quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Fundamentos da Exigibilidade e Dispensa da Licitação

Celso Antônio Bandeira de Melo ensina que, por força do princípio da isonomia, não pode a Administração desenvolver qualquer espécie de favoritismo ou desvalia em proveito ou detrimento de alguém, principalmente no que se refere à licitação, ressaltando seu duplo propósito de obter uma situação vantajosa para a Administração e de oferecer iguais oportunidades de contratação a todos os eventuais fornecedores ou prestadores de serviço.

O fato é que o princípio da isonomia, por ser elementar ao direito administrativo e estar erigido à categoria de princípio constitucional, acabou transformando o próprio instituto da licitação em um princípio para a Administração.

O princípio da isonomia, por si só, é independentemente de qualquer norma, obriga a Administração a valer-se do procedimento da licitação e, ao estabelecer essa obrigatoriedade, erige a própria licitação em princípio, pois mesmo na ausência de normas específicas está a Administração obrigada a utilizar-se dos procedimentos licitatórios.

O princípio da licitação impõe à Administração a necessidade de recorrer a procedimentos técnicos-jurídicos que assegurem, ao mesmo tempo, contratações vantajosas para o Poder Público e igualdade de condições para todos os contratantes, independentemente de quaisquer normas positivas. O procedimento poderá estar ou não especificado pelas normas, mas a falta destas não significa que o princípio seja dispensável. Não havendo norma legal, a licitação se desenvolverá de acordo com o edital.

A Emenda Constitucional n.º 19, conhecida como Emenda da Reforma Administrativa, trouxe profundas modificações à Administração brasileira. O propósito fundamental dessa reforma era a substituição do antigo modelo burocrático, caracterizado pelo controle rigoroso dos procedimentos, pelo novo modelo gerencial, no qual são abrandados os controles de procedimentos e incrementados os controles de resultados.

Em termos práticos, deve-se caracterizar que quando uma formalidade burocrática for empecilho à realização do interesse público, o formalismo deve ceder diante da eficiência.

Isso significa que é preciso superar concepções puramente burocráticas ou meramente formalísticas, dando-se maior ênfase ao exame da legitimidade e da razoabilidade, em benefício da eficiência. Não basta ao administrador demonstrar que agiu bem, em estrita conformidade com a lei: sem divorciar a legalidade, cabe a ele evidenciar que caminhou no sentido da obtenção dos melhores resultados.

Em matéria de procedimento administrativo licitatório, será sempre necessário conciliar os princípios sobre ele incidentes, o que certamente vai exigir um esforço maior por parte dos intérpretes e aplicadores da lei.

É certo que, pela rigidez formal que deve ter, a Administração não pode ser dotada da mesma facilidade de negociação de que dispõem as empresas privadas. Não se concluam, porém, açodadamente, que em decorrência da licitação, a Administração possa ser irrecusavelmente obrigada a fazer um contrato extremamente gravoso.

Também não se conclua que aumentar a capacidade de negociação repercuta de maneira diretamente proporcional na obtenção de vantagens. Maior liberdade significa maior risco, pois administrar é atividade de quem não é dono. Se quando houver possibilidade de negociação, deverá, também, necessariamente, haver um incremento e um aprimoramento dos meios de controle, para assegurar o atingimento do conjunto de finalidades almejadas pela licitação.

São três os princípios essenciais ou fundamentais que decorrem da própria razão de ser da licitação: oposição ou concorrência, publicidade e igualdade. O primeiro princípio significa que a escolha deve ser feita com base em uma comparação objetiva entre as diversas ofertas, constituindo-se exceção as hipóteses de apresentação de uma única proposta. O princípio da publicidade significa que o chamamento dos interessados deve ser público, ostensivo, efetuado mediante adequada publicação. O princípio da igualdade significa a necessidade de adoção de um tratamento isonômico entre os licitantes; para isso, todos os ofertantes devem encontra-se na mesma situação, contando com as mesmas facilidades e fazendo suas ofertas sobre bases idênticas.

Vale ressaltar que os elementos essenciais a qualquer modalidade de licitação e que, por isso mesmo, devem ser considerados como princípios fundamentais desse procedimento são três: igualdade, publicidade e estrita observância das condições estabelecidas no edital.

O artigo 24 da Lei n.º 8.666/93, que cuida da dispensa de licitação, foi alterado várias vezes para a inclusão de novas hipóteses de dispensa, mas sempre de maneira assistemática, imprecisa, confusa, causando mais dúvidas do que certezas.

Em regra, todos os contratos celebrados pela Administração devem ser precedidos de licitação, porque o Poder Público não pode privilegiar ou prejudicar quem quer que seja, mas deve oferecer iguais oportunidades a todos de contratar com ele. Essa é a regra geral.

É um princípio fundamental da hermenêutica que as exceções devem ser tratadas de maneira restrita. Quando houver alguma dúvida quanto à exigibilidade ou dispensa de licitação, é preciso não esquecer que a regra geral é a exigibilidade e que a exceção é a dispensa. Os casos de inexigibilidade são aqueles que, logicamente, não existe possibilidade de licitação. Os casos de dispensa são aqueles em que, havendo possibilidade de licitação, uma circunstância relevante deve autorizar a discriminação.

Necessário se faz, porém, deixar uma coisa bastante clara: não é dado ao legislador, arbitrariamente, criar hipótese de dispensa de licitação, por ser ela uma exigência constitucional. Se o elemento tomado em consideração para que seja feita a dispensa não for pertinente, não for razoável ou compatível com o princípio da igualdade, a lei será inconstitucional.

É evidente que afirmar a exigibilidade como regra geral não significa afirmar exigibilidade absoluta, mesmo porque, em certos casos, a licitação poderia ser até material ou juridicamente impossível. Cretella Júnior, desde longa data, já se referia a circunstâncias imprevistas ou a casos de interesse nacional que seriam motivos suficientes para a dispensa de licitação, dada a morosidade do procedimento ou inconveniência da publicidade, que poderia até ser nefasta em certas situações.

José Afonso da Silva fez uma primeira sistematização ao identificar os casos expressos e casos implícitos. Na primeira categoria estariam todas as hipóteses previstas na legislação de maneira expressa. Na segunda estariam as “hipóteses não claramente contempladas, que também dispensam licitação – como é o caso da aquisição de materiais e equipamentos de segurança pública”. Argumenta que, se a licitação é dispensável em casos de grave perturbação da ordem, implicitamente é dispensável para preveni-los. Segundo ele, “também ocorre implicitamente a dispensa de licitação naquelas hipóteses e que a atividade em relação à qual se vai realizar a despesa imponha sigilo”.

A dispensa de licitação é balizada por três princípios: impossibilidade material, impossibilidade jurídica e conveniência administrativa.

O princípio da impossibilidade material significa que a licitação seria dispensada nos casos em que sua realização fosse materialmente impossível, em virtude da singularidade do objeto, a qual decorre não só da natureza íntima, mas também da individualidade em razão de fatores externos, inclusive a determinação da marca. Nessa categoria estariam, por exemplo, a dispensa para aquisição de obras de arte e objetos históricos, a aquisição de bens de fornecedores exclusivos. Incluem-se nessa categoria a hipótese de dispensa de licitação deserta, isto é, quando nenhum fornecedor se interessa em ingressar em uma contenda para conseguir o objeto de um contrato desejado pela Administração, muito embora possa se reconhecer que nesse caso nada impede que seja reiterado o chamamento público a eventuais interessados.

Não é todo serviço técnico especializado que enseja a pura e simples dispensa de licitação. Existem serviços que, não obstante que requeiram acentuada habilitação técnica, podem ser realizados por uma pluralidade de profissionais ou empresas especializadas, indistintamente. A dispensa de licitação somente pode ocorrer quando um serviço técnico se tornar singular, ou seja, quando o fator determinante da contratação for seu executante, isto é, quando não for indiferente ou irrelevante a pessoa, o grupo de pessoas ou a empresa executante.

A singularidade do serviço foi enfocada por Celso Antônio Bandeira de Mello da seguinte forma: “De modo geral são singulares todas as produções intelectuais, realizadas isolada ou conjuntamente – por equipe – sempre que o trabalho a ser produzido se defina como marca pessoal (ou coletiva) expressa em características científicas, técnicas ou artísticas importantes para o preenchimento da necessidade administrativa a ser suprida.

A dispensa depende da somatória das peculiaridades do objeto e do executante. É preciso demonstrar a necessidade de se contratar um profissional, notoriamente especializado. Ou seja, além de um executor especializado, é preciso haver real necessidade dessa especialização e comprovação efetiva da capacitação especial do contratado.

Essa singularidade resultante das características pessoas do executante é que torna inviável a comparação ou a competição, tornando inexigível a licitação, conforme dispõe a legislação vigente.

O trabalho pode ser considerado singular quando depender das características do executante. Haverá singularidade quando diferentes executantes notoriamente especializados produzirem diferentes trabalhos. Não haverá singularidade quando diferentes executantes puderem realizar a mesma coisa, produzir o mesmo resultado.

Diante disso, não se pode invocar a notória especialização para contratação de um serviço usual, corriqueiro, comum, que efetivamente não exija habilitação especial.

Os textos legais brasileiros, nos casos de serviço técnico especializado, exigem apenas que o executante seja pessoa ou firma de notória especialização. Essa notoriedade oferece considerável dificuldade interpretativa e não dispensa a comprovação da efetiva capacitação especial, em face de cada específico contrato a ser celebrado. Notoriedade, em última análise, para fins de dispensa de licitação, é a fama consagradora do profissional em seu campo de especialidade.

Não de deve confundir notoriedade com popularidade. Não é necessário que o contratado seja tido como reconhecidamente capaz pelo povo, pela massa, pelo conjunto de cidadãos, pela coletividade. Basta que isso aconteça âmbito daquelas pessoas que operam na área correspondente ao objeto do contrato.

Quanto aos serviços técnicos a serem contratados, alguns podem ser executados indistintamente por uma pluralidade de profissionais ou empresas altamente qualificadas ou notoriamente especializadas, cuja seleção deve ser feita mediante concurso. Somente cabe a dispensa quando não for possível realizar qualquer modalidade de licitação, quando o resultado do trabalho for singular, incomparável, por decorrer de características ou habilitações peculiares do autor.

A contratação de serviços com profissionais ou firmas de notória especialização está sujeita, em princípio, à licitação, a qual há de ser dispensada apenas nos casos que apresentem singularidades tais que impossibilitem uma comparação, sendo inadmissível uma desobrigação genérica.

O princípio da impossibilidade jurídica seria aplicável quando o confronto dos interesses em jogo pudesse resultar em ofensa aos princípios fundamentais do regime jurídico administrativo: supremacia do interesse público sobre o privado e indisponibilidade dos interesses públicos. Nessas hipóteses a licitação seria simplesmente dispensável. Nessa categoria estaria, por exemplo, a dispensa de licitação em caso de guerra, segurança nacional, calamidade pública, emergência e manutenção da ordem pública.

Toda alegação de urgência deve ser devidamente motivada e instrumentada com a comprovação dos fatos ensejadores, para que possa haver efetivo controle administrativo ou judicial.

Caberia, ainda, incluir-se aqui, na rubrica impossibiliade jurídica, a ausência de licitação nos contratos entre pessoas jurídicas de direito público e, por extensão, com os concessionários de serviços públicos ou entidades sujeitas ao controle do Poder Público. Ocorre que as pessoas de direito público escapam à regra do tratamento isonômico porque são juridicamente desiguais, por sua própria natureza (enquanto as pessoas civis nascem juridicamente iguais, as pessoas públicas se diferenciam já no ato de sua criação, nos termos dos atos que as houverem instituído).

Em relação aos contratos interadministrativos, pode-se concluir que não se trata de mera dispensa (licitação possível, mas legalmente não exigida) e sim de inexigibilidade (licitação impossível, por inviabilidade de competição). Órgãos e entidades públicas não concorrem entre si. Quando o Poder Público cria uma entidade para servir como instrumento de sua atuação, é como se fosse o próprio Estado “contratando” consigo mesmo, ainda que se trate de relação entre entidades de diferentes pessoas jurídicas de capacidade política.

O princípio da conveniência administrativa é o mais débil de todos, e pode tornar dispensável a licitação com fundamento na presunção de legitimidade dos atos da Administração. Abrangeria, por exemplo, a dispensa de licitação para contratações de pequeno vulto, e a complementação ou padronização dos equipamentos.

Cumpre assinalar, finalmente, que o princípio da licitação é também aplicável às sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações governamentais, pois tais entidades são afetadas pelo regime jurídico administrativo, participando, ao mesmo tempo, de algumas prerrogativas e sujeições que afetam a Administração centralizada. Ressalte-se, todavia, que, quanto aos chamados serviços industriais do Estado, é de sua essência prestar serviços ou produzir bens para serem alienados em regime de direito privado.

A Constituição Federal afirma a obrigatoriedade de observância das normas gerais de licitação apenas para as administrações diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, destacando que as empresas públicas e sociedades de economia mista deveriam, no tocante a suas licitações, observar do disposto em seu artigo 173, § 1º, inciso III.

Esse dispositivo se refere apenas às empresas estatais exploradoras de atividades econômicas, estabelecendo, efetivamente, uma indiscutível distinção exclusivamente quanto a esta específica modalidade de empresas estatais. Portanto, as empresas estatais prestadoras de serviços públicos continuam devendo fiel observância das normas gerais de licitações estabelecidas pela lei federal.

Porém, o § 1º do artigo 173 da Constituição Federal consigna que uma futura lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias de bens ou de prestação de serviços, dispondo, dentre outras coisas, sobre a licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações destas entidades, que deverão observar apenas os princípios da Administração.

Diante disso, entende parte da doutrina que, enquanto não for editado o estatuto das empresas estatais exploradoras de atividade econômica, as quais devem observar, nesse ínterim, as normas da Lei n.º 8.666/93.

Todavia, a falta do estatuto mencionado no § 1º do artigo 173 da Constituição Federal não impede que a legislação ordinária específica estabeleça um regramento diferenciado, simplificado, para as licitações levadas a efeito pelas empresas estatais exploradoras de atividades econômicas, desde que sejam observados os princípios da Administração.

Em sua, observando os princípios e as normas legais sobre a matéria, as empresas estatais exploradoras de atividades econômicas podem ter regulamentos simplificados. É certo que, observadas as modalidades legalmente estabelecidas, podem criar, para cada modalidade, procedimentos de licitações adequados à flexibilidade, à operatividade e à eficiência que se espera de tais entidades da administração indireta. Mas é certo, também, que os procedimentos por ela adotados (mesmo com a dispensa da observância das normas aplicáveis aos órgãos públicos) devem obedecer aos princípios da licitação, para que sejam válidos.


Fonte: Aspectos Jurídicos da Licitação. Adilson Abreu Dallari.