluções absurdas. A analogia in malam partem é aquela que, de alguma maneira, prejudica o agente; a chamada analogia in bonam partem, ao contrário, é aquela que lhe é benéfica.


É preciso, porém, notar que a analogia pressupõe falha, omissão da lei, não tendo aplicação quando estiver claro no texto legal que a mens legis quer excluir de certa regulamentação determinados casos semelhantes.


A analogia in malam partem significa a aplicação de uma norma que define o ilícito penal, sanção, ou consagre occidentalia delicti (qualificadora, causa especial de aumento de pena e agravante) a uma hipótese não contemplada, mas que se assemelha ao caso típico. Evidentemente, porque prejudica e contrasta o princípio da reserva legal, é inadmissível.




Fonte: Curso de Direito Penal – Parte Geral. Rogério Grecco.