quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Processo Civil: Invalidades Processuais

O fenômeno jurídico deve ser analisado em três planos distintos: existência, validade e eficácia.


O plano da existência refere-se aos atos jurídicos; o plano da eficácia, às situações jurídicas (efeitos jurídicos, dentre os quais o mais importante é a relação jurídica).


O plano da validade é exclusivo de alguns fatos jurídicos, mais precisamente dos atos jurídicos (negócios jurídicos em sentido estrito), fatos humanos cujo suporte fático dá relevância à vontade. Há efeitos jurídicos que não passam pelo plano de validade, como são os casos dos fatos ilícitos (não se fala de nulidade de crime), dos atos-fatos (não se cogita de invalidade de uma pintura) e dos fatos jurídicos naturais.


A validade do ato diz respeito à eficiência com que o seu suporte fático foi preenchido. Se houver preenchimento da hipótese de incidência (previsão do fato em enunciado normativo) de maneira deficiente, surgirá defeito que pode autorizar a nulificação do ato (invalidação, que se refere tanto à decretação do nulo quanto a anulação): a destruição de um ato jurídico em razão de um defeito.


O ato jurídico inválido existe. Ato inexistente não tem defeito.


Nem todo defeito implica invalidação: a lei pode permitir a conversão do ato jurídico defeituoso em outro ato jurídico, considerar o vício irrelevante ou, ainda, não obstante a falha, aproveitar o ato deficiente. A invalidação é a conseqüência mais drástica que pode advir da prática de um ato jurídico defeituoso.


A validade de um ato deve ser examinada contemporaneamente à sua formação. A invalidade é sempre congênita. O defeito pode estar no próprio ato (cláusula abusiva de um contrato de consumo, por exemplo) ou ser anterior a ele (coação, dolo, erro etc.), mas jamais pode ser posterior ao ato. Se o ato jurídico é válido, os fatos que sejam supervenientes afetarão a sua eficácia, não a sua validade. A resolução ou revogação, por exemplo, são causas de extinção de atos jurídicos, por fatos supervenientes à sua formação.


É possível que atos nulos produzam efeitos até sua desconstituição. A circunstância de a nulificação retirar retroativamente os efeitos do ato jurídico ou destruir ato jurídico que não produziu qualquer efeito (nulo, ipso iure) não é relevante para retirar-lhe a qualidade jurídica de sanção – portanto decretável e não declarável. Não se declaram nulidades, decretam-se nulidades.


Não se pode confundir o defeito com a sanção. Invalidação é a sanção e não o defeito que lhe dá causa (por exemplo, a coação é o defeito; a anulação é a sanção).


Há defeitos processuais que não geram qualquer invalidade. São defeitos mínimos, chamados por muitos de meras irregularidades (v. g., o advogado que realiza sustentação oral sem utilizar as vestes talares).


Há defeitos processuais que geram invalidade que não pode ser decretada ex officio. Esses defeitos são raros. São situações em que a forma do ato processual é estabelecida com o objetivo de resguardar interesse particular. Normalmente, há previsão legal nesse sentido. A invalidade nesses casos deve ser requerida ou pela parte prejudicada, e o silêncio no primeiro momento que lhe couber falar nos autos a respeito implicará preclusão, ou por um terceiro, como é o caso da invalidade de ato do cônjuge praticado sem o consentimento do outro.


Cumpre lembrar que os vícios de vontade nos atos processuais submetem-se ao regramento comum: dão ensejo à invalidade se houver provocação neste sentido.


Há invalidades processuais que podem ser decretadas ex officio. Trata-se, normalmente, de invalidades que decorrem de defeitos do procedimento, ausência de pressupostos processuais e condições da ação. Em tais situações, pendente o processo, não há preclusão do poder de invalidar nem há restrição quanto à legitimidade para suscitá-la, tendo em vista que o magistrado por nulificar ex officio.


Há defeitos que levam à invalidade que podem ser decretada ex officio, mas, não tendo havido impugnação da parte prejudicada, no primeiro momento que cabe a ela falar nos autos, há preclusão. Trata-se do defeito cuja identificação é a mais difícil. É muito importante, porém, admitir a sua existência, até mesmo para mitigar a regra de que toda invalidade que pode se decretada ex officio pode sê-lo a qualquer tempo, o que compromete a segurança jurídica e as finalidades do processo. Exemplo: o magistrado pode invalidar uma citação ex officio, até mesmo porque se trata de um vício transrescisório, mas, se o réu apresentar a sua resposta, e não se manifestar sobre isso, há preclusão da possibilidade de invalidação do procedimento por tal motivo, independentemente da verificação da ocorrência de prejuízo.


A invalidade processual é sanção que somente pode ser aplicada se houver a conjugação do defeito do ato processual com a existência de prejuízo. Não há nulidade processual sem prejuízo (pas nullité sans grief). A invalidade processual é sanção que decorre da incidência da regra jurídica sobre um suporte fático composto: defeito + prejuízo.


Há prejuízo sempre que o defeito impedir que o ato atinja a sua finalidade.


O artigo 244 do Código de Processo Civil consagra o chamado princípio da instrumentalidade das formas. Quando a lei prescrever determinada forma, sem cominação de nulidade, o Juiz considerará o válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.


A falta de intervenção do Ministério Público implica nulidade do procedimento, a partir do momento em que ele deveria ter sido intimado, ex vi do artigo 246, caput e parágrafo único do Código de Processo Civil. A participação do Ministério Público, em tais casos, é encarada como pressuposto processual objetivo intrínseco de validade. O que dá ensejo à nulidade é a falta de intimação.


Somente se deve nulificar um ato do procedimento ou o próprio procedimento se não for possível aproveitá-lo – do mesmo modo que a invalidação deve restringir-se ao mínimo necessário, mantendo-se incólumes partes do ato que possam ser aproveitadas, por não terem sido contaminadas.


O princípio da fungibilidade dos meios processuais é a manifestação doutrinária e jurisprudencial mais clara de aplicação do princípio do aproveitamento dos atos processuais defeituosos. De acordo com tal princípio, é possível aproveitar um ato processual, indevidamente praticado, com outro ato. É a versão processual da regra do ato nulo (art. 170 do CC). O princípio da fungibilidade diz respeito, inclusive, a qualquer juízo de admissibilidade (juízo a validade do procedimento/ato postulatório), seja relativo ao recurso, seja relativo ao procedimento principal, como vem pugnando a mais prestigiada doutrina.


No direito processual, não há defeito que não possa ser sanado. Por mais grave que seja, mesmo que apto a gerar a invalidade do procedimento ou de um dos seus atos, todo defeito é sanável. Não há exceção a essa regra.


Além de poder ser sanado com a repetição do ato ou a sua simples correção, o defeito pode ser sanado: a) pela preclusão da oportunidade de apontá-lo e, pois, de suscitar a invalidade; b) pela eficácia preclusiva da coisa julgada material, neste caso, cumpre verificar se o defeito processual transformou-se em hipótese de rescindibilidade da decisão judicial; c) ultrapassado o prazo de dois anos da ação rescisória, a decisão judicial é mantida, sendo irrelevante a existência de defeitos que possam invalidá-la.


A nulificação do procedimento atinge o processo como um todo e está relacionada a não-preenchimento dos requisitos de admissibilidade do processo (pressupostos processuais e condições da ação). São os chamados vícios de fundo. Inadmissibilidade é o nomen iuris da sanção de invalidade do procedimento ou do ato postulatório.


O artigo 248, primeira parte, do Código de Processo Civil consagra o princípio da causalidade (ou da concatenação e da interdependência dos atos processuais) na invalidação dos atos processuais: anulado o ato, reputam-se de nenhum efeito todos os subseqüentes, que dele dependam.


A decisão judicial defeituosa deve ser invalidada por meio da interposição de recurso, pelo qual se alegue error in procedendo. A não impugnação da decisão implicará preclusão, ressalvada regra expressa em sentido contrário (como, por exemplo, o exame posterior de questões de ordem pública não decididas, que comprometam a validade de decisão já prolatada, como pode acontecer nos termos do artigo 267, § 3º do CPC).


Após o término do processo, com o surgimento da coisa julgada material, a decisão judicial somente pode ser desfeita por meio de ação rescisória. A coisa julgada material faz com que o defeito que poderia levar à invalidade da decisão transforme-se em hipótese de rescinbilidade.


No direito processual civil há apenas duas hipóteses de decisão judicial existente que pode ser invalidada após o prazo da ação rescisória: decisão proferida em desfavor do réu, em processo que correu à sua revelia, quer porque não fora citado, que porque o fora da maneira defeituosa. Nesses casos, bem denominados de vícios transrescisórios, impugna-se a decisão judicial por meio de ação de nulidade, denominada querela nullitatis, que de distingue da ação rescisória não só pela hipótese de cabimento, mais restrita, como também por ser imprescritível e dever ser proposta perante o Juízo que proferiu a decisão (e não necessariamente em Tribuna, como é o caso da ação rescisória). Ambas, porém, são ações constitutivas.


Se há coisa julgada material, os atos processuais das partes tornam-se invulneráveis, não podendo mais ser invalidados. A eficácia preclusiva da coisa julgada torna anódina a apreciação da validade de tais atos jurídicos, ressalvadas as hipóteses em que isto for relevante para destruir a própria coisa julgada, como acontece nos caos do inciso VIII do artigo 485 do Código de Processo Civil.


Se não há coisa julgada material e o processo ainda está em curso, o ato processual da parte pode ser invalidado, se não tiver havido preclusão, ex officio, quando for o caso, ou a partir de simples petição dirigida ao Juiz da causa. Não é necessário o ajuizamento de demanda judicial com este objetivo específico.


Se não há coisa julgada material, e o processo já se encerrou, é possível o ajuizamento de ação de invalidação, nos termos do artigo 486 do Código de Processo Civil, que se refere à invalidação de atos das partes e não do Juiz.


Os atos processuais dos auxiliares da Justiça são invalidados pelo Juiz da causa, nos próprios autos e no mesmo processo, sem necessidade de ação autônoma, com esse objetivo, ex officio ou a requerimento das partes.


Três princípios processuais têm especial importância no sistema de regras de decretação de invalidades processuais: proporcionalidade (devido processo legal substancial), economia e cooperação.


É preciso averiguar a relação de adequação, necessidade e razoabilidade entre o defeito do ato processual e a sanção de invalidade, que dele é conseqüência. No exame da gravidade do defeito, também é indispensável ponderar se a invalidação do próprio ato/procedimento não seria medida por demais drástica e não-razoável. Na verdade, o princípio da proporcionalidade deve ser observado principalmente na própria análise da gravidade do efeito.


O princípio da economia processual está intimamente ligado ao sistema de invalidação dos atos processuais. Basta que se observem as inúmeras regras que impõem ao magistrado o dever de tentar extrair a máxima eficácia dos atos defeituosos, exatamente para evitar sua desnecessária repetição.


O princípio da cooperação aplica-se ao sistema das invalidades processuais. Essa manifestação revela-se com muita facilidade quando o magistrado cumpre o seu dever de prevenção, que lhe impõe a conduta de advertir às partes sobre os defeitos processuais de seus atos, dando-lhes prazo para a correção e indicando o modo como o defeito deva ser sanado.


No sistema de invalidades processuais vige a regra que proíbe o comportamento contraditório (vedação ao venire contra factum proprium), Considera-se ilícito o comportamento contraditório por ofender os princípios da lealdade processual (princípio da confiança ou proteção) e da boa-fé objetiva.


Na sistematização do instituto da preclusão (perda do poder jurídico processual), a doutrina refere-se à preclusão lógica, que consiste na impossibilidade em que se encontra a parte de praticar determinado ato ou postular certa providência judicial em razão da incompatibilidade existente entre aquilo que agora a parte pretende e sua própria conduta processual anterior. A idéia de preclusão lógica é a tradução, no campo do direito processual, do princípio nemo potest venire contra factum proprium.


O artigo 243 do Código de Processo Civil enuncia que “quando a lei prescrever determinada forma, sob pena de nulidade, a decretação desta não pode ser requerida pela parte que lhe deu causa”. O enunciado normativo aplica-se, segundo a maioria da doutrina, apenas aos casos em que o defeito do ato processual não permite a invalidação a qualquer tempo (nulidades relativas ou anulabilidades processuais); se se trata de defeito que permite invalidação ex officio e a qualquer tempo, como, por exemplo, a incompetência absoluta, mesmo o auto, que demandou perante Juízo incompetente, e, portanto, deu causa à invalidade, poderá requerê-la – nesse caso, porém, deverá ser punido com sanção pecuniária em razão de litigância de má-fé. Adota-se, então, o dogma da supremacia do interesse público contra interesse privado.


A proteção da boa-fé objetiva também é manifestação do interesse público. A solução mais correta é a aplicação do princípio da proporcionalidade, ponderando, em concreto, o interesse público existente por trás da nulidade e o interesse, também público, na tutela da confiança e da solidariedade social. A supremacia do interesse público deve ser verificada caso a caso, não sendo razoável que se estabeleça, a priori, que em qualquer conflito, envolvendo o interesse público e o interesse particular, deva aquele prevalecer sobre esse. A prevalência do interesse público é, apenas, uma regra abstrata de preferência, em caso de colisão.


Feita a ponderação, três são as conclusões possíveis: a) decretar a nulidade do ato, desconstituindo os seus efeitos; b) decretar a nulidade do ato, mantendo os seus efeitos pretéritos (decretação com eficácia ex nunc); c) não decretar a nulidade do ato, conservando-o com sua plena eficácia.


Galeno Lacerda apresenta uma das classificações das nulidades mais aceitas pela doutrina. Primeiramente, divide os vícios em sanáveis e insanáveis. Os insanáveis darão ensejo às nulidades absolutas, que devem ser decretadas de ofício a qualquer tempo, ou por provocação das partes, também em qualquer fase do procedimento, porque de interesse público e decorrentes de inobservância de normas cogentes processuais cogentes. Sucede que, por vezes, a não-observância de normas cogentes, que tutelam interesses exclusivamente particulares, darão ensejo a uma segunda espécie de nulidade: a relativa, oriunda, portanto, de vício sanável; também poderá ser conhecida de ofício, mas existirá sempre a possibilidade de saneamento. Mas a relativa não é a única espécie de nulidade que se origina dos vícios sanáveis. O ilustre processualista ainda aborda a anulabilidade, que seria resultado de violação de normas dispositivas e, desta forma, não caberia qualquer manifestação do Juiz, competindo à parte interessada a reação adequada.


Teresa Arruda Alvim Wambier parte de outra premissa para construir a sistematização das nulidades. Primeiramente, divide-as em nulidades de fundo e nulidades de forma. As nulidades de forma são em regra relativas, porque só serão absolutas quando previstas em lei. A seu turno, as nulidades de fundo, compõem os vícios relacionados às condições da ação, pressupostos processuais positivos de existência e de validade e os pressupostos processuais negativos, todas espécies de nulidades absolutas. Equipara, sob o ponto de vista do processo, nessa oportunidade, as nulidades absolutas aos casos de inexistência, argumentando partilharem o mesmo regime jurídico. Uma vez estabelecida a premissa, passa a distinguir as nulidades relativas das absolutas. Afirma, quanto à legitimidade para alegar, que, em relação às absolutas, tanto as partes quanto o Juiz poderia suscitá-las, enquanto em relação às relativas somente às partes seria atribuído tal poder jurídico. No que se refere ao tempo da alegação, entende não precluir em hipótese alguma possibilidade de alegação de nulidade absoluta, mas a nulidade relativa precluirá sempre que transcorrido o prazo legal ou, na falta deste, sempre que a parte não se manifestar na primeira oportunidade que lhe aparecer nos autos. Em última análise, cita as meras irregularidades.


Eduardo Talamini classifica as nulidades em mera irregularidades, nulidades relativas e nulidades absolutas. As meras irregularidades são inobservâncias que nem mesmo em tese têm como gerar prejuízo às partes ou a terceiros nem mesmo à Jurisdição. Já as nulidades relativas seriam exatamente aquilo que identifica como anulabilidade. E as nulidades absolutas a seu turno, compreenderiam as relativas e as absolutas propostas por Galeno Lacerda. Isto ocorre porque o parâmetro de que se socorre para fazer essa sistematização é o grau de impositividade das normas. Se cogente a norma violada, tratar-se-á de nulidade absoluta. Se dispositiva, há nulidade relativa.




Fonte: Curso de Direito Processual Civil. Fredie Didier Júnior.