quinta-feira, 18 de março de 2010

Teoria da Argumentação Jurídica

A Teoria da Argumentação Jurídica relaciona-se diretamente com a teoria do discurso. Visa questionar e demonstrar a possibilidade e a validade de uma fundamentação racional do discurso, especificamente jurídico, estipulando-lhe algumas regras e formas.
Destaca-se no tratamento do discurso jurídico o alemão Robert Alexy, elaborando uma teoria da argumentação jurídica na década de 70.
A possibilidade de justificação racional do discurso jurídico é questão de primacial relevância para a cientificidade do Direito, a qual é imprescindível para a solidez de um Estado Democrático de Direito.
A racionalidade que, nas ciências da natureza, apresenta-se sob a forma da verdade e de suas proposições, é , no Direito, como ciência normativa, evidenciada pela correção de suas assertivas.
A pesquisa sobre a racionalidade do discurso jurídico e dos argumentos que o compõem pode ser feita sob dois ângulos que não se excluem, antes se completam:
1) formal, pelo qual se verifica a racionalidade procedimental discursiva, aferida pelo cumprimento de regras da lógica do discurso que, como pragmáticas, são argumentativamente desenvolvidas com vistas à correção;
2) material, através da análise da crítica do ethos, adentrando-se, destarte, no conteúdo das normas direcionadoras do agir social.
É a asserção desse conteúdo que se apresentará como premissa material de que parte a procedimentalidade da lógica do discurso.
No entanto, não é pela questão da materialidade ou semântica do discurso que se interessa a teoria da argumentação jurídica, mas pela pergunta, sob o ponto de vista procedimental, de como pode ser o discurso prático e especificamente o discurso jurídico fundamentado racionalmente, buscando-se a correção de seus enunciados regulativos.
As regras são requisitos imprescindíveis para a aferição da racionalidade de qualquer discurso prático, isto é, tudo pode e deve ser objeto do discurso, tanto o conteúdo das suas regras – que são, por sua vez, a forma do discurso – quanto a própria forma dessas regras, isto é, a forma do discurso.
São regras fundamentais: de razão, de carga da argumentação, de fundamentação, de transição, além de delinear as formas de argumento do discurso prático. Além dessas regras relativas à generalidade do discurso prático racional, o discurso jurídico segue formas e regras específicas, chamadas de justificação interna e de justificação externa.
Para análise do discurso jurídico e suas regras, deve-se, porém ter a consciência de que o discurso, se for voltado para o agir humano, é prático, e se busca sua orientação, é normativo.
O discurso prático deve obedecer a certas regras que buscam a correção dos argumentos, ou seja, é correto o que é discursivamente racional. Há, portanto, identidade no discurso entre racionalidade e correção.
Refuta-se, com isso, a afirmação positivista de não cientificidade ou relatividade das ciências normativas. Os juízos de valor (axiologia) e os juízos de dever (deontologia) têm sua verdade atingida argumentativamente com a observância de regras do discurso. Sua verdade é chamada correção.
A objetivação de consensos se dá argumentativamente, segundo regras do discurso, tornando-se corretos ou verdadeiros, porque racionalmente fundados. Sendo discursivamente racionais, são tornados universais.
A teoria da verdade aristotelicamente formulada é assim superada, pois não mais se considera a verdade como a correspondência da asserção à realidade, mas algo construído discursivamente, e que significa ser científico o resultado do consenso fundado, alcançado em relação ao objeto estudado. A verdade não está no mundo presente, na natureza, mas é produção cultural humana. É subordinada, assim, à refutabilidade, conforme expõe Karl Popper, a qual é necessariamente inerente à ciência, sob pena de suas conclusões tornarem-se dogmas (inquestionáveis, portanto).
Isso quer dizer que, em primeiro lugar, que a verdade assumida em dado momento, pode ser negada ou superada em seguida, com a elaboração de uma nova verdade sobre aquele tema, o que lhe confere a provisoriedade.
A verdade é historicamente construída, ou seja, é produção cultural contextualizada temporalmente.
Nem mesmo nas ciências da natureza há verdade inequívoca e incontestável, geradora de segurança a partir de uma única resposta, que garanta a verdade que dotaria de cientificidade o resultado. Também elas não são formadas segundo uma correspondência com a realidade, mas são resultado de um consenso fundado mediante o cumprimento de regras e critérios, que possibilitam a justificação e comprovação da premissa de que se parte.
O que se pretende com o estudo do procedimento discursivo, com a formulação das regras do discurso, com a criação da lógica do discurso é a objetivação de critérios de racionalidade, esse sim, obtidos mediante a referência ou a consideração de condições ideais de correção.
Para ser racional ou correto, não é necessário então, que o enunciado normativo preencha integralmente todas as regras do discurso, mesmo porque algumas delas podem ser apenas aproximadamente cumpridas, mas é com o estabelecimento dessas regras que se fornecem critérios pelos quais se deve pautar a fundamentação do discurso prático (geral ou jurídico) que, quanto mais segui-los, mais racional ou correto será.
A despeito da perpetuação da inexistência de consecução de um único resultado correto, isto representa um grande avanço, pois viabiliza excluir argumentos irracionais do discurso, bem como determinar os argumentos discursivamente necessários, por exigência dessas regras.
Não obstante a inumerabilidade dos argumentos que podem ser trazidos para o discurso, para que obedeçam as regras do discurso, suas afirmações devem ser fundamentadas de modo a se demonstrar argumentativamente sua racionalidade. Qualquer um pode tomar parte no discurso, introduzir e problematizar qualquer asserção (uma das regras de razão de Alexy, chamada por Habermas de princípio D, princípio da correção).
Se o falante aplicar um predicado a determinado objeto, deve aplicá-lo também a qualquer objeto semelhante nos aspectos essenciais (uma das regras fundamentais de Alexy, chamada por Habermas de princípio U, princípio da universalidade – em Direito é expressa pelo princípio da isonomia e pela analogia como método de integração do ordenamento jurídico).
O falante: só pode afirmar aquilo que ele mesmo acredita (pretensão da verdade habermasiana); não pode usar a mesma expressão que outros falantes com significados diferentes (pretensão de inteligibilidade formulada por Habermas); só deve fundamentar o que se afirma se lhe for pedido (regra geral da fundamentação).
Se o argumento afirmado pelo falante já foi aceito pelos demais, ele não precisa ser justificado (princípio da inércia perelmaniano). O falante apenas está obrigado a dar mais argumentos para sua afirmativa, em caso de contra-argumentos (uma das regras da argumentação).
Por outro lado, a teoria consensual da verdade, sendo pragmático-universal, levanta as condições de possibilidade e validade de qualquer conhecimento ou assertiva, caso contrário, não há fundamentação, mas, outra vez, dogma.
No discurso se fundamentam argumentos, mas o próprio discurso deve ter sua possibilidade fundamentada por argumentos que pretende validar, isto é, recorre-se às proposições não demonstradas, para permitir a utilização dessas mesmas proposições afirmadas como fundamentação, tendo a teoria consensual da verdade, na liberdade e na igualdade, sua condição tanto de possibilidade quanto de validade. Daí ser aplicada nos Estados Democráticos de Direito.
A relação entre a capacidade intelectiva dos cidadãos e sua participação no discurso público não é exigida por normas constitucionais, mas é necessariamente existente por ser condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, o qual foi construído mediante a elaboração de sua Constituição e cujo aperfeiçoamento a eles cabe, através do discurso, que, com a busca de um controle racional, aproxima-se da correção.
O discurso jurídico pode ser fundamentado racionalmente, satisfazendo a pretensão de correção, indispensável à validade do discurso. A diferença entre o discurso jurídico e o prático racional geral está em ser o primeiro vinculado ao direito vigente, apresentando-se por isso, como um caso especial do discurso prático racional geral.
O discurso jurídico é prático, por se constituir de enunciados normativos. É racional, por se submeter à pretensão de correção discursivamente obtida. É especial, por se subordinar a condições limitadoras ausentes no discurso prático racional geral, a saber – a lei, a dogmática e os precedentes.
Todas as regras diretivas da racionalidade do discurso prático geral são aplicadas também ao discurso jurídico, devido à integração entre ambos. A existência de um ordenamento jurídico organizado pelo Estado Democrático de Direito e organizador deste é o que gera a institucionalização do discurso jurídico, delimitando a discussão do seu objeto, participantes e situação espaço-temporal.
Ademais, a racionalidade e a universalidade proporcionam, no discurso jurídico, a legitimidade da legislação e controlabilidade das decisões judiciais, o que favorece também a imparcialidade do discurso.
Todavia, assim como no discurso prático racional geral , resta a impossibilidade de determinação de um único resultado correto mediante a argumentação jurídica, precisamente porque, a despeito da maior delimitação do campo do discursivamente possível no discurso jurídico, permanece ele ainda extraordinariamente vasto, haja vista a amplitude da abrangência normativa do ordenamento jurídico. As regras de justificação do silogismo jurídico pelo que se subsume um fato a uma norma, encontrando-se a discussão jurídica, não se efetiva mediante a utilização apenas dos princípios da lógica deôntica, somando-se a ela a lógica do discurso, que, embora formal, adentra o aspecto programático do enunciado jurídico apresentado como argumento na discussão. Aquele silogismo jurídico, com o enquadramento quase mecânico e blindado de críticas do caso concreto à norma jurídica, não se efetiva com tal simplicidade, mas, dentre outras exigências, requer a complexa ponderação do conteúdo valorativo das proposições jurídicas.
Na justificação externa, é averiguada a correção das próprias premissas, mediante as regras da argumentação prática geral, da argumentação empírica, da interpretação, da argumentação dogmática, o uso dos precedentes e das formas especiais de argumentação.
As regras da argumentação prática geral são as já mencionadas regras fundamentais, de razão, de carga da argumentação, de fundamentação, de transição, além das formas de argumento do discurso prático racional geral. As regras da argumentação empírica verificam a correção do que deve ser considerado como fato na fundamentação jurídica, a partir do enunciado empírico.
Como a certeza sobre os fatos que compõem a argumentação empírica é dificilmente obtida de modo absoluto, faz-se sempre presente a regra da presunção racional.
As regras de interpretação são precisamente os cânones hermenêuticos, que se apresentam sob diversas formas de argumento, proporcionando as interpretações gramatical (semântica), autêntica (genética), teleológica, histórica, comparada a sistemática.
As regras de argumentação dogmática têm como tarefa assinalar, sob o ângulo pragmático, tanto a legitimidade quanto os limites da argumentação sistemático-conceitual da ciência do Direito. Aliam-se assim às já conhecidas dimensões empírico-descritiva (descrição do Direito vigente), analítico-lógica (sua análise sistemática e conceitual) e prático-normativa (elaboração das propostas para a solução das questões jurídicas) da ciência do Direito.
As regras do uso argumentativo de precedentes determinam, para a formulação de sua pretensão de correção, que se deve citar, sempre que houver precedente a favor ou contra uma decisão (princípio da universalidade, com o mesmo tratamento para iguais ou semelhantes), assumindo a carga da argumentação quem dele quiser se afastar (conjugando os aparentemente contraditórios princípios da inércia e abertura para novas decisões).
As formas de justificação externa do discurso jurídico são os argumentos jurídicos especiais da analogia, argumentandum a contrario, argumentandum a fortiori e argumentandum ab absurdum.
Deve-se perceber que toda a exposição da teoria da argumentação jurídica pauta-se na demonstração da viabilidade de um discurso racional na fundamentação jurídica, ou seja, é fundada na procedimentalidade com a formulação lógica das regras discursivas.
Quando se mencionam termos como justiça, razão, razão prática na teoria da argumentação jurídica, não se está fazendo referência, consecutivamente, ao conteúdo do valor justiça presente em determinada realidade ou à razão cartesiana ou ainda a uma razão prática kantiana, como orientada para a realização de um fim socialmente eleito. Todas essas expressões são tratadas dentro da teoria do discurso, sendo sua aplicação desenvolvida exclusivamente do ponto de vista argumentativo, portanto, procedimental.
A Justiça a que se refere é o princípio da justiça formal, expresso no princípio da universalidade que é o conhecido princípio da igualdade formal, com a diferença da consideração agora de seu aspecto também pragmático. O que é justo é o que é racional o que é discursivamente correto, uma correção obtida argumentativamente pelo não cumprimento das regras formadoras da lógica do discurso.
A razão é a própria argumentação prática geral ou o discurso prático em si, com todas as suas regras elaboradas em uma situação ideal de fala.
Na teoria da argumentação jurídica, a expressão razão prática tem o mesmo significado da expressão razão comunicativa, representa a racionalidade para o agir, racionalidade essa desenvolvida procedimentalmente no discurso, abrangendo, desse modo, tanto a esfera das relações intersubjetivas, quanto do sujeito é só assim formada. Portanto, na teoria da argumentação jurídica, a razão é discursiva.
Todos estes termos podem ser resumidos em um mesmo significado: correção discursiva.
Sendo a teoria da argumentação jurídica estritamente formal, procedimental, a pretensão de correção no discurso jurídico não diz respeito à exigência de racionalidade do ponto de vista material.
Não adentra ela o questionamento de ser (ou não) a lei legítima, por corresponder às finalidades objetivadas a partir de suas relações intersubjetivas. Seu estudo pesquisa apenas a racionalidade da argumentação no discurso jurídico, na medida em que é ele determinado pela lei. Isto é, limita-se à análise do caráter racional do ordenamento jurídico vigente sob o prisma discursivo, mediante o procedimento controlador das regras da argumentação prática racional. Assim, pretende demonstrar a necessidade de o enunciado jurídico afirmado (em tese ou concretamente) ser, ele próprio, formalmente racional e também racional no contexto do direito vigente, essa é precisamente a teoria do discurso jurídico.
Há a crítica de que toda teoria da argumentação jurídica não se aplica ao Direito no momento do processo judicial, pois os falantes não se encontram em posição homóloga, já que cabe ao Juiz a decisão sobre o que é justo (correto) a partir dos argumentos trazidos por cada uma das partes. Contudo, a completa homologia factual entre os participantes não é condição de possibilidade do discurso. O que se exige é que se possa argumentar racionalmente no sentido de alcance da verdade ou da correção na maior medida possível. Está é a idéia reguladora do discurso, que permanecerá racional ainda que de suas regras não sejam cumpridas de forma plena e absoluta.
Outra crítica é a de que o agir estratégico invalida a teoria da argumentação, que é fundada no argumento pragmático-transcendental. Ocorre que, no campo da fala, há distinção entre validade subjetiva da ação (motivação) e a validade objetiva (conduta externa).
O simples fato de o indivíduo poder agir como se aceitasse as regras do discurso evidencia que o argumento pragmático-transcendental está em condição de fundamentar a validade objetiva ou institucional das regras do discurso, o que é uma conquista no sentido da democracia, do Direito e da controlabilidade das decisões. Isso torna as regras do discurso factuais, efetivas e não meras divagações acadêmicas sem qualquer possibilidade ou relevância para além do reduzido círculo dos debates filosóficos, afastados dos problemas presentes e prementes da concretude da vida social.
Muito debatida é a questão da consideração do discurso jurídico como caso especial do discurso prático geral. Ocorre que, com essa asserção, quer se dizer que a pretensão de correção também se formula no discurso prático geral, não se refere à racionalidade de quaisquer proposições normativas, mas somente aquelas passíveis de existência dentro do ordenamento jurídico vigente, limitadas, portanto, pela lei, precedentes e dogmática jurídica.
Com isso, não se quer dizer que o Direito é subordinado ou secundário em relação à Moral. Há apenas a distinção entre essa duas esferas, na medida em que se elabora uma teoria do discurso de racionalidade, especificamente jurídica quando se cria a figura do caso especial. O que se faz é a interrelação entre discursos considerados apenas distintos, mas, unidos na possibilidade e necessidade de sua racionalidade. Direito e Moral são entendidos, portanto, como complementares entre si.
A teoria da argumentação jurídica adentra a especificidade dos direitos fundamentais, surgindo a argumentação jusfundamental, cujo intuito é o mesmo da argumentação do discurso jurídico em geral, apenas com o detalhamento da busca da garantia de maior segurança, mediante o controle de racionalidade, na justificação do discurso cujo tema sejam enunciados referentes aos direitos fundamentais, em virtude de sua supremacia axiológica no ordenamento jurídico de um Estado Democrático de Direito.
A procedimentalidade da teoria da argumentação jurídica é então vinculada aos limites de um modelo procedimental de quatro graus: o discurso prático geral, o procedimento legislativo, o discurso jurídico e o procedimento judicial.
É com base neste direito posto que a argumentação jusfundamental, especialmente com as formas e regras da interpretação na justificação externa, chega ao seu objetivo: a determinação de direitos definitivos a partir dos direitos prima facie assegurados pela declaração principiológica dos direitos fundamentais.
A estipulação da precedência de um princípio sobre o outro apenas pode ser realizada mediante a utilização do princípio da proporcionalidade, com suas máximas de adequação e necessidade (que tratam das condições fáticas do caso em análise) e de ponderação (relativa às condições jurídicas do caso – solução da colisão dos princípios adequados e necessários).
A adoção do conceito de dignidade da pessoa humana confere certa materialidade à teoria da argumentação jusfundamental, na medida em que declara comporem os direitos ao mínimo vital, o direito a uma moradia simples, à educação escolar, à formação profissional e a um nível padronizado mínimo de assistência médica. Todo esse percurso para a determinação, no caso concreto trazido ao procedimento judicial, de direitos definitivos prima facie apenas se faz discursivamente, seguindo-se de maneira imprescindível as formas e regras da argumentação jurídica para ser tida como racional, ou seja, como correta – a despeito, mas uma vez de não se afirmar como única necessariamente possível.
Formalmente, a controlabilidade da decisão somente pode ser feita então, pelo exame do procedimento racional de justificação efetivado, pelo que se afasta no maior grau possível, a perigosa arbitrariedade de um decisionismo na esfera dos três poderes estatais e, em especial, no órgão judicial dotado de autoridade máxima de um Estado Democrático de Direito, o Tribunal Constitucional.

Fonte: Teoria da Argumentação Jurídica. Cláudia Toledo.