sábado, 5 de setembro de 2009

Jurisdição no Processo Civil

A jurisdição é a realização do direito em uma situação concreta, por meio de terceiro imparcial, de modo criativo e autoritativo (caráter inevitável da jurisdição), com aptidão para tornar-se indiscutível. É função criativa. Cria-se a regra jurídica do caso concreto e, muitas vezes, a própria regra abstrata que deve regular a situação. O dever de decidir, imposto aos órgãos jurisdicionais, confere-lhes, por conseqüência, o poder de criar a solução do caso em exame, à luz do sistema jurídico, principalmente à luz do texto constitucional.

Em virtude do chamado pós-positivismo que caracteriza o atual Estado constitucional, exige-se do Juiz uma postura muito mais ativa, cumprindo-lhe compreender as particularidades do caso e encontrar, na norma geral e abstrata, uma solução que esteja em conformidade com as disposições e princípios constitucionais, bem assim com os direitos fundamentais.

O princípio da supremacia da lei, amplamente influenciado pelos valores do Estado liberal, que enxergava na atividade legislativa algo perfeito e acabado, atualmente deve ceder espaço à crítica judicial, no sentido de que o magistrado, necessariamente, deve dar à norma geral e abstrata aplicável ao caso concreto uma interpretação conforme a Constituição, sobre ela exercendo o controle de constitucionalidade se for necessário, bem como viabilizando a melhor forma de tutelar os direitos fundamentais.

Ao se deparar com os fatos da causa, o Juiz deve compreender o seu sentido, a fim de poder observar qual a lei que se lhes aplica. Identificada a lei, ela deve ser conformada com a Constituição através das técnicas de interpretação conforme, de controle de constitucionalidade em sentido estrito e de balanceamento dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, o julgador cria uma norma jurídica (conforme a norma constitucional) que vai servir de fundamento jurídico para a decisão a ser tomada na parte dispositiva do pronunciamento. É nessa parte dispositiva que se contém a norma jurídica individualizada, ou simplesmente norma individual (igual à definição da norma para o caso concreto, solução da crise de identificação).

A norma jurídica criada e contida na fundamentação do julgado compõe o que se chama de ratio decidendi, as razões de decidir.

Há casos que o enunciado normativo é composto por termos do conteúdo indeterminado ou vago. Nesses casos, caberá ao magistrado, diante de uma situação concreta, definir a extensão e o conteúdo destes elementos da hipótese normativa.

A distinção entre cláusula geral e conceito jurídico indeterminado é bem sutil; ambos pertencem ao gênero conceito vago. No conceito jurídico indeterminado, o legislador não confere ao Juiz competência para criar o efeito jurídico do fato cuja hipótese de incidência é composta por termos indeterminados; na cláusula geral, além da hipótese de incidência ser composta por termos indeterminados, é conferida ao magistrado a tarefa de criar o efeito jurídico decorrente da verificação da ocorrência daquela hipótese normativa.

Não há discricionariedade nos casos em que o enunciado normativo é composto por conceitos indeterminados, mas a conseqüência jurídica é predeterminada pelo legislador; nessa hipótese, preenchidos os pressupostos normativos, ao magistrado não se conferem opções; se se trata de aplicação de uma cláusula geral, é possível falar em discricionariedade judicial, pois o legislador deixa ao magistrado a tarefa de definir qual a conseqüência da incidência da norma no caso concreto.

A criação de norma individualizada por terceiro imparcial, embora seja uma característica da jurisdição, não lhe é exclusiva. Existem os tribunais administrativos das agências reguladoras, que funcionam como terceiros imparciais (embora órgãos da Administração), criam normas jurídicas individualizadas, mas não podem ser designados de órgãos jurisdicionais, exatamente porque as suas decisões não têm aptidão de ficaram imutáveis pela coisa julgada material.

A jurisdição deve ser vista como poder, função e atividade. É manifestação do poder estatal, conceituado como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Expressa, ainda, a função dos órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. A jurisdição é um complexo de atos do Juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete.

Os equivalentes jurisdicionais são formas de solução de conflito, autorizadas pelo ordenamento jurídico em que não há exercício da atividade estatal. O processo, como técnica do Estado, visa, portanto, à solução deste conflito de interesses por um ato de autoridade imparcial e desinteressada. São equivalentes jurisdicionais:

a) Autotutela: trata-se de solução de conflito de interesses que se dá pela imposição da vontade de um deles, com o sacrifício do interesse do outro. O “juiz da causa” é uma das partes. É solução vedada, como regra, pelos ordenamentos jurídicos civilizados. É conduta tipificada como crime: exercício arbitrário das próprias razões. Quando autorizada por lei, é passível de controle posterior pela solução jurisdicional, que legitimará ou não a defesa privada.

b) Autocomposição: é a forma de solução do conflito pelo consentimento espontâneo de um dos contendores em sacrificar interesse próprio, no todo ou em parte, em favor de interesse alheio. A autocomposição é gênero, do qual são espécies: i) transação (concessões mútuas); ii) submissão de um à pretensão do outro (reconhecimento da procedência do pedido); iii) renúncia da pretensão deduzida.

c) Mediação: é uma técnica não-estatal de solução de conflitos, pela qual um terceiro se coloca entre os contendores e tenta conduzi-los à solução autocomposta. Trata-se de uma técnica para catalisar a autocomposição.

d) Arbitragem: é técnica de solução de conflitos mediante a qual os conflitantes buscam em uma terceira pessoa, de sua confiança, a solução amigável e imparcial. É, portanto, heterocomposição. No Brasil, a arbitragem é regulamentada pela Lei n.º 9.307/96 e pode ser constituída por meio de um negócio jurídico denominado convenção de arbitragem, compreendendo tanto a cláusula compromissória (convenção que as partes resolvem que as divergências oriundas de certo negócio jurídico serão resolvidas pela arbitragem, prévia e abstratamente) como o compromisso arbitral (acordo de vontades para submeter uma controvérsia concreta, já existente, ao juízo arbitral, prescindindo do Poder Judiciário). Verifica-se, portanto, que o compromisso arbitral é um contrato por meio do qual se renuncia à atividade jurisdicional, relativamente a uma controvérsia específica e não simplesmente especificável. Para efetivar a cláusula compromissória é necessário que se faça um compromisso arbitral, que regulará o processo arbitral para a solução do conflito que surgiu. O controle judicial da sentença arbitral ocorre apenas em relação à sua validade, é defeso o exame do mérito (perquirir a justiça da decisão ou a apreciação errônea da prova pelos árbitros). Diante disso, pode-se dizer que a arbitragem na legislação brasileira não é um equivalente jurisdicional, mas a própria jurisdição, cuja diferença é o fato de ser privada e ter o juiz escolhido pelos litigantes.

São características da jurisdição:

a) Substitutividade: proposta por Chiovenda, consiste na circunstância de o Estado, ao apreciar o pedido, substituir a vontade das partes, aplicando ao caso concreto a “vontade” da norma jurídica. Em verdade, trata-se do verdadeiro critério diferencial dessa função estatal. Na atividade jurisdicional, o interesse realizado pelo Estado-Juiz não é seu, mas sim de outros sujeitos. Na jurisdição, o órgão judicial não formula juízo sobre a própria atividade, mas sobre atividade alheia.

b) Imparcialidade: para aplicar o direito subjetivo ao caso concreto, o órgão judicial há de ser imparcial. Não se pode confundir a imparcialidade com a neutralidade, o qual é um mito, porquanto não se pode esperar ser o Juiz desprovido de vontade inconsciente. Ser imparcial é não ter interesse no litígio, o Juiz deve tratar as partes com igualdade.

c) Lide: Carnelutti dizia que a jurisdição consistia na justa composição da lide. Para essa concepção, só haveria jurisdição se houvesse lide (conflito qualificado pela pretensão de alguém e pela resistência de outrem). Assim, a atividade jurisdicional pressuporia sempre uma situação contenciosa. Na realidade, a lide não é característica da jurisdição, pois, se assim fosse, seria difícil explicar a jurisdição constitucional (controle abstrato de constitucionalidade), as ações preventivas, as ações constitutivas necessárias e a jurisdição voluntária.

d) Monopólio do Estado: registre-se que com a remodelação da arbitragem no direito brasileiro, essa característica restou mitigada. Não se pode olvidar que a sentença arbitral prescinde de homologação pelo Poder Judiciário para que possa ser executada.

e) Inércia: atualmente, é vista com temperamentos. Ao magistrado são atribuídos amplos poderes de direção do processo, inclusive com a possibilidade de determinar, sem provocação, a produção dos meios de prova para a formação do seu convencimento. Ressalte-se a existência dos pedidos implícitos, que são autorizações legais para que o julgador conceda tutela jurisdicional sem poder geral de efetivação de suas decisões, estando autorizado a tomar todas as providências que reputar adequadas e necessárias para implementar na prática seu comando, mesmo que não estejam previstas expressamente em lei.

f) Unidade: a jurisdição é poder estatal, portanto, una.

g) Definitividade: é a aptidão para a produção de coisa julgada material, entendida como a situação jurídica que diz respeito exclusivamente às decisões jurisdicionais. A coisa julgada é uma opção política do Estado, pois nada impede que o legislador retire de certas decisões e hipóteses a aptidão de ficar a ela submetida.

A jurisdição tem três fins:

a) Jurídico: consiste na autuação da vontade concreta da lei.

b) Social: é a promoção do bem comum, com a pacificação, com justiça pela eliminação dos conflitos.

c) Político: é aquele pelo qual o Estado busca afirmação de seu poder, além de incentivar a participação democrática e a preservação do valor liberdade, com a tutela das liberdades públicas por meio dos remédios constitucionais.

São princípios que regem a atividade jurisdicional:

a) Investidura: a jurisdição só pode ser exercida por quem tenha sido regularmente investido na autoridade de juiz.

b) Territorialidade: os magistrados só têm autoridade nos limites territoriais do seu Estado, ou seja, nos limites do território de sua jurisdição. O Código de Processo Civil mitigou este princípio na hipótese de o imóvel disputado estar localizado em mais de uma comarca, quando a competência do Juízo que conhecer da causa se estenderá sobre todo o imóvel (artigo 107); bem como na hipótese em que se permite a prática de atos de simples comunicação processual em comarcas contíguas (limítrofes) ou da mesma região metropolitana, independentemente de carta precatória (artigo 230).

c) Indelegabilidade: nas cartas precatórias não há delegação, pois sequer há competência a ser delegada. O Juiz, ao pedir a cooperação, simplesmente o faz porque não pode agir. Observe-se que a Constituição Federal abre uma hipótese de delegação (artigo 93, inciso XI) quando autoriza a delegação da competência do Tribunal Pleno para o órgão especial deste mesmo Tribunal. Atos de administração e de mero expediente podem ser delegados.

d) Inevitabilidade: as partes hão de submeter-se ao quanto decidido pelo órgão jurisdicional.

e) Inafastabilidade: prescreve o artigo 5º, inciso XXXV da Constituição Federal que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão da direito. O direito de ação não se vincula à efetiva procedência do alegado, ele existe independentemente da circunstância de ter o autor razão naquilo que pleiteia, é direito abstrato. O direito de ação é o direito à decisão judicial tout court. A única ressalva a este princípio consiste na arbitragem. O Constituição Federal não exige o esgotamento das vias administrativas para a submissão da questão ao Poder Judiciário, exceto no que concerne às competições esportivas. Constitucionalizou-se, também, a tutela preventiva, a tutela de urgência, a tutela contra o perigo, legitimando ainda mais a concessão de provimentos antecipatórios e cautelares. O princípio da inafastabilidade garante uma tutela jurisdicional adequada à realidade jurídico-substancial que lhe é trazida para solução; garante o procedimento, a espécie de cognição, a natureza do provimento e os meios executórios adequados às peculiaridades da situação de direito material. Da tutela jurisdicional adequada extrai-se a garantia do devido processo legal.

f) Juiz natural: é o juiz devido. Formalmente, é o juiz competente de acordo com as regras gerais e abstratas previamente estabelecidas, não é possível a determinação de um juízo post facto ou ad personaum. Substancialmente, consiste na exigência da imparcialidade e independência do magistrado. As regras de distribuição servem exatamente para fazer valer a garantia do juiz natural e é por isso que o desrespeito às regras de distribuição por dependência implica a incompetência absoluta. Proíbem-se o poder de comissão (criação de juízos extraordinários) e o poder de avocação (alteração das regras predeterminadas de competência). Há uma corrente doutrinária que defende a existência da figura do promotor natural e espraia os baldrames do princípio do juiz natural para o âmbito administrativo.

A jurisdição voluntária (integrativa) é uma atividade estatal de integração e fiscalização. Busca-se do Poder Judiciário a integração da vontade, para torná-la apta a produzir determinada situação jurídica. Diante disso, diz-se que a jurisdição não é voluntária, pois não há opção. A ela aplicam-se as garantias do processo e da magistratura. Tem como características a inquisitoriedade e a possibilidade de decisão fundada em equidade, quando expressamente autorizado por lei. A doutrina é reticente no que diz respeito á intimação do representante do Ministério Público em todo procedimento de jurisdição voluntária, considera-se necessária apenas quando houver discussão de direitos indisponíveis.

Os procedimentos de jurisdição voluntária podem ser classificados em:

a) Receptícios: a atividade judicial limita-se a registrar, documentar ou comunicar manifestações de vontade.

b) Probatórios: a atividade judicial limita-se à produção de provas.

c) Declaratórios: o magistrado limita-se a declarar a existência ou inexistência de uma situação jurídica.

d) Constitutivos: são aqueles em que a criação, modificação ou extinção de uma situação jurídica dependem da ocorrência da vontade do Juiz, por meio de autorizações, homologações, etc.

e) Executórios: o Juiz é demandado para exercer uma atividade prática que modifica o mundo exterior.

f) Tutelares: são aqueles em que a proteção de interesses de determinadas pessoas que se encontram em situação de desamparo é confiada ao Poder Judiciário, que pode instaurar os procedimentos ex officio.

Prevalece na doutrina brasileira a concepção de que a jurisdição voluntária é a administração pública de interesses privados feita pelo Poder Judiciário. A síntese desse pensamento é a concepção de Frederico Marques, para quem a jurisdição voluntária seria materialmente administrativa e subjetivamente judiciária.

A corrente que entende a jurisdição voluntária como atividade jurisdicional entende que há lide, pois os casos são potencialmente conflituosos e por isso mesmo são submetidos à apreciação judicial. É por isso que se impõe a citação dos interessados que podem não opor qualquer resistência, mas não estão impedidos de fazê-lo.

Também sustentam a tese de a jurisdição voluntária ser atividade jurisdicional as seguintes características: I) o fato de a jurisdição voluntária ser inevitável e exercida por juízes, que aplicam o direito objetivo em última instância; II) ser aplicada por meio do processo em que devem estar presentes todos os pressupostos para o desenvolvimento válido; III) o Juiz atuar como terceiro imparcial; IV) existir uma ação, denominada por Pontes de Miranda como ação de jurisdição voluntária; V) haver partes, pois a partir do momento em que o processo surge, a situação jurídica dos interessados e dos postulantes se altera, sendo-lhes exigível os deveres e conferidos os direitos das partes.

Ao contrário do que se afirma, há coisa julgada na jurisdição voluntária, pois a decisão somente pode ser modificada por fato superveniente. Se nada mudar, tem de ser respeitada. Toda decisão judicial submete-se à cláusula rebus sic stantibus, são normas concretas criadas para regular determinada situação de fato que, se for alterada, exige a criação de outra norma jurídica concreta.

Fonte: Curso de Direito Processual Civil. Fredie Didier Júnior.

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