terça-feira, 25 de maio de 2010

Poder Constituinte

O poder constituinte é a fonte de produção das normas constitucionais, o poder de fazer uma Constituição e ditar as normas fundamentais que organizam os podres do Estado. O poder constituinte é poder onipotente e expansivo, extraordinário no tempo e no espaço.

Como a função da soberania nacional, o poder constituinte é o poder de constituir, reconstituir e reformular a ordem jurídica estatal. Tanto pode ser exercido para a organização originária de um agrupamento nacional ou popular quanto para constituir, reconstituir ou reformular a ordem jurídica de um Estado já formado.

É assim, poder político que antecede ao poder do Estado, e que não encontra justificativa em si mesmo, senão que depende de considerações extras e pré-jurídicas para se legitimar, ou de outro meio que possa expressar a força constituinte.

A titularidade do poder constituinte não se confunde com o seu exercício, que se manifesta por meio de um grupo revolucionário de uma assembléia constituinte, ou de outro meio que possa expressar a força constituinte.

É o poder constituinte um poder superior e distinto dos demais poderes.

No que se refere à titularidade do poder constituinte, considere-se a teoria que vê o povo como seu titular, e aquela que confunde sua titularidade com a pessoa ou o grupo que detém o poder de dizer o direito.

Só o povo real, entendido como comunidade aberta de sujeitos constituintes que pactuam e consentem no modo de governo para a cidade, e que não se confunde com o corpo eleitoral ou povo participante nos sufrágios, é que tem o poder de disposição e conformação da ordem político-social,

Afasta-se, com esse entendimento, sobretudo a titularidade do poder constituinte no governante ou no grupo constituinte que outorga a Constituição, pois se aquele poder guarda relação de intimidade com a força, ele é depositário do consenso, da vontade comum e das expectativas da comunidade, que só o obtém partindo da premissa de que a Constituição será democrática e, portanto, o próprio poder constituinte.

A distinção ente poder constituinte e poderes constituídos tem maior relevância nas Constituições rígidas, onde resulta a clara ocorrência de um poder inicial e criador da Constituição, destacado de um outro poder encarregado de alterá-la, circunstância que não se verifica nas Constituições flexíveis pela confusão existente entre poder constituinte e poderes constituídos (o mesmo poder ordinário que estabelece as regras jurídicas originárias promove alterações na Constituição).

Para os positivistas, como poder de fato, o poder constituinte se funda em si mesmo, não se baseia em regra de direito anterior, pois se entende por Direito apenas o Positivo, isto é, aquele posto pelo Estado.

Os teóricos do poder constituinte, como poder de direito, admitem a existência de um poder natural, de que resultam regras de Direito Natural, anteriores ao Direito Positivo, decorrentes de uma natureza humana e da própria idéia de justiça.

São os jusnaturalistas, para os quais o direito na se resume à vertente estatal, positivado pelos órgãos oficiais do Estado. É que antes dele existe o direito natural, que o informa e condiciona.

Destaca-se a posição de Paulo Bonavides, que reconhece no poder constituinte uma faculdade meramente política. Esclarece o eminente constitucionalista que o poder constituinte, embora de natureza extrajurídica, deve adequar-se ao plano essencialmente político. Enquanto poder de elaborar a Constituição seria poder extrajurídico, que teria legitimidade em si mesmo, conferindo-se, às vezes, um teor de poder revolucionário. Como poder de fato, deve-se, no entanto, ressaltar a questão de sua legitimidade, da titularidade, em que se considerariam os valores e a soberania encarnados na nação.

O poder constituinte é essencialmente soberano, pela capacidade de estabelecer originária e livremente a configuração jurídico-política do Estado e de sua Constituição, adotando determinadas opções políticas fundamentais.

Soberano que seja, o poder constituinte não é, todavia, absoluto; acha-se vinculado à idéia de legitimidade revelada pelas estruturas políticas, econômicas e sociais, dentre outras dominantes na sociedade, bem como pelos valores e princípios historicamente localizados, os quais deverão infletir na sua obra originária, a Constituição, e que portanto constituem os seus limites materiais. Daí falar-se em poder constituinte material e formal.

O poder constituinte material, de auto-conformação do Estado, consoante determina idéia de direito, que se identifica com a força política geradora da mudança institucional, se inspira em idéias políticas e modela novo regime político, devendo harmonizar-se com os anseios dos diferentes grupos sociais.

O poder constituinte material, antecedente do formal, determina o conteúdo da Constituição. Traduz-se na força política ou social, na idéia de direito inauguradora da nova ordem constitucional.

O poder constituinte formal revela-se na entidade (ou grupo constituinte) que formaliza as normas jurídicas a idéia de direito consentida num determinado momento histórico, conferindo estabilidade e permanência à nova situação.

O poder constituinte formal pode estruturar-se sob várias formas: por ato constituinte unilateral singular, ato constituinte unilateral plural, e ato constituinte bilateral ou plurilateral.

Sob a forma de ato constituinte unilateral – um único ato, um único órgão: outorga materializa a Constituição por meio: da outorga (não há manifestação por representantes do povo nesse processo); de atos de autoridade constitutiva de um novo Estado; de aprovação por assembléia representativa ordinária (nestes casos, há continuidade do poder constituinte material); de aprovação por assembléia formada especificamente (chamada de Assembléia Nacional Constituinte ou Convenção)

São formas de atos unilaterais plurilaterais – ato de representação mais ato de manifestação direta: aprovação por referendo, prévio ou simultâneo da eleição da Assembléia Nacional Constituinte, de um ou vários grandes princípios ou opções constitucionais e, a seguir, elaboração da Constituição, de acordo com o sentido da votação; definição, por assembléia representativa ordinária, dos grandes princípios, elaboração de projeto de Constituição pelo Governo, e aprovação por referendo final; promulgação da Constituição por assembléia constituinte, seguida de referendo; promulgação por órgão provindo da Constituição anterior, em subseqüente aprovação popular; promulgação, por autoridade revolucionária ou órgão legitimado pela revolução seguida de referendo.

Também as presente hipóteses assentam-se na legitimidade democrática (com mais ou menos pluralismo), combinando institutos representativos e democracia direta ou semidireta.

Finalmente, os atos constituintes bilaterais ou plurilaterais, ou seja participação de instâncias distintas na elaboração do poder representativo: elaboração e aprovação da Constituição por assembléia representativa com sanção do monarca; aprovação da Constituição por assembléia federal, seguida de ratificação pelos Estados componentes da União.

O poder constituinte originário se reveste das seguintes características:

- é inicial, pois não se funda em nenhum poder e porque não deriva de uma ordem jurídica que lhe seja anterior. É ele que inaugura uma ordem jurídica inédita;

- é autônomo, porque igualmente não se subordina a nenhum outro;

- é incondicionado, porquanto não se sujeita a condições nem a fórmulas jurídicas para sua manifestação;

- é poder limitado, condicionado, pois o fático, o critério do justo, o tempo em que se vive, a interdependência dos povos, o sentido comum e o pragmático, os costumes, os ideais e as crenças, as forças resistentes que cumprem função contra-poderes, moderam e neutralizam o mais entusiasmado ímpeto revolucionário.

As limitações de fato estão em que, quem estabelece uma Constituição, não pode chocar-se frontalmente com as concepções mais arraigadas – a cosmovisão – da comunidade, porque, do contrário, não obterá a adesão dessa comunidade para as novas instituições, que permanecerão letra morta, senão ineficazes.

Quanto aos limites de direito, o poder constituinte originário é limitado pelo direito internacional e suas regras fundamentais, especialmente aquelas que tutelam os direitos do homem.

Jorge Miranda distingue três categorias de limites ao poder constituinte: a) limitações transcendentes, que provêm de imperativos de direito natural, de valores éticos superiores, e de uma consciência coletiva, como os que predem aos direitos fundamentais conexos com a dignidade da pessoa humana; b) limites imanentes, que se ligam à configuração do Estado, à sua soberania e, de alguma maneira, à forma de Estado e à legitimidade política em concreto; c) limites heterônomos, provenientes da conjugação de outros ordenamentos jurídicos, e podem referir-se tanto a regras de Direito Internacional, de que resultem obrigações para todos ou determinado Estado, quanto para regras de Direito Interno, quando o Estado seja composto ou complexo e complexo o seu ordenamento jurídico: neste caso há dupla valência dos limites imanentes e heterônomos.

Anote-se outra característica do poder constituinte originário, que é ser ele extraordinário ou invulgar, pois a inauguração de uma ordem jurídica nova constitui fato incomum, embora o poder constituinte material permaneça latente em toda a existência do Estado, apto a emergir e a atualizar-se a qualquer instante.

O poder constituinte derivado, ou de reforma da Constituição, é derivado, pois provém de outro poder, que é o originário; é subordinado, por vincular-se ao poder constituinte originário, já que o seu exercício se verifica dentro de limites e condições estabelecidos na própria Constituição.

Não é próprio, entretanto, deste poder elaborar uma nova Constituição, em substituição da idéia de direito que deu origem ao ato constituinte originário, pois não outorga faculdades a si mesmo, mas as recebe do constituinte.

O poder constituinte derivado exerce também a atividade de institucionalizar os Estados federados, que provenham da obra do poder constituinte originário: trata-se do poder constituinte dos Estado-Membros, denominado poder constituinte decorrente.

Quanto à função do poder constituinte derivado, a doutrina se divide.

Para um grupo de juristas, a função é constituinte. Trata-se de um órgão que sobrevive ao autor da Constituição, e que não se confunde com os poderes constituídos, como o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, em razão, sobretudo, do princípio da separação dos poderes. Os órgãos do Poder Legislativo, quando exercem a função de emendar ou rever a Constituição, compõem um novo órgão, que não tem atividade de poder constituído, mas de constituinte, falando-se até mesmo em poder constituinte permanente, como parcela do poder constituinte geral.

Na concepção de outra corrente doutrinária, são inerentes ao poder de reforma limitações jurídicas materiais e formais, circunstância que viria desqualificá-lo como poder constituinte. Por sua vez, o poder constituinte que elabora a Constituição não sofre limitações jurídicas desde a origem. As limitações que porventura condicionam sua atuação no espaço e no tempo são limitações filosófico-sociológicas, e não jurídicas, estas ocorrentes apenas em relação ao poder de reforma da Constituição.

Podem-se identificar quatro tipos de limitações:

- limitações circunstanciais: vêm expressas no artigo 60, § 1º, da Constituição Federal e impedem a mudança válida no texto constitucional durante intervenção federal, estado de sítio e estado de defesa;

- limitações formais: previstas no artigo 60, inciso I, II, III c/c os §§ 2º e 5º da Constituição Federal. Vinculam o poder de reforma constitucional à observância de determinado procedimento, próprio das Constituições rígidas, cuja supremacia formal reside justamente na maior dificuldade para sua alteração;

- limitações temporais: são aquelas que vedam a reforma constitucional por um prazo determinado. Justificam-se pela necessidade de assegurar certa estabilidade às instituições constitucionais;

- limitações materiais: constituem o cerne imodificável da Constituição, suas cláusulas pétreas.

A primeira limitação material da Constituição de 1988 impede a mudança da forma federativa. Não se pode, portanto, transformar o Estado brasileiro em unitário, mesmo descentralizado.

Em seguida, a Constituição coloca a salvo o voto direto, secreto, universal e periódico, expressão do princípio democrático.

Constitui ainda óbice ao poder de reforma a separação dos poderes.

Finalmente, os direitos e garantias individuais são imodificáveis por via de emenda à Constituição.

Além das limitações materiais explícitas, outras há que se impõem no silencia do texto constitucional, pois servem de fundamento de validade da Constituição, traduzindo valores e princípios que a modelam à luz do princípio democrático. As limitações implícitas podem ser agrupadas da seguinte forma: a) as que dizem respeito aos direito fundamentais, devendo-se observar que tais limitações se tornaram expressas na Constituição de 1988; b) as concernentes ao titular do poder constituinte, já que o reformador não pode dispor do que não lhe pertence, devendo-se ainda considerar a inalienabilidade da soberania popular, princípio que nega ao próprio povo o direito de renunciar ao seu poder constituinte; c) as relativas o poder reformador porque este não pode renunciar a sua competência em favor de nenhum outro órgão, nem delegar suas atribuições, pois estas lhe foram conferidas para que ele próprio as exercite; d) as referentes ao processo da própria emenda ou revisão constitucional, de vez que o reformador não pode simplificar as normas que a Constituição estabelece para elaboração legislativa.

Fala-se, ainda, em poder constituinte dos Estados-Membros, denominado poder constituinte decorrente, ou seja, o poder de organizar o Estado Federado dotado de autonomia. É poder derivado, subordinado e condicionado, sendo que o seu condicionamento aos princípios ou diretrizes a que está sujeito a observar, traduzido nas normas constitucionais federais de preordenação, revela a predominância de forças centrípetas ou centrífugas no âmbito do Estado Federal.

As limitações do poder constituinte decorrente são de duas ordens:

- limitações de ordem formal, que se referem ao modo de elaboração das Constituições estaduais, indicando o prazo para elaboração, o poder competente para fazê-lo e ao quorum observado nas votações, o qual deve ser maior do que o previsto para a lei ordinária;

- limitações de ordem material, que se referem a disposições constantes da Constituição Federal, que devem ser incorporadas pelas Constituições Estaduais, seja em sentido positivo, seja em sentido negativo.

As vedações expressas podem ser diferenciadas, quanto ao objeto da limitação, em vedações de fundo (materiais, circunstanciais e temporais) e limitações de forma. As limitações positivas concernem: a) à assimilação obrigatória, pelo Constituinte Estadual, de preceitos ou princípios, expressa ou implicitamente estabelecidos na Constituição Federal, e que retratam o sistema constitucional do país; b) à observância de princípios federais, genéricos ou específicos, estabelecidos na Constituição Federal, e que se estendem aos Estados, expressa ou implicitamente; c) à absorção obrigatória de princípios consagrados pela Constituição Federal, cujo destinatário é, específica e exclusivamente o Estado-Membro e que, para facilitar, serão rotulados como princípios enumerados. Nos últimos dois casos, as limitações podem ser distinguidas em limitações de fundo (materiais, circunstanciais e temporais) e de forma, à exceção feita às limitações genéricas implícitas, que só podem ser limitações de fundo.

O poder constituinte decorrente pode ser: a) inicial, também denominado instituidor ou institucionalizador – destina-se a estabelecer a Constituição do Estado-Membro, notadamente quando não há mais Constituição em vigor na unidade da Federação; de revisão estadual, também denominado de poder constituinte decorrente, de segundo grau, que se destina a rever e modificar a Constituição do Estado-Membro da federação.

Há uma nova configuração do poder constituinte denominada de supranacional. Ela gira sob fundamentos mais amplos, como a cidadania, a integração, o pluralismo e a soberania, desta vez remodelada. Agindo de fora para dentro das fronteiras estatais, o poder constituinte supranacional destina-se à formação de uma Constituição supranacional legítima, apta a vincular a comunidade de Estados sujeitas à sua incidência.


Fonte: Direito Constitucional. Kildare Gonçalves Carvalho.