segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A Razoabilidade na Dogmática Jurídica Contemporânea

A noção de razoabilidade tem desempenhado, historicamente e com importância crescente ao longo das últimas décadas, papel extremamente relevante no setor da argumentação jurídica.
A razoabilidade funciona como standards para avaliação e crítica das possibilidades de decisão na interpretação da práxis judicial e possui conteúdo variável; por ser um valor de conceito indeterminado, gera controvérsias quando aplicada a casos concretos. De fato, na medida em que depende de uma avaliação subjetiva, não é possível estabelecer uma diretriz geral para todo e qualquer caso e, por isso, há que se avaliar cada situação de per si.
Tendo em vista que é um conceito valorativo, é imperioso estabelecer critérios para justificar juízos formulados em nome da razoabilidade, sob pena de transformá-la em conceito vazio, um verdadeiro sofisma.
Na maioria das Constituições, o fundamento da razoabilidade não está expresso, no entanto, existe corrente que a associa com a cláusula do Due Process of Law, dando-lhe, uma faceta substantiva. Há defensores de uma concepção da razoabilidade sob o fundamento jusnaturalista e outros a identificam com a cláusula de proibição do excesso – teoria do détourrnement du pouvir  do Direito Administrativo.
Para Robert Alexy, todos os atos institucionais de produção de direito são eivados de uma pretensão de correção presente quando o Juiz decide uma questão jurídica que envolve dois aspectos: a) pronunciamento judicial corretamente substanciado à luz do direito positivo; b) a decisão justa e razoável.
Quando se diz que a razoabilidade faz parte da pretensão de correção, significa afirmar que ela está implícita em todos os contextos de produção e aplicação do direito.
A razoabilidade, enquanto conceito valorativo, assume o papel de parâmetro para avaliar e criticar decisões judiciais particulares e, em última análise, funciona como critério para decidir uma questão de forma correta.
Há doutrinadores que retiram da razoabilidade a característica de princípio, haja vista sustentarem ser esta expressão reservada a um significado mais restrito que remete a um estado de coisas tido como ideal. Os autores argumentam que a razoabilidade está mais próxima de um standard, uma diretiva ou um postulado normativo-aplicativo, v. g., uma metanorma ou norma metodológica que estrutura a aplicação de princípios e regras do ordenamento jurídico.
Chaïm Perelman considera razoável é aquilo que deve ser visto como correto em determinado momento e, em face do conteúdo variável do postulado não haverá solução única, ou seja, a pluralidade de situações implicará em diversos resultados. A razoabilidade, no entanto, estabeleceria o limite para a tolerância que, se ultrapassado, tornaria as decisões ilegítimas.
A posição de Chaïm Perelman foi recebida com reservas, pois o critério é pouco frutífero na prática jurídica pelo fato de possuir baixa potencialidade crítica e por fixar uma moldura tão ampla que é capaz de abranger praticamente tudo.
Robert Alexy apresenta um conceito compreensivo de razoabilidade, definindo-a a partir dos elementos da lógica, verdade empírica e racionalidade meio/fim, acrescentando a correta compreensão dos interesses de terceiros eventualmente afetados pela medida, tratamento adequado aos interesses de todos e discussão crítica dos vários interesses e tradições em conflito.
A forma de entender a razoabilidade desenvolvida por Alexy fornece parâmetros adequados para toda e qualquer decisão de caráter prático e normativo, entretanto, ainda é uma noção carregada de abstração. A fim de se ter maior objetividade, tornando a razoabilidade um diretiva com força argumentativa, deve-se buscar critérios especificamente jurídicos.
Na visão de Luís Roberto Barroso, a razoabilidade, sob a ótica do direito constitucional, identifica-se com a proporcionalidade e três subprincípios (adequação, necessidade e proporcionalidade) forneceriam critérios de caráter formal, possibilitando distingui-los dos argumentos que operam o discurso jurídico, quando da aplicação da máxima da proporcionalidade.
A razoabilidade é um conceito que possui ligações com a justiça e equidade e tem alcance mais amplo do que a proporcionalidade, a qual, embora extremamente importante para as ponderações de princípios, tem se mostrado insuficiente para a criação de exceções a regras jurídicas válidas. De fato, quando a máxima da proporcionalidade é aplicada às relações jurídicas, analisar a questão sob o ponto de vista da razoabilidade torna-se dispensável.
Deve-se considerar que a razoabilidade é um conceito amplo o suficiente para abarcar equidade, exigência de um suporte empírico adequado para a regulação normativa e justificativa dos critérios de diferenciação à vista do princípio da igualdade.
A equidade é uma das facetas mais antigas da razoabilidade e exige a adaptação do direito ao caso concreto. Tal fato implica na rejeição do brocardo ita lex o dura lex sed lex, condicionando a aplicação do direito positivo à adequação da norma à realidade sobre a qual ela incidirá (se a lei é dura, será esta é que deverá ceder passo ao caso concreto e às suas exigências). Neste caso, estamos diante de situações cuja anormalidade torna desarrazoado a aplicação da norma geral, uma vez que as peculiaridades do caso concreto não levadas em consideração pelo legislador faz com que a aplicação da norma viole princípios fundamentais do ordenamento jurídico ou as razões justificadoras da norma.
Ao empregar a razoabilidade como equidade, tem-se que as regras jurídicas não estabelecem nada mais senão condições ordinariamente necessárias e presumidamente suficientes para as conseqüências que prevêem. Em toda regulação jurídica há certas pressuposições implícitas – definidoras de um contexto de aplicação das normas – que, tendo em vista os limites à precisão e à exaustividade dos enunciados normativos, não puderam ser expressamente previstos pelo legislador. A ausência dessas pressuposições implícitas – que, diga-se, compõem o verdadeiro direito não escrito – indica que não há necessidade de observância incondicional da norma.
A razoabilidade como equidade atua como teste para verificar a adequação da norma ao caso e, eventualmente, formular exceções às regras jurídicas existentes.
Ao contrário de um valor em si mesma, a razoabilidade é um valor-função porque fixa um parâmetro interpretativo para especificar os fatores de valoração que são relevantes para um julgamento sobre a existência ou não de justificativa nos casos em análise.
A razoabilidade atua entre o fato e a norma, na forma de parâmetro normativo (ou, talvez, metanormativo), na medida em que o postulado não se situa no nível das normas jurídicas propriamente ditas, mas no nível das metanormas ou diretivas que se voltam para o trabalho de busca da justiça do caso concreto.
A visão da razoabilidade como manifestação da equidade refere-se a questio facti, v. g., à pertinência e relevância dos fatos para a aplicação do direito.
Enquanto dever de congruência, a perspectiva da razoabilidade deve ser alterada. Embora qualquer juízo de congruência só possa ser formulado a partir de certas premissas empíricas extraídas da realidade, não se verifica apenas a aplicação de uma norma cuja validade é inquestionável, mas a justificabilidade dos próprios enunciados normativos.
A razoabilidade como dever de congruência exige a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação. Deve haver um suporte empírico adequado para a medida adotada. Nesta hipótese, a razoabilidade atua no plano de validade da norma ao verificar se há ou não um retrato suficientemente seguro da realidade extrajurídica.
Diante disso, a valoração das causas e as próprias fontes materiais do direito podem ser feitas pela razoabilidade.
Uma relação adequada entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada pelo legislador pode ser evocado pela razoabilidade que, neste caso, seria  vista como igualdade ou, mas especificamente, como medida de diferenciação de tratamento dado pela lei a certas situações particulares. O postulado funciona como parâmetro para aferição da violação à igualdade ou justiça formal, compreendendo a seleção dos fatores que devem ser considerados relevantes para um tratamento jurídico especial.
Pode-se buscar na razoabilidade fundamento para uma justificabilidade axiológica da decisão jurídica. Se fosse esse o caso, a razoabilidade pode estabelecer ligações entre direito e justiça exigindo do direito positivamente válido um mínimo de substância moral.
A razoabilidade como aceitabilidade racional seria uma propriedade final do processo de justificação jurídica, vinculando-se à concepção habermasiana de racionalidade comunicativa como forma de racionalidade prática. O problema central desta concepção é justamente a aceitabilidade racional das decisões jurídicas concretas, que abarca uma série de requisitos de caráter ideal. O principal deles é a idéia de certeza jurídica que é um dos fins que a argumentação jurídica busca alcançar, abarcando dois elementos: i) a exigência de que a arbitrariedade seja evitada (que se liga à previsibilidade dos comportamentos exigidos dos sujeitos de direito em geral e é alcançada se a decisão se mantém no quadro do ordenamento jurídico vigente); ii) a exigência de que a decisão seja apropriada.
A aceitabilidade racional compreenderia, além de uma racionalidade procedimental, uma aceitabilidade axiológica, que demanda a legitimidade da decisão (ou do resultado da interpretação). A razoabilidade compreenderia a combinação de elementos de justificação, que são argumentos jurídicos, empíricos e morais.
Robert Alexy assume postura polêmica ao lecionar que o conflito entre justiça e segurança jurídica pode ser resolvido no sentido de que o direito positivo, estabelecido por promulgação e força, tem prioridade mesmo quando seu conteúdo é impróprio ou injusto. Somente quando a contradição entre o direito positivo e a justiça atinge um nível intolerável é que o direito deve ser concebido como “falso direito” para a justiça.
Segundo a fórmula de Radbruch, a justiça ou substantive correctness é incorporada ao núcleo do próprio conceito de direito, fixando um mínimo de justiça material do qual nenhum ordenamento jurídico pode abrir mão. Desde o momento em que de adota a fórmula, é fixado o limite da extrema injustiça, que atua para demarcar o terreno dentro do qual o direito formalmente promulgado e socialmente eficaz pode possuir validade. Adota-se um conceito de direito mais rico, segundo o qual nenhuma norma de direito positivo pode permanecer válida quando contaminada, em nível intolerável, por extrema injustiça.
Caso a fórmula de Rabbruch seja incorporada aos critérios normativos de razoabilidade, haverá possibilidade de alargar os horizontes do jurista prático e fixar um grau mínimo de justiça para a aceitabilidade de qualquer decisão. A razoabilidade se tornaria, assim, uma ferramenta metodológica normativamente relevante par a harmonização – em casos extremos, eis que não deixa de haver uma prioridade prima facie dos valores “certeza” e “segurança” sobre “correção substantiva” – entre direito e moral, o que sem dúvida tornaria o direito um instrumento mais consistente para alcançar suas próprias funções sociais.
A razoabilidade pode ser vista, portanto, como uma ponte que liga produtivamente as esferas do direito e da moral, servindo de passaporte para ingresso do pós-positivismo no terreno onde ele realmente se faz necessário: a prática jurídica.
O controle objetivo da razoabilidade pode ser exercido a partir do momento em que toda norma de justiça válida deve satisfazer à condição de que as consequências e efeitos colaterais que, previsivelmente resultarem para satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ela ser universamente seguida, possam ser aceitas por todos os concernidos e preferidos a todas as consequências das possibilidades alternativas e conhecidas por regrarem.
A razoabilidade funciona, assim, como o cânone mais profundo para avaliar a justiça de uma decisão judicial.
Fonte: Leituras Complementares de Direito Constitucional – Controle de Constitucionalidade de Hermenêutica Constitucional. Organizador: Marcelo Novelino. A Razoabilidade na Dogmática Jurídica Contemporânea. Thomas da Rosa de Bustamante.