sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Regulamento no Direito Brasileiro

O regulamento previsto no artigo 84, inciso VI, alínea “a” da Constituição Federal – segundo o qual compete ao Presidente da República dispor, mediante decreto, sobre “organização e funcionamento da Administração Federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos” – confere, como resultado da sua disposição textual, poderes muito circunscritos ao Presidente. É mera competência para um arranjo intestino dos órgãos e competências já criados por ele.
Na alínea “b” do citado artigo, está contemplado um caso em que é permitido ao Executivo expedir ato concreto no sentido contraposto a uma lei, pois ali se prevê a possibilidade de o Presidente da República extinguir cargos vagos. Como os cargos públicos são criados por lei, sua extinção por decreto, tal como ali prevista, implica desfazer o que por lei fora feito.
Pode-se conceituar o regulamento em nosso Direito como ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução de lei, cuja aplicação demande atuação da Administração Pública.
Os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da legalidade no Brasil impõe ao regulamento o caráter de ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente de lei. Só podem existir regulamentos conhecidos no Direito alienígena como “regulamentos executivos”.
No Brasil, entre a lei e o regulamento não existem diferenças apenas quanto à origem. Não é tão-só o fato de uma provir do Legislativo e outra do Executivo o que os aparta. Também não é apenas a posição de supremacia da lei sobre o regulamento o que os discrimina. Há outro ponto diferencial e que possui relevo máximo e consiste em que só a lei inova em caráter inicial na ordem jurídica.
O inciso IV do artigo 84 da Constituição Federal delimita o sentido da competência regulamentar do Chefe do Poder Executivo ao estabelecer que ao Presidente da República compete “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução”. Nisto se revela que a função regulamentar no Brasil, cinge-se exclusivamente à produção destes atos normativos que sejam requeridos “para fiel execução” da lei. Ou seja: entre nós, como se disse, não há lugar senão para os regulamentos que a doutrina estrangeira designa como “executivos”.
Consagra-se em nosso Direito Constitucional a aplicação plena, cabal, do chamado princípio da legalidade, tomado em sua verdadeira e completa extensão.
Ressalta-se que, dispondo o artigo 5º, inciso II da Constituição Federal, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, com isto se firmou o princípio da garantia da liberdade como regra, segundo o qual, “o que não está proibido aos particulares está, ipso facto, permitido”. Ante aos termos do perceptivo, entende-se “o que não está por lei proibido, está juridicamente permitido”.
De outro lado, conjugando-se o disposto no artigo citado com o estabelecido no artigo 84, inciso IV da Constituição Federal, que só prevê regulamentos “para fiel execução das leis”, e com o próprio artigo 37, que submete a Administração ao princípio da legalidade, resulta que vige, na esfera do Direito Público, um cânone basilar – oposto ao da autonomia da vontade – segundo o qual: o que, por lei, não está antecipadamente permitido à Administração, está, ipso facto, proibido, de tal sorte que a Administração, para agir, depende integralmente de uma anterior previsão legal que lhe faculte ou imponha o dever de atuar. Por isto, diz-se que o regulamento, além de inferior, subordinado, é ato dependente de lei.
É livre de qualquer dúvida que, por força dos artigos 5º, inciso II, 84, inciso IV e 37 da Constituição, só por lei se regula liberdade e propriedade; só por lei se impõem obrigações de fazer ou não fazer. Vale dizer: restrição alguma à liberdade ou à propriedade pode ser imposta se não estiver previamente delineada, configurada e estabelecida em alguma lei, e só para cumprir dispositivos legais é que o Executivo pode expedir decretos e regulamentos.
A Constituição prevê os regulamentos executivos porque o cumprimento de determinadas leis pressupõe uma interferência de órgãos administrativos para a aplicação do que nelas se dispõe sem, entretanto, predeterminar exaustivamente, isto é, com todas as minúcias, a forma exata da atuação administrativa.
Ditas normas são requeridas para que de disponha sobre o modo de agir dos órgãos administrativos, tanto no que concerne aos aspectos procedimentais do seu comportamento quanto no que respeita aos critérios que devem obedecer em questões de fundo, como condição para cumprir os objetivos da lei.
Onde não houver espaço para atuação administrativa não caberá regulamento. O sistema só requer ou admite regulamento como instrumento de adaptação ou ordenação do aparelho administrativo para fiel execução das leis.
Onde não houver liberdade administrativa alguma a ser exercida (discricionariedade) – por estar prefigurado na lei o único modo e comportamento possível da Administração ante hipóteses igualmente estabelecidas em termos objetividade absoluta – não haverá lugar para regulamento que não seja mera repetição de lei ou desdobramento do que nela se disse sinteticamente.
O regulamento executivo, único existente no sistema brasileiro, é um meio de disciplinar a discrição administrativa, vale dizer, de regular a liberdade relativa que viceje no interior das balizas legais, quando a Administração esteja posta na contingência de executar lei que demande ulteriores precisões.
Salvo quando se têm em mira a especificidade de situações reduzíveis e reduzidas a um padrão objetivo predeterminado, a generalidade da lei e seu caráter abstrato ensancham particularização normativa ulterior. Daí que o regulamento discricionariamente as procede e, assim, cerceia a liberdade dos comportamentos dos órgãos e agentes administrativos para além dos limites da lei, impondo, destarte, padrões de conduta que correspondam aos critérios administrativos a serem obrigatoriamente observados na aplicação da lei aos casos particulares.
Há, pois, uma razão relevantíssima que reclama a edição de regulamentos. É a necessidade de tratar uniformemente os indivíduos, em nome do princípio da igualdade. Compreende-se que o titular da competência para determinar esses critérios ou padrões seja o Chefe do Poder Executivo, pois ele é o supremo hierarca da Administração.
Se uma lei depende de regulamentação para sua operatividade, o Chefe do Poder Executivo não pode paralisar-lhe a eficácia, omitindo-se em expedir as medidas gerais indispensáveis para tanto. Admitir que dispõe de liberdade para frustrar-lhe a aplicação implicaria admitir que o Poder Executivo tem titulação jurídica para sobrepor-se às decisões do Poder Legislativo. Tanto é exato que omissão em regulamentar se caracteriza como descumprimento de dever jurídico que o artigo 5º, inciso LXXI da Constituição Federal admite a impetração de Mandando de Injunção. Ademais, o artigo 85, inciso VII capitula como crime de responsabilidade o ato do Presidente que atente “contra o cumprimento de leis”. Frustrar a execução de uma lei é descumpri-la por omissão.
A finalidade da competência regulamentar é a de produzir normas requeridas para a execução das leis quando estas demandem uma atuação administrativa a ser desenvolvida dentro de um espaço de liberdade exigente de regulação ulterior, a bem de uma aplicação uniforme da lei, isto é, respeitosa do princípio da igualdade de todos os administrados.
Sua natureza é a de um dever jurídico: o de proceder a uma delimitação administrativa interna da esfera de discricionariedade que a da lei resultava para a Administração, em vista de assegurar o referido princípio da igualdade, mediante imposição de um comportamento uniforme perante situações iguais.
Ao regulamento desassiste incluir no sistema positivo qualquer regra geradora de direito ou obrigação novos. Nem favor nem restrição que já não se contenham previamente na lei regulamentada podem ser agregados pelo regulamento.
Há inovação proibida sempre que seja impossível afirmar-se que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição já estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada. Ou, reversamente: há inovação proibida quando se possa afirmar que aquele específico direito, dever, obrigação, limitação ou restrição incidentes sobre alguém não estavam estatuídos e identificados na lei regulamentada. A identificação não necessita ser absoluta, mas deve ser suficiente para que se reconheçam as condições básicas de sua existência em vista de seus pressupostos, estabelecidos na lei e na finalidade que ela protege.
É, pois, à lei, e não ao regulamento que compete indicar as condições de aquisição ou restrição de direito. Ao regulamento só pode assistir, à vista das condições preestabelecidas, a especificação delas. E esta especificação tem que se conter no interior do conteúdo significativo das palavras legais enunciadoras do teor do direito ou restrição e o do teor das condições a serem preenchidas.
Se à lei fosse dado dispor que o Executivo disciplina, por regulamento, tal ou qual liberdade, o ditame assecuratório de que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” perderia o caráter de garantia constitucional, pois o administrado seria obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa ora em virtude do regulamento, ou de lei, ao líbito do Legislativo, isto é, conforme o legislador ordinário entendesse decidir. É óbvio, entretanto, que, em tal caso, este último estaria se sobrepondo ao constituinte e subvertendo a hierarquia entre Constituição e lei, evento juridicamente inadmissível em regime de Constituição rígida.
Por isto, a lei que limitar-se a (pretender) transferir ao Executivo o poder de ditar, por si, as condições ou meios que permitem restringir um direito configura delegação disfarçada, inconstitucional.
A própria possibilidade de existirem leis delegadas torna óbvio que não podem existir delegações disfarçadas, procedidas indireta ou implicitamente. Com efeito, a simples previsão desta espécie legislativa demonstra, a contrario sensu, que a regra é a indelegabilidade.
Considera-se que há delegação disfarçada e inconstitucional, efetuada fora do procedimento regular, toda vez que a lei remete ao Executivo a criação das regras que configuram o direito ou que geram a obrigação, o dever ou a restrição de liberdade. Isto sucede quando fica deferido ao regulamento definir por si mesmo as condições ou requisitos necessários ao nascimento do direito material ou nascimento da obrigação, dever ou restrição. Ocorre, mais evidentemente, quando a lei faculta ao regulamento determinar obrigações, deveres, limitações ou restrições que já não estejam previamente definidos e estabelecidos na própria lei.
O conteúdo próprio dos regulamentos é explicar com maior minudência a regência de situações cuja previsão e disciplina já tenham sido antecipadamente traçadas na lei, mas sem pormenores cujo agregado, por via administrativa, conquanto conveniente ou imprescindível, não afeta a configuração dos direitos e obrigações nela formados.
O regulamento é cabível quando a lei pressupõe, para sua execução, a instauração de relação entre a Administração e os administrados cuja disciplina comporta uma certa discricionariedade administrativa. Isto ocorre nos seguintes casos:
- um deles tem lugar sempre que necessário a um regramento procedimental para regência da conduta que órgãos e agentes administrativos deverão observar e fazer observar, para cumprimento da lei, na efetivação das sobreditas relações. Assim, ao prefixar o modo pelo qual se processarão tais relações, o regulamento coarta a discrição, pois limita a conduta que órgãos e agentes terão de observar e fazer observar. Destarte, assegura-se uma uniformidade de procedimento, pelo qual se garante obediência ao cânone da igualdade, que sofreria transgressões se inexistisse a medida regulamentar;
- uma segunda hipótese ocorrer quando a dicção legal, em sua generalidade e abstração, comporta por ocasião da passagem deste plano para o plano concreto e específico dos múltiplos atos individuais a serem praticados para aplicada a lei, interlecções mais ou menos latas, mais o menos compreensivas. Por força disto, ante a mesma regra legal e perante situações idênticas, órgãos e agentes poderia adotar medidas diversas, isto é, não coincidentes entre si.
Merece ser alertado que está-se referindo tão só e especificamente aos casos em que o enunciado legal pressupõe uma averiguação ou operacionalização técnica a serem resolutas em nível administrativo, até porque, muitas vezes, seriam impossível, impraticável ou desarrazoado efetuá-las no plano da lei.
Então, para circunscrever este âmbito de imprecisão que geraria comportamentos desuniformes perante situações iguais – inconvenientes, pois, com o preceito isonômico – a Administração limita a discricionariedade que adviria a dicção inespecífica da lei,
Os regulamentos cumprem a imprescindível função de, balizando o comportamento dos múltiplos órgãos e agentes aos quais incumbe fazer observar a lei, de um lado, oferecer segurança jurídica aos administrados sobre o que deve ser considerado proibido ou exigido pela lei (e, ipso facto, excluindo do campo da livre autonomia da vontade) e, de outro lado, garantir aplicação isonômica da lei, pois, se não existissem essa normação infralegal, alguns servidores públicos, em um dado caso, entenderiam perigosa, insalubre ou insegura dada situação, ao passo que outros, em casos iguais, dispensariam soluções diferentes.
A precisão aportada pela norma regulamentar não se propõe a agregar nada além do que já era comportado pela lei, mas simplesmente inserir caracteres de exatidão ao que se achava difuso na embalagem legal. Além disto, entretanto, na medida em que estabeleça um nível de concreção mais denso e mais particularizado do que aquele residente em lei, cumprirá as alternativas admissíveis em face dela e, portanto, restringirá a discricionariedade que preexista à norma regulamentar.
Estas medidas regulamentares concernem tão-somente à identificação da caracterização técnica dos elementos ou situações de fato que respondem, já agora de modo preciso, aos conceitos inespecíficos e indeterminados de que a lei se serviu, exatamente para que fossem precisados depois de estudo, análise e ponderação técnica efetuada em nível da Administração, com o concurso, sempre que necessário, dos dados de fato e dos subsídios fornecidos pela Ciência e pela tecnologia disponíveis.
Cumpre considerar que há espaço para o exercício da função regulamentar alheio a qualquer exercício de discricionariedade administrativa. Tem lugar quando o regulamento pura e simplesmente enuncia de modo analítico, é dizer, desdobradamente, tudo aquilo que estava enunciado na lei mediante conceitos de síntese.
Neste caso, o regulamento – além de nada acrescentar, pois isto ser-lhe-ia de todo modo, defeso – também nada restringe ou suprime do que se continha nas possibilidades resultantes da dicção da lei. Aqui, ainda é mais evidente sua função interpretativa, que será, no que concerne, exclusivamente interpretativa, cumprindo meramente a função de explicitar o que consta da norma legal ou explicar didaticamente seus termos, de modo a facilitar a execução da lei.
As leis provêm de um órgão colegial – o Parlamento – necessariamente terminam por ser, quando menos em larga medida, fruto de algum comportamento entre as variadas tendências. Até para a articulação de uma maioria são necessárias transigências e composições, de modo que a matéria legislada resulta como o produto de uma interação, ao invés da mera imposição rígida das conveniências de uma única linha de pensamento.
Com isto, as leis ganham, ainda que medidas variáveis, um grau de proximidade em relação à medida do pensamento social predominante muito maior do que ocorreria caso fossem a simples expressão unitária de uma vontade individual, embora representativa, também ela, de uma das facções sociais.
Se fosse possível, mediante simples regulamentos expedidos por presidente, governador ou prefeito, instituir deveres de fazer ou não fazer, ficariam os cidadãos à mercê, senão da vontade pessoal do ungido ao cargo, pelo menos, da perspectiva unitária, monolítica, da corrente de pensamento de que este se fizessem porta-vozes.
O próprio processo de elaboração das leis, em contrate com o dos regulamentos, confere às primeiras um grau de controlabilidade, confiabilidade, imparcialidade e qualidade normativa muitas vezes superior ao dos segundos, ensejando, pois, aos administrados um teor de garantia e proteção incomparavelmente maiores.
Já os regulamentos carecem de todos os citados atributos e, pelo contrário, propiciam as mazelas que resultariam da falta deles, motivo pelo qual, se não são perfeitamente prestantes e úteis para a simples delimitação mais minudente das providências necessárias ao cumprimento dos dispositivos legais, seriam gravemente danosos – o que é sobremodo claro em um país com as características políticas do Brasil – se pudessem, por si mesmos, instaurar direitos e deveres, impondo obrigações de fazer ou não fazer.
Tudo quanto se disse a respeito do regulamento e de seus limites aplica-se, ainda com maior razão, a instruções, portarias, resoluções, regimentos ou quaisquer outros atos gerais do Poder Executivo. É que, na pirâmide jurídica, alojam-se em nível inferior ao próprio regulamento. Enquanto este é ato de Chefe do Poder Executivo, os demais assistem a autoridades de escalão mais baixo e, de conseguinte, investidas em poderes menores.

Fonte: Curso de Direito Administrativo. Celso Antônio Bandeira de Mello.