quinta-feira, 10 de setembro de 2009

O Direito Criado pelos Julgadores

Aos órgãos jurisdicionais é incumbida a tarefa de velar pela preeminência da norma de direito, logo, sua intervenção final será definitiva (final enforcing power). Essa constatação, embora não suscite maiores dúvidas quando direcionada ao caso concreto sub judice, exige sejam identificados os efeitos que as decisões dos tribunais superiores irradiarão sobre os inferiores, condicionando e direcionando a sua atuação. Admitido o efeito vinculante dos precedentes, característica inerente aos sistemas de common law, será inevitável o reconhecimento de que os tribunais dispõem de um poder normativo indireto, pois, apesar de os referidos precedentes não serem direcionados à vida de relação, terminarão por apreciá-la quando apreciada em Juízo.

O Direito Judicial reflete a atividade de definição do Direito (juris dictio) pelos tribunais, podendo assumir perspectivas concretas (v. g. solução de litígios) ou abstratas (v. g. controle de constitucionalidade de leis). No primeiro caso, assumindo uma postura retrospectiva, voltada para o passado; no segundo, com um postura normalmente prospectiva, direcionada ao futuro, à regulação das relações jurídicas vindouras.

A principal singularidade do Direito Judicial em relação ao comando geral de origem legislativa é a sua maior maleabilidade, somente persistindo a sua “densidade normativa” enquanto aplicada pelos órgãos jurisdicionais, acrescendo ser plenamente legítimo o avançar ou retroceder em seu entendimento. O iter operativo direciona-se, com maior intensidade, à especificação da norma individual, à delimitação do regramento incidente no caso concreto, o que não obsta à sua generalização, vindo a regular condutas concebidas em abstrato.

O Judiciário, em sua atividade de realização do Direito a partir da valoração da situação fática e do regramento posto pelo Legislativo, será responsável pela confecção de uma norma de regerá o caso concreto.

A norma geral não mais ocupa uma posição externa, meramente condicionadora e delimitadora da atividade jurisdicional, terminando por assumir o status de produto da própria função judicante. Partindo dos seus contornos abstratos, cabe aos órgãos jurisdicionais moldar o seu conteúdo à realidade ou mesmo expurgá-la da ordem jurídica, nesse último caso com o controle de constitucionalidade.

Não identificando, na disposição normativa geral, um alicerce idôneo à formação da norma individual, caberá ao Juiz socorrer-se de outras fontes de Direito para suprir a deficiência do ordenamento. Essa possibilidade consubstancia um princípio essencial e necessário de qualquer ordenamento jurídico, conferindo segurança social, é indicativa de plenitude hermenêutica da ordem jurídico-positiva formalmente válida.

Embora seja a função legislativa a sua natural expressão, em sistemas democráticos dotados de mecanismos de check and balances, o poder político também se projeta na esfera jurisdicional, o que faz sentir na fiscalização abstrata de constitucionalidade e na persecução de crimes de responsabilidade, isto sem olvidar os influxos ideológicos que naturalmente não se desprendem dos juízes no exercício da atividade judicante.

Em primeiro plano, deve-se ressaltar que a ratio do controle exercido pelo Poder Judiciário é a de velar para que o exercício do poder mantenha uma relação de adequação com a ordem jurídica, substrato legitimador de sua existência.

Conferindo à Constituição a condição de elemento polarizador das relações entre os poderes, torna-se evidente que os mecanismos de equilíbrio por ela estabelecidos não podem ser intitulados de antidemocráticos. O Juiz não é menos órgão do povo que os demais, pois, mais importante que a condição de mandatário do povo é a função desempenhada “em nome do povo”, aqui residindo a força legitimante da Constituição.

A disposição normativa geral e abstrata deve passar por um processo de concretização, em que o intérprete delineia o conteúdo da norma a partir da realidade e dos balizamentos postos pelo legislador. A norma geral, no entanto, não esgota o conteúdo das relações jurídicas que deve regular, devendo ser integrada pelas especificidades do caso concreto, do que resultará a definição da norma individual, com a correlata produção dos efeitos previstos, em potência, na norma geral.

A conclusão a ser alcançada para a aplicação da norma não se deduz de um raciocínio silogístico. A mecanicidade da atividade é logo afastada com a mera tarefa de fixação da premissa maior: identificar a norma vigente e aplicável, desvendando o seu conteúdo, solucionando conflitos aparentes de normas no tempo e no espaço ou mesmo colmatando lacunas é operação de índole essencialmente valorativa e que em muito desborda a simplicidade operativa preconizada pela teoria clássica, passando ao largo da mera lógica formal. Na delimitação e ulterior aplicação da norma é divisada uma certa margem de liberdade, maior ou menor conforme o caso, na individualização da norma geral, o que pode ensejar o surgimento do que se denomina de discricionariedade judicial.

Também a premissa menor não consubstancia algo preexistente na natureza perceptível aos sentidos: a situação fática deve ser reconstruída perante o órgão jurisdicional. Nessa operação de delineamento da base fática e da conseqüente filtragem dos aspectos relevantes, o Juiz não se limita à apreensão do fato juridicamente descontextualizado, projeta a realidade pelas lentes da norma, o que já é indicativo que não realiza uma operação seqüencial como a técnica do silogismo poderia sugerir. Fato e norma interpenetram-se, de modo que do juízo de fato desprende-se um inevitável juízo de valor, ainda que antecedente ao definitivo realizado com o delineamento da norma geral.

A interpretação dos juízos valorativos na premissa maior e na premissa menor permite concluir que as decisões judiciais consubstanciam estruturas complexas, mas essencialmente unitárias. Cada um dos aspectos que influenciaram a sua formação intelectiva, resultado de múltiplos juízos valorativos, articula-se com os demais de mofo a formar um ato mentalmente indivisível, ainda que, na forma, apresente uma aparência de silogismo.

Nos Estados que adotam o modelo de controle concentrado de constitucionalidade, é factível a existência de uma força determinante da jurisprudência constitucional, cabendo ao Tribunal Constitucional cotejar a produção normativa com os contornos da ordem constitucional, assegurando a preeminência desta. Os tribunais, no entanto, atuam secundum constitucionis, não poderão criar paradigmas de controle não contemplados nesta ou substituir-se ao legislador em suas opções políticas.

No que concerne à discricionariedade legislativa para a edição de uma nova disposição normativa geral, os efeitos da declaração de inconstitucionalidade em sede de fiscalização abstrata apresentam variações. Há sistemas que contraditoriamente aceitam a reedição de preceito idêntico pelo legislador e outros prestigiando erga omnes da decisão, extensivo aos particulares e às autoridades públicas, vedam que o legislador reproduza o preceito sem prévia alteração da norma constitucional com ela incompatível, conferindo-lhe verdadeira força de lei. Nesse último caso, realça-se o papel do Direito Judicial, que assume feições não só supressivas como obstativas.

Tratando-se de norma constitucional dependente de intervenção legislativa para a obtenção de ampla eficácia da legislação exigida, no lapso fixado no tempo ou em prazo razoável, caracterizará omissão constitucional, o que, no entanto, não permite que o Judiciário, sem expressa autorização constitucional substitua-se ao legislador e supra a omissão, editando uma disposição normativa ornada com atributos da generalidade e da abstração. Tem-se reconhecido, por expressa previsão constitucional ou a partir de uma interpretação construtiva, a possibilidade de declararem a ilicitude da conduta, cientificando o órgão responsável pela omissão, não sendo prestigiado o Direito Judicial substitutivo.

Resultado mais satisfatório, sob o prisma da máxima efetividade das normas constitucionais, pode ser alcançado não com a prolação de decisão substitutiva da própria lei, mas com a reengenharia interpretativa das normas já existentes, nelas reconhecendo o potencial de integração da Constituição ou mesmo a sua aplicação direta. A atividade dos tribunais afasta-se da abstração inerente à lei e volta-se ao caso concreto, não chegando propriamente a constituir um regramento de cunho geral, o que é indicativo de um Direito Judicial concorrente com a norma preexistente, quer constitucional, quer legal.

Somente as omissões consideradas absolutas, que geram no plano infraconstitucional lacunas não colmatáveis, será defeso ao Judiciário avançar na atividade de integração da Constituição, necessariamente dependente da concretização legislativa. Não deve ser descartada a possibilidade de a Constituição permitir ao órgão jurisdicional eu, suprindo a omissão legislativa, integre a norma constitucional com o fim de prestigiar valores essenciais aos Estado, como é o caso da preservação dos direitos fundamentais. Aqui, o Direito Judicial atuará como substitutivo da lei, incursionando na esfera que lhe é inerente, o que redundará no redimensionamento da clássica divisão entre as funções estatais, tendo como desiderato a preservação da própria razão de ser da organização estatal: o bem comum.

Nas omissões legislativas parciais, em que o legislador atua com violação ao princípio da igualdade, excluindo do alcance da disposição normativa geral situações jurídicas em tudo similares àquelas contempladas, releva analisar a postura a ser assumida pelo órgão jurisdicional e, por via reflexa, o papel do Direito Judicial.

Em linha de princípio, poderiam ser quatro as soluções alvitradas pelo órgão jurisdicional ao reconhecer a inconstitucionalidade da discriminação: a) não aplicar a norma, mas proferir decisão que regule, sem violação ao princípio da igualdade, as situações por ela alcançadas (Direito Judicial substitutivo de lei); b) aplicar a norma ampliando o seu alcance às situações indevidamente excluídas (Direito Judicial corretivo); c) aplicar a norma, tal qual delineada pelo legislador, sob o fundamento de que o vício parcial não obsta a produção de efeitos em relação às situações por ela alcançadas (Direito Judicial concorrente); d) simplesmente não aplicar a norma (Direito Judicial supressivo).

No Direito Judicial concorrente interpretação e aplicação da norma consoante os balizamentos traçados pelo legislador; no supressivo, há interpretação e não aplicação da norma, prestigiando-se a preeminência da Constituição, norma superior e que deve consubstanciar o seu fundamento de validade. Em ambos os casos, o Judiciário parte de uma norma geral: no primeiro alcançando a individualização da norma individual; no segundo reconhecendo a impossibilidade de formulá-la.

A omissão, no contexto teleológico-sistemático da norma geral, adquire a essência e os efeitos da negatória, a qual, na medida em que dissonante do princípio da igualdade, justifica a sua supressão, de modo a tornar efetivo e integral o potencial regulatório da norma. A exclusão, o limite e a proibição, quer expressos, quer implícitos, são ontologicamente invariáveis, o que legitima a identidade de tratamento.

Questão tormentosa e que invariavelmente redundará numa posição de auto-contenção dos tribunais, reside nos efeitos financeiros decorrentes do Direito Judicial corretor da lei. Enquanto a ampliação das garantias individuais, em especial com o realinhamento da esfera jurídica imune à atuação estatal, ensejará um non facere, a extensão de direitos prestacionais (v. g. indevida concessão de aumento remuneratório somente a determinada categoria de servidores públicos) inicialmente não previstos na norma culminará com um dare, com inevitável impacto nas finanças públicas.

Hodiernamente, tem-se a supressão do positivismo clássico, em que os princípios deixam de ser menores complementos das regras, passando a serem vistos como formas de expressão da própria norma, que é subdividida em regras e princípios – que carregam consigo acentuado grau de imperatividade, exigente a necessária conformação de qualquer conduta aos seus ditames, o que denota o seu caráter normativo (dever ser). Sendo cogente a observância dos princípios, o ato que deles destoe será inválido, conseqüência esta que representa a sanção para a inobservância de um padrão normativo cuja reverência é obrigatória.

A maior necessidade de densificação dos princípios constitucionais à luz dos valores sociais, com imperiosa preservação da unidade do sistema, bem demonstra a importância assumida do Direito Judicial, o qual, embora atuando concorrentemente, vale dizer, em busca da consecução de fins comuns, integra os contornos da norma geral.

Quanto à identificação da linha limítrofe que separa as regras dos princípios, as concepções doutrinárias podem ser subdivididas, basicamente, em duas posições: de acordo com a primeira, denominado de concepção fraca dos princípios, a distinção para com as regras é quantitativa, ou de grau; enquanto a segunda, intitulada de concepção forte dos princípios, sustenta que a diferença é qualitativa.

Os princípios se distanciam das regras na medida em que permitem uma maior aproximação entre o direito e os valores sociais, não expressando conseqüências jurídicas que se implementam automaticamente com a simples ocorrência de determinadas condições, o que impede que sejam previstas, a priori, todas as suas formas de aplicação. A efetividade dos princípios não é resultado de uma operação meramente formal e alheia a considerações de ordem moral. Os princípios terminam por indicar determinada direção, mas não impõem uma solução particular.

Os princípios possuem uma dimensão de peso, o que influirá na solução dos conflitos, permitindo a identificação daquele que irá preponderar. Quanto às regras, por não apresentarem uma dimensão de peso, a colisão entre elas será resolvida pelo prisma da validade, operação que será direcionada pelos critérios fornecidos pelo próprio ordenamento jurídico: critério hierárquico (lex superior derogat inferiori), critério cronológico (lex posterior derogat priori) e critério da especialidade (lex specialis derogat generali).

Enquanto as regras impõem determinado padrão de conduta, os princípios são normas jurídicas impositivas da de uma otimização, ordenando que algo seja realizado na melhor medida possível, podendo ser cumpridos em diferentes graus, sendo que a medida do cumprimento dependerá tanto das possibilidades reais com também jurídicas.

A distinção existente entre regras e princípios é melhor identificada a partir da visualização da espécie de solução exigida para os casos de colisão, razão pela qual merece ser encampada a concepção forte dos princípios.

Característica marcante dos sistemas de common law, identificados como um corpo central de normas não decorrentes propriamente do Direito escrito, mas, sim, dos padrões continuamente derivados das decisões judiciais, a força normativa dos precedentes indica que os tribunais inferiores devem ficar adstritos à interpretação jurídica traçada pelos tribunais superiores, o que costuma ser identificado pelo princípio do stare decisis ou, em sua formulação completa, do stare decisis et non quieta movere.

Trata-se de um sistema baseado no case law, em que a elaboração a norma individual regerá o caso concreto contribuirá para a integração e o envolver da norma geral.

Os precedentes podem assumir contornos declarativos ou criativos. Nos primeiros, os tribunais limitam-se a interpretar e a aplicar as disposições normativas já existentes, definindo o seu conteúdo e mantendo uma relação de continuidade no envolver da norma geral, o que consubstancia manifestação do Direito Judicial concorrente. Nos precedentes criativos, ao revés, os tribunais inovam na ordem jurídica. A freqüência dos precedentes declarativos e dos criativos é diretamente proporcional ao grau de desenvolvimento do respectivo sistema judicial.

De positivo, destaca-se a importância dos precedentes na uniformização da atividade interpretativa do Direito, na preservação da segurança jurídica nas relações sociais, evitando-se a multiplicação de opiniões dissonantes entre os distintos órgãos jurisdicionais, e na conseqüente manutenção do princípio da igualdade.

Apesar de a jurisprudência ser considerada uma fonte formal de Direito nos sistemas romano-germânico, não se costuma divisar o seu caráter vinculativo. A jurisprudência atua como vetor auxiliar na interpretação das disposições normativas e mecanismo de integração das lacunas existentes, o que não retira uma certa ascendência moral das decisões proferidas pelos tribunais superiores, em especial por indicarem a posição a ser adotada em sendo o caso por eles examinado em sede recursal. Apesar de os juízes estarem submetidos à lei, a jurisprudência é a lei aplicada por eles, vale dizer, é a lei concreta, transposta da plasticidade de suas linhas estruturais para a realidade. Por privilegiarem o papel criativo da legislação, os sistemas de raiz romano-germânica não costuma tratar a jurisprudência como fontes de regras de direito, mas como fonte de Direito.

O Direito brasileiro, de raiz romano-germânica, teve introduzido em seu sistema jurídico a denominada súmula vinculante, a ser editada exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal. Além de adstrita a determinada matéria, a aprovação da súmula exige uma maioria qualificada (oito dos onze Ministros) e pressupõe a sedimentação de determinado entendimento no âmbito do Tribunal, o que é indicativo do âmbito de sua excepcionalidade e da preocupação de não alijar os demais órgãos jurisdicionais do processo construtivo do Direito.

Essa súmula vinculante, no entanto, longe de ocupar um papel de destaque na própria criação da regra de direito, o que é da essência dos sistemas de common law, quando utilizada, desempenhará um papel essencialmente declarativo, fixando a interpretação dos padrões normativos preexistentes. Isto, no entanto, não diminui a importância do Direito Judicial concorrente, que contribuirá para a exatidão de conteúdo da disposição normativa posta pelo legislador, constituinte ou constituído.

Fonte: Leituras Complementares de Direito Constitucional – Controle de Constitucionalidade de Hermenêutica Constitucional. Organizador: Marcelo Novelino. Direito Judicial e Teoria da Constituição. Emerson Garcia.

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